Capítulo 14: O Despertar do Demônio Jade

KENSHIMARU POUSOU A CESTA DE FRUTAS ao lado de Rohan, ao visitá-lo. As feridas se curavam em bom ritmo, mas a situação de seu parceiro jazia entre gemidos de dor e agonia até mesmo com a mais branda das brisas.
Pelo menos tinha paz quando dormia. Não era a melhor das visões, mas Kenshimaru agradecia por estarem vivos. Fazia tempo que não via a morte tão de perto.
Sentou-se no banquinho ao lado do leito de Rohan, enquanto este dormia profundo. Kenshimaru sentia as pontas dos dedos formigarem, acompanhado de um desconforto estranho no estômago, que subia até o peito. Algo parecia… errado.
O zunido das cigarras, o silvar das árvores; seu instinto não falhava.
Alguma coisa está por aí…
Levantou-se de sobressalto, deixando o cômodo da enfermaria da vila.
Na cabana dos caçadores, onde agora se reuniam os hetas, Jun Lei se encontrava sozinha e em estado profundo de meditação. Assim, rastreava as perturbações no Tecido em Vento Gentil, usando o fluxo de água da ilha quase como um Orbe de Mil Correntes improvisado.
Era a melhor nisso. Sua falta de visão aumentou ainda mais sua afinidade com o myoutai, fazendo dela o primor do sensoriamento que os hetas poderiam oferecer.
Ergueu o rosto.
Uma frequência distinta num riacho, depois, outra vibração anormal num córrego. Algo estava forçando o Tecido; o véu parecia tentar repelir um… invasor?
Mestre, Tatsuo… algo está prestes a nascer.
Distantes da cabana, as palavras de Jun Lei foram captadas na hora pela dupla. Os dois se entreolharam.
— Ela não pode ser mais específica? — Tatsuo abria caminho na mata com chamas contidas que se dobravam à sua vontade.
Tai digeriu a informação. Ele mesmo também estava sentindo alguma coisa; um formigamento nas pontas dos dedos.
— Está mais forte agora — notava Tai. — Consegue sentir?
A cada passo, Tatsuo consumia o verde com fogo controlado que formava em suas mãos.
— Claro — Sua voz era permeada pelo crepitar da queima. — Alguma coisa grande tá aí pra frente, Tai. — E soltou outra labareda, incinerando cipós.
O Mestre do Ar vinha logo atrás, flutuando, sem perder o semblante leve.
— Vamos nos apressar — decretou, sem cerimônias.
Tatsuo sorriu de volta, de orelha à orelha.
Eda cambaleava. Agora, seu sabre pesava como uma âncora e o sangue lhe escorria do nariz. A visão de seu olho esquerdo borrada impedia que previsse com exatidão os ataques do tigre.
Outro soco, nas costelas, seguido de um chute frontal que o atingiu no peito. Eda foi arremessado ladeira abaixo, rolando por pedras, raízes e musgo. Buscava por seu medalhão; dizia algo entre dentes.
Kiro, por sua vez, avançava em silêncio. Não o mataria, pelo menos não antes de saber mais sobre Havakai.
— Não pode me matar… — Eda ofegava, se levantando sem mal conseguir manter o equilíbrio. — Não sabe o peso que carrego, Filho de Hu.
Não obteve resposta. Com o âmbar de seus olhos fendidos brilhando, o tigre dava passos que estremeciam o chão.
Eda limpou a boca do sangue, sem tirar os olhos do alvo. Tentou um golpe desesperado. Um arco descendente que cortou apenas vento; mais uma vez, Kiro fez seu corpo intangível. Em um borrão, o mascarado agarrou seu pulso e o encarou no fundo das pupilas.
Sentiu seu corpo enrijecer; seus músculos contraírem. A respiração descompassada e o sabor do sangue seco provavam sua derrota. Os olhos mortais de Kiro, emoldurados pela máscara, reluziam e o penetravam como os do próprio Hu.
