Capítulo 13: O Predador

A FLORESTA PARECIA VIVA — parecia não, ela era. Respirava, arfava, queimava. O sol já passara do zênite quando Eda tirou outro galho do caminho, frustrado. O ar estava grosso, cada vez mais difícil de inspirar; o suor escorria-lhe o rosto de maneira tão desconfortável quanto poderia.
— Merda de lugar — rosnou, limpando a face com o dorso da mão. — Ele não pode ter ido longe.
Kumo o seguia, de passos leves e olhos observadores, quase sem deixar pegadas. Sempre visava o adiante, atencioso e apático. Mesmo ali, entre cipós e vegetação urticante, parecia mais à vontade do que o companheiro.
— A trilha esfriou — dizia Kumo, assistindo Eda se desvencilhar de mais plantas. — Sabia que não era a melhor opção. Vamos morrer igual seus servos.
— Maldição — resmungou Eda. — Perdemos o rastro desde o rio.
Kumo passou a mão no rosto, desiludido.
— Quem diria que seria uma péssima ideia caçar um caçador no próprio quintal dele…
— Ele não virá até nós, moleque. — Os olhos de Eda vidrados. — Quem precisa dele somos nós.
Kumo deu de ombros.
— É, talvez esteja certo.
— Se quiser ir embora, vá. — A fala de Eda era carregada de rispidez. — Se quer ser um escravo para sempre, não é problema meu. Eu vou me libertar, garoto, e se não for aqui, será em outro lugar.
Kumo apenas assentia quando os devaneios de seu colega vinham à tona. Não conseguia acreditar em um pingo, mas admirava a gana que Eda tinha para viver. Sair das garras de seu senhor era o último passo; para tanto, altos preços precisariam ser pagos.
Era como ver uma criança sonhar um sonho impossível. Nada convencia Kumo de que aquela não era uma missão suicida. Ele mesmo não era um lutador; Eda, tampouco. Estava claro em sua mente que matar um fantasma em seu próprio domínio não era a mais inteligente das decisões.
Kumo acenou com a cabeça para o medalhão precioso que Eda não largava.
— Pensa em usar isso aí mesmo?
Eda sorriu com contorno mórbido.
— Se preciso for… — Apanhou o artefato, que de pronto reluziu esmeralda. — Você não usaria se estivesse prestes a morrer, hã?
Kumo suspirou fundo, sem alguma esperança real na missão.
— Capaz dessa coisa fazer picadinho de nós também, se bobear.
— Não se preocupe, rapaz. — Eda polia a gema com os dedos, com esmero ímpar. — Pois eu sei seu verdadeiro nome. Estará sob minhas vontades.
Menos mal.
Ambos tomaram alguns minutos para hidratar a mente. As vestes grossas os camuflavam no verde profundo e protegia-os dos insetos, mas os tornava ensopados por dentro. O desconforto se alinhava com o cheiro de terra quente e da vegetação.
Então, outro cheiro; metálico, cortante. Como o ar antes da tempestade. Os punhos de ambos cerraram e a respiração pesou.
Eda girou o pescoço, desconfiado.
— Sente isso?
Um assobio ressoou na selva.
Arregalaram os olhos. O frio subiu a espinha. Eda mal percebeu o movimento nas folhas mortas.
Uma explosão de pura força detonou a boca de seu estômago, fazendo Eda cair abraçado aos cipós sem entender o que acabara de acontecer. Um golpe seco, do vazio.
Ao abrir os olhos, Kumo já havia sumido. Dificultoso, Eda se içou, mas sem ver ninguém à sua frente
Sinapse.
Outro impacto, desta vez no calcanhar. Eda tropeçou e recebeu outro estouro no maxilar. Caiu de lado, como um boneco.
Cuspiu dois dentes fora.
Tremia. A força era tamanha que até mesmo sua visão apagou por um instante. Levantou o olhar quando a recuperou.
Dentre a vegetação, a figura de um homem mascarado começou a se formar, encarando Eda como mais uma de suas presas. O âmago do servo se encheu de êxtase repentino.
