JUN LEI SABIA BEM QUE NÃO havia calma nos fluxos de água de Vento Gentil. Sentada de pernas cruzadas no chão da antes cabana de caçadores, suas mãos repousavam por cima dos joelhos, fazendo o mudra da água. 

    Ouvia cada marulhar das correntes que corriam nas veias da ilha.

    O faro aguçado do myoutai a agraciava com uma sensibilidade sem igual, fazendo com que cada vibração no Tecido a alertasse do que vinha quando jazia em estado profundo de meditação. Não havia espaço para o odor acre do casebre nem muito menos o calor arrasador lá de fora.

    Uma pontada descompassou seu coração. A sensação agoniante de agulha perfurando seus tímpanos era sem igual — já conhecida, mas nunca antes com tanta intensidade.

    Jun Lei gemeu de dor.

    — O véu foi rasgado… — Falava para si mesma enquanto um fio vermelho lhe escorria dos ouvidos. — Pessoal… algo foi invocado.

    Na mata, Tai levantou o olhar. Perdeu Tatsuo de vista, que seguiu a estratégia à risca e foi na frente. Seus dedos formigavam ainda mais agora, conforme se aproximava de algo grande.

    Mestre, ouça-me. O Tecido foi rompido; uma presença poderosa se mostra à frente.

    — Perturbação intencional… — sussurrou sozinho. — Gojin não estava errado em se preocupar.

    A outra dupla se encontrava longe dali. Explorando uma caverna com traços de habitação recente, Yuuka e Gojin também ouviram a voz de Jun Lei; carregada de apreensão, mesmo que simulasse calmaria.

    Uma gota de suor escorreu pelas têmporas de Yuuka.

    — Devemos?

    Gojin mal pensou e seus olhos faiscaram.

    — Não há dúvidas! — respondeu preocupado, saltando apressado de pedra em pedra.


    — Por que estão tão tímidas, crianças? — Aquela voz soava impossível, fazendo tremer o peito de cada um. — Vou perguntar mais uma vez… Algum de vocês sabe meu verdadeiro nome?

    O corpo de Eda espasmava no chão agora rubro de suas próprias entranhas, partido ao meio. Kiro ainda não tinha respostas para a indagação do ser. Yuna, pior do que ele, se via paralisada.

    A visão daqueles quatro braços, os olhos brilhando dourado, a pele esverdeada; nunca tinha visto nada igual. Engoliu em seco.

    Kiro, por sua vez, estudou sobre Narakis em seu tempo no Templo de Hu. Porém, era a primeira vez que via um em loco. Depois de tanto tempo passado longe da vida monástica e diligente, aquilo tudo parecia apenas resquícios de lendas do passado.

    Mas lendas não respiram. Lendas não falam. Lendas não destripam homens.

    — Já que estão tão calados, vou dar um nome pelo qual poderão me chamar. — O tilintar do ouro era um deleite aos seus próprios ouvidos. Sua voz engrossou de súbito. — Sou… o Predador.

    Todos os pelos do corpo de Kiro se eriçaram. Pela primeira vez em muito tempo se sentiu ameaçado, encurralado.

    Yuna tremia, mas batalhava para sair daquele estado paralítico. Lá de cima, pousada numa viga graúda da árvore, tomou o cabo de uma de suas foices. 

    Seus olhos se encontraram.

    Aquelas pupilas flamejantes foram o gatilho para a gaviã atirar suas garras. A lâmina curva sibilou no ar, cortando o espaço na direção da criatura. 

    Apenas riu.

    A mesma lâmina que rasgava carne como papel bateu no braço do demônio, inofensiva. Brandiu na pele e caiu no chão, como se não passasse de um brinquedo. Yuna cerrou os dentes e sua feição foi tomada por desespero.

    — Ora, ora, mocinha… — O ser agarrou a arma dela, avaliando o fio amolado com capricho. — Belo arremesso, mas vai precisar de mais que isso.