— Você está muito além das minhas habilidades, semideus — queixava-se, paralisado, sem controle da própria carne. — Mas sei que não vai me matar ainda…
Kiro o teria nas mãos enquanto não quebrasse o contato visual.
— Onde encontro Havakai? — Proclamou, com olhos faiscantes.
O riso irônico e cansado de Eda fez com que o tigre apertasse ainda mais seu pulso.
— Eu não pronunciaria esse nome com tanta frequência no seu lugar. — Reinava um sorriso torto em seu rosto. — Apesar de tão poderoso, lhe falta conhecimento. Mesmo um Deva, um ser abençoado, não seria páreo para ele.
Conectando os pontos, Kiro somente poderia chegar a uma conclusão.
— Havakai é-
— Um Asura, Vossa Santidade! Agora entende? — Eda tinha ódio na fala, mostrando dentes avermelhados. — Você deve se achar invencível, não? Fica aqui escondido, quieto, entocado. Me matar é fácil, mas marche contra o Corpo Milenar e veremos se manterá essa sua pose imponente! Vamos ver até onde vão esses poderes de semideus!
Kiro jazia atônito. Desta vez, não ficou em silêncio por indiferença, mas sim por não ter uma resposta. Agora via, além de obstinação, dor nos olhos de Eda. Apesar de indefeso nas mãos do tigre, não era ele o real inimigo. O verdadeiro mal estava muito além dali.
— Ei… — O crepitar da queima e o cheiro de cinzas vieram da esquerda. — Que algazarra é essa?
Kiro olhou.
Quebrou o contato visual.
Eda, na fração de segundo que teve, tomou com rapidez seu medalhão; seu tão querido medalhão. Era tudo o que ele precisava; uma brecha, menor que fosse.
Tatsuo e Kiro se encararam confusos por um instante, sem saber se eram amigos ou inimigos; isso mudaria em momentos. Eda caiu para trás, sem parar de recitar algum rogo, algo que mesmo o Filho de Hu não compreendia.
Apertando a gema esmeralda entre os dedos, proclamava confiante, aliviado. Não olharia mais nos olhos do tigre.
A máscara de felino, as vestes negras, as luvas; o brincalhão Tatsuo não era burro. Em um clique, entendeu a situação.
Kiro lidaria com ele depois, voltou a atenção a Eda mais uma vez.
— Tarde demais… — sussurrou Eda, rastejando de costas. — Tarde demais, Deva…
A gema se rachou. O trincar se duplicou; mais um e mais outro. A energia começou a escapar das fissuras, fervente e esverdeada. Trajetórias aleatórias perambulavam o ar com agilidade, contornos e mudanças de rota imprevisíveis.
O tigre logo teve certeza que aquilo ocorreria mais uma vez. Assim como os caçadores no outro dia, a queima de arquivo seria consumada diante seus olhos. Saltou para trás; Tatsuo protegeu a vista do brilho jade.
— Não sou seu inimigo, camarada — disse o heta, de tom firme e sem hostilidade.
Kiro não desviou a atenção da dança energética.
— Não se aproxime dele — respondeu o mascarado. — E nem de mim.
O ar se tingiu de vermelho-escuro quando as fitas de essência se enfiaram no solo, de uma vez. Sentiram o chão tremer. O som de mil corvos ecoou pela selva, que nunca antes havia abrigado aquele animal.
Kiro e Tatsuo jaziam imóveis, paralisados, como quem calcula cada ação seguinte. Eda estava vivo, arfando forte, mas de cunho vitorioso.
Um estalar rompeu o silêncio; som de raízes se rompendo, sendo fraturadas debaixo de seus pés. Das folhas mil, gotas escarlates se condensaram e despencaram na terra.
Chovia vermelho.
Na parte mais baixa do solo irregular, uma poça de sangue começou a se formar. O líquido borbulhava; a dupla já não sabia o que fazer. O fedor de enxofre, quente e úmido, tomou de assalto seus olfatos.
— Que merda é essa..! — Yuna pousou em um galho acima, entrando no mesmo estado hipnótico ao ver.