— Resolveu dar as caras… — Erguia-se, cuspindo sangue de lado. — Sabe como é difícil te rastrear, Tigre?
Impávido, Kiro não respondeu. Eda não podia ver que, por trás da máscara, reinava ira; ira por ter sido descoberto. Dentes comprimidos, olhos decididos. O tigre não pouparia sua caça.
As verdadeiras armas de Eda eram seus medalhões, mas trazia consigo sempre seu sabre. Empunhou-o contra o fantasma, mesmo não crendo que faria alguma diferença. Um raio solar refletiu na lâmina, o cegando por um instante. Lembrou-se de quem estava perante, quebrando abruptamente o contato visual.
— Você é um inimigo formidável. — Agora mirava seus pés. — Estudei muito sobre o que pode fazer, Filho de Hu.
Kiro confirmou. Também conheciam sua verdadeira natureza. Nada poderia tirar seu foco agora.
Eda avançou com o sabre em riste. Movimentos circulares entrecortados por investidas diagonais. O sibilar cortava o ar quente, cipós e folhas largas. O tigre desviava com precisão, como se pudesse prever cada ataque de Eda. Calor subia do solo, fazendo cada gota de suor pesar o dobro.
Eda grunhiu irritado. Colocava seus golpes bem — ágeis, certeiros —, mas o mascarado era tão habilidoso que abalava sua moral sem mesmo o contra-atacar.
Uma investida precisa; finalmente Eda encontrou uma brecha. Abriu um sorriso com escárnio antes de sequer sua lâmina tocar o adversário. Entretanto, tão logo este sorriso se transformou em frustração.
A estocada atravessou o corpo do tigre como se nada estivesse no espaço entre os dois. Eda cambaleou e, assim como seu sabre, transpassou o inimigo e deu de cara com a mata fechada.
Recuou dois passos.
— Faz sempre assim? — Dizia entre puxadas de ar. — Gosta de brincar com seus inimigos?
Kiro reagiu. Girou baixo, chutando o joelho de Eda, de fora para dentro, arqueando-lhe a postura. Antes que pudesse cair, um pontapé rodado que, mesmo bloqueado, o atirou contra o tronco coberto de musgo.
Eda gemeu baixo, limpando o canto da boca enquanto praguejava em sua língua mãe. Recostou-se no tronco, tateando o colar repleto de medalhões, cada um com uma gema de brilho diverso.
Antes que achasse o que buscava, a pegada firme de Kiro apertou sua garganta. Esmagava seu pomo-de-adão, fazendo arder toda a goela. Mal conseguia respirar.
O tigre golpeou a madeira áspera com a própria cabeça de Eda, a pintando de rubro.
Uma, duas, três vezes.
Folhas caíram dos galhos e os pássaros que restaram voaram para longe. Supercílio aberto, nariz quebrado. Eda chiava, depois de ser jogado de lado; encarava o chão tentando se levantar, assistindo cada gota de sangue tingir a terra.
O fantasma, enfim, falou:
— Por que vir atrás de mim? O quanto esse Havakai te pagou para morrer?
Eda demorou a responder. Penou para se colocar de joelhos. Limpou o sangue dos olhos com o antebraço. Seu riso era ritmado; um riso prepotente, frio.
— Hu não te ensinou nada, Vossa Santidade? — Sua fala insensível. Cuspiu vermelho de lado. — Quem paga sou eu, com minha vida… Assim como você.
Kiro cerrou os olhos por trás da máscara. Uma aflição rápida pontuou seu peito.
— Quem é Havakai, afinal? — Agora, a voz do tigre carregava paranoia.
— Um demônio — respondeu, de pronto. — Um demônio o qual devo a alma. Por que vir atrás de você? — Eda fixou seus olhos nos de Kiro. — Porque ainda tenho um resto de amor pela vida, Deva.
Um gibão1 fugia, saltando de galho em galho. Sua agilidade primata o fazia balançar na copa das árvores com destreza ímpar. Contudo, um uivo metálico cruzou o espaço aéreo da selva de Vento Gentil.
A foice. Ela corria pelo ar, cortando toda a vegetação atrás do macaco que escapava; um gibão com um olhar… humano demais.