    Então, lentamente, o Predador achegou o metal de seu próprio pescoço, esbanjando um sorriso tórrido. Num movimento vagaroso, fez como se fosse auto degolar, com força, pressão. A morbidade da cena fez com que suassem ainda mais frio naquele dia de mormaço.

    Nada escorreu de sua carne. Por mais afiada que fosse a foice, jamais lhe causaria dor. Cravou-a na madeira mais próxima.

    — Cansei de meu monólogo. — Retomou o olhar para Yuna. — Vocês não valem o meu tempo.

    Em um salto, o Naraki disparou com os quatro braços em direção a gaviã. Havia sede de sangue em sua ambição, e começaria pela qual julgava a mais fraca entre seus inimigos.

    Yuna congelou. 

    Reaja!

    Suas pernas hesitaram à medida que aquelas pupilas se aproximavam em fração de segundos. 

    Vamos, reaja!

    Um turbilhão flamejante o tirou de sua vista. O ar logo à frente de Yuna se tornou tão quente quanto fornalha, jogando a criatura para fora da direção dela.

    — Que deselegante, feioso. — Tatsuo controlava brasa entre os dedos. — Ir pra cima da mulher primeiro.

    O Predador saltou entre os troncos, evitando a queda até pisar o solo novamente. Mirou-os com desprezo; intrigava-o o porquê não estavam apavorados.

    — Mortais me fascinam. Se apegam aos maneirismos até mesmo quando vão morrer.

    Tatsuo sorriu de canto, leve. Kiro imaginava se estava acostumado com situações assim. Algo no olhar daquele homem de vestes vermelhas, cavanhaque cafajeste e mãos de fogo transparecia uma paixão pelo conflito.

    — Estamos lado a lado, viu, Tigre Alado — dizia ele. — Eu sei quem é você, não me decepcione.

    Kiro apenas ouviu, sem tirar os olhos do demônio. Traçava rotas na sua mente sobre como vencer aquele novo inimigo peçonhento.

    O Predador saltou outra vez, agora para cima dos homens. Tatsuo pulou para o lado, mas Kiro ficou; não costumava desviar de ataques. Suas moléculas vibraram e as garras do demônio passaram pelo seu corpo intocável. Um passo à direita e um chute potente no tronco; Kiro aproveitou a brecha para jogar o Naraki metros distante.

    O demônio sorriu. 

    O chute seria o suficiente para derrubar qualquer homem comum, mas não aquele ser. Foi naquele momento que o Predador entendeu quem estava na sua frente.

    — Que honra enorme te conhecer. — E avançou novamente contra Kiro. — Será um prazer te arrancar o coração!

    O golpear do Naraki era rápido e teria acertado o tigre uma ou outra vez se não fosse o Passo Infinito. Seus quatro braços lhe garantiam um fluxo de socos brutal. Atacava com as unhas afiadas, de palmas abertas sempre buscando os pontos frágeis.

    Kiro tentava contra-atacar, mas quando se livrava de uma das mãos, outra vinha em sua defesa. Era impossível escapar de todas suas investidas; a criatura era ágil demais.

    Logo, um murro entrava, transpassando a carne impalpável do tigre; e outro e mais um. Kiro conseguia manter a intangibilidade por um tempo razoável, mas não de forma perene.

    Nesse momento, percebeu que até mesmo os meandros de sua habilidade aquela Cria do Naraca sabia. 

    Mais um segundo..!

    O Naraki conseguiu uma abertura e não hesitou em puní-la. Em formato de cunha, seus dedos esqueléticos miraram fundo na garganta de Kiro. Acabou. O Deva estaria morto.

    Uma explosão na mandíbula da besta.

    Com a voadora perfeita, Yuna, mergulhando como gavião, aproveitou-se da obsessão momentânea do Naraki para pegá-lo desatento. Ele cambaleou para trás e Kiro retomou o fôlego. 

    Yuna dançava com suas duas foices em mãos. Por mais que o demônio fosse rápido em seus movimentos, Yuna era simplesmente ligeira demais. Escapou de um agarrão dele, depois, de um soco descendente. Saltou e o chutou mais uma vez no rosto, de baixo para cima, arremessando-o tropeçante.