Dedos esqueléticos surgiam da poça. A pele esverdeada e as negras unhas longas contrastavam com os braceletes e anéis de ouro reluzentes que ostentava. Os ombros se colocaram para fora, sendo possível ver cada músculo se rearranjando por debaixo do couro.
Um rosto fino, andrógino. Olhos penetrantes, de esclera totalmente preta e pupilas cor-de-canário, faiscantes. Ouro e mais ouro. As joias ornamentavam sua testeira e os colares sobrepostos. Os cabelos eram longos, escorridos até o quadril.
A criatura gemia, o estalidar dos ossos se botando no lugar dentre a carne era uma das visões mais vis que um homem poderia presenciar. Mesmo assim, impunha um sorriso sardônico.
Mãos secas buscavam a margem da poça, enquanto outros dois braços por baixo se revelaram, ajudando aquilo a se levantar. Rastejou para fora do fluido rubro e viscoso, deixando um rastro carnal.
Os adornos preciosos tilintavam conforme se erguia; imponente, bizarro, extravagante. A figura não era alta, de fisionomia fina, a pele colada na musculatura; cada filamento sendo visível ao movimento.
O sorriso estúrdio emergiu depois daquilo vomitar sangue aos montes.
— Ahhh… — A voz era como sinfonia de diferentes outras vozes. — Quanto tempo sem sentir o ar dos homens… — Um de seus quatro braços limpou a boca.
Enfim, estava ali. O segredo de Eda; a carta na manga para vencer um Deva. O demônio o qual sabia o verdadeiro nome, aquele que estaria sob seus pés em combate. Uma força milenar, oculta, anciã.
Um Naraki autêntico, nas suas próprias mãos.
Seus olhares se encontraram. Eda tremeu por inteiro; cada pêlo no seu corpo se ouriçou. Algo bestial, primal, apagou a firmeza de sua voz enquanto estava de frente com a criatura.
— Eu… eu te invoquei! Eu sou teu mestre!
O ser arqueou-se, observando o desespero contido daquele pobre mortal. Sorriu de ponta a ponta.
— Mestre? Que graça… — Sua fala se harmonizava com o tinir de suas joias.
Num movimento só, agarrou os pulsos de Eda com os dois braços de cima. Mesmo exausto de sua batalha contra o tigre, o instinto de viver falava mais forte. Ele se debatia, mas nada parecia tirar o riso doentio do Naraki.
Com uma das mãos livres, apertou-lhe as bochechas.
— Diga-me, criança. — O odor fornido o impedia de respirar. — Sabe meu verdadeiro nome?
Nas garras do predador, a presa retorcia-se apavorada. Contudo, não havia misericórdia no âmago do ser.
Soltou o rosto de Eda, cortando-lhe levemente com as unhas afiadas. Abrupto, os dois braços livres começaram a rasgar as roupas que cobria o torso dele.
De uma só vez, com as mãos em forma de cunha, invadiu o abdômen do homem. Eda urrou em agonia pura. Com moção vigorosa, o demônio abriu um buraco na barriga, que não tardou em se pintar de vermelho.
Os braços da besta se moviam com precisão cirúrgica. Um estalo e o corpo de Eda se abria como um fruto maduro. Seus gritos partiam o ar, calando até mesmo a selva ao redor.
As duas mãos cavavam na carne, desenterrando órgãos como tesouro. Agarrou as tripas de Eda. A criatura puxava-as como se fossem cordas para fora, formando um amontoado na relva.
Eda se contorcia em angústia. Seus berros eram tão hediondos que até mesmo o Tigre Alado tiveram seus estômagos revirados. Não eram gritos de um humano; eram gritos de um animal.
Quando a vida da vítima se resumia à espasmos, ele largou a carcaça de lado, tal qual lixo.
Kiro estava calado. Yuna, atônita. Tatsuo, pasmo. Não conseguiram fugir, quem dirá atacá-lo pelas costas.
A criatura se virou lentamente. Lambeu os dedos antes de sua voz ressoar mais uma vez.
— Mais alguém sabe… — encarou-lhes tenebroso. — Meu verdadeiro nome?

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