— Eu posso te ver — alertou a gaviã, pousada em um galho robusto.
Por trás da máscara, os olhos dourados da ave de rapina perscrutavam toda a essência da mata.
O primata saltou, se salvando por milímetros de um corte que decepar-lhe-ia o tampão da cabeça. O gibão, então, começou a se remexer. Sua carne fervia, seus músculos passaram a tomar outra forma. O rosto se deformou, assim como o tronco e braços e pernas.
Por fim, a metamorfose completa: um homem magro, de cabelos claros e pálido.
— Belas técnicas — dizia Kumo, depois de descoberto seu disfarce. — Não sabia que o Tigre Alado tinha uma parceira — falava enquanto alongava a musculatura recém-transformada.
Yuna franziu o semblante.
— Pois agora sabe, esquisito. — Apanhou a foice, que voou de volta à sua mão, como um bumerangue.
— Veja, não precisamos brigar — dizia, do outro galho e de braços abertos. — Se eu fosse você, voltaria e ajudaria seu companheiro.
A gaviã deu um riso sarcástico.
— Ele não precisa da minha ajuda. Ninguém pode matá-lo; não importa a carta que seu amigo tenha na manga.
Kumo suspirou.
— Eu não teria tanta certeza, moça.
Yuna segurou mais firme o cabo de sua arma. O tom de voz indolente daquele homem a deixava ainda mais incomodada. Era a primeira vez que encarava alguém que não clamava pela vida.
— Por que diz isso?
— Olha só, esse meu colega de trabalho não luta sozinho. Por isso, aconselho que dê meia volta e ajude seu parceiro.
Ela apenas o fitava, calculando a melhor decisão.
— E deixar você fugir? — Apontou a foice contra Kumo. — Quantos mais de vocês têm por aí?
— Só nós dois. — A calma em sua fala confundia a gaviã. — Veja, eu sou fraco. Não tem porquê você ficar aqui e perder tempo comigo enquanto seu namorado está correndo perigo contra o Eda. — Por fim, deu de ombros. — Mas, se quiser ficar e conversar, tudo bem. Estou farto desses escravos; reclamam demais.
O canto de uma araponga2 cortou o silêncio. Yuna encarava a feição entediada do jovem, pensando sobre a melhor decisão a se tomar. Nunca antes conheceu um inimigo assim, tão blasé e despreocupado. Talvez fosse o desapego de quem já não tem apego à vida.
— São homens de Havakai, certo? — Perguntou ela. — O que querem com o tigre?
Kumo podia gozar de tranquilidade, mas não quebrava o contato visual. Mediu suas palavras pela primeira vez.
— Só buscamos a nossa própria liberdade. — Seu semblante fechou-se. — E o Deva é a chave para isso. Agora, se quer o motivo de Havakai ir atrás dele, eu também não sei dizer.
Yuna remoeu preocupação.
— Já entendi tudo. Vocês são –
— Escória? — Interrompeu-a. — Isso aí mesmo, acertou em cheio. Fizemos um contrato com um Asura e agora estamos fadados. Não faz mais diferença viver ou morrer, pelo menos não para mim. Mas Eda tem coisas a perder, então me preocuparia mais com ele se estivesse no seu lugar.
A gaviã apenas o encarou, cerrando os punhos. Ele entendeu a mensagem.
Enquanto vidrava os olhos de Kumo, assistiu seu corpo se metamorfosear novamente. O rapaz se desfez, diminuiu de tamanho, penas brotaram de todo seu corpo. O ruído úmido dos músculos se contorcendo no sangue causou ojeriza em Yuna, que nunca tinha presenciado nada assim antes.
Imóvel, acompanhou aquele passarinho bater asas e sumir no azul do céu. Pela primeira vez, alguém escapou das garras do gavião.
Espero que esteja gostando de “O Caminho do Tigre”! Só avisando que, após essa semana de estreia da obra aqui na Illusia e capítulos diários, a novel ganhará novos capítulos aos domingos (10h), terças (19h30) e quintas (19h30)!
Continuem lendo, Filhos de Hu!

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