    Tatsuo lançou-lhe uma rajada firme de chamas assim que entrou em sua linha; tornara a própria vegetação incandescente. 

    Tudo se tornou fumaça.

    — Está bem? — Yuna perguntou.

    — Sim — respondeu Kiro, ajeitando a máscara. — Ele sabe quem eu sou e conhece minhas técnicas. 

    Ela vincou o semblante.

    — Merda… O que é isso que estamos enfrentando?

    — Ei! — Berrou Tatsuo. — Não é a melhor hora pra ficar de conversa!

    O Predador investia outra vez, rápido e nefasto. Tatsuo se botou no caminho, de punhos envoltos em fogo. O Naraki ria na troca de golpes contra o heta. Não tinha porquê esconder que estava surpreso com sua perícia.

    Por mais que Tatsuo acertasse a besta, nada parecia de fato o ferir. Sua pele não sangrava, sua carne não queimava. Os olhos do heta tentavam acompanhar seus quatro braços, mas se desatentou com um chute frontal, que atingiu-lhe o tórax, potente. 

    Antes que Tatsuo caísse no chão, o Predador agarrou um de seus calcanhares, o jogando para cima e apanhando seu pescoço com outra de suas mãos.

    O Naraki penetrou fundo nos olhos de Tatsuo.

    — Nada mal, nada mal. — O ser lambeu os lábios em regozijo. — Últimas palavras antes de morrer, homenzinho?

    Tatsuo sorriu largo.

    Vá se foder.

    O corpo inteiro do heta entrou em combustão, formando labaredas que ascenderam na clareira. De repente, não havia mais nada entre os dedos do demônio.

    O tornado de fogo bailou no ar e aterrissou atrás de Yuna. O corpo de Tatsuo se fez dentre as chamas sem abrir mão de seu riso sarcástico.

    As pupilas douradas da besta procuravam o terceiro elemento. Entre o verde desmedido da selva, outra vez o tigre se camuflou.

    Um dos braços foi puxado para baixo, com tamanha pressão que fez o corpo inteiro piruetar no ar. O nada armou o soco, mas a criatura bloqueou e segurou firme o pulso do homem invisível.

    — Eu posso te ver, Deva. — Sua voz transbordava malícia.

    Kiro mal conseguiu reagir ao estrondo que o atingiu no meio da face. O soco do demônio afundou seu rosto, o fazendo sentir uma dor que há muito não experienciava. 

    Aquele ataque desarmou Kiro por completo, que rolou entre as raízes da mata. Sentiu o craquelar da máscara e suas primeiras peças cedendo. Ela se desfez inteira quando apalpou seu nariz quebrado.

    O Naraki deu mais uma gargalhada maléfica.

    — Que brincadeira deliciosa. — Farejava o ar, arrumando suas joias nos pulsos. — Como é bom respirar o ar dos homens, Filho de Hu. Terei a honra de ter sua cabeça na minha coleção… e você também, homem-tocha.

    Yuna não pensou duas vezes em acudir Kiro.

    — Tudo bem. — Afastava sua ajuda, jogando fora os restos da máscara. — Não tire os olhos dele.

    Ela o ajudou a se levantar.

    — Minhas foices não funcionam contra ele — dizia. — Parece que tem couro de aço.

    Kiro se lembrou de seu tempo no Templo do Tigre Dourado.

    — Alguns Narakis não podem ser feridos por armas humanas — explicava, limpando o sangue que lhe escorria o nariz. — Só são atingidos por ataques de kouen.

    Tatsuo lutava com a besta, acompanhando até certo ponto sua velocidade. Sempre que estava prestes a receber um golpe fatal, afastava o demônio com lufadas de fogo.

    — Ou seja, só você pode matá-lo. — constatou ela.

    — Talvez. — O urja de Kiro começou a se misturar com o da natureza ao redor, fazendo borbulhar seu kouen circundando os antebraços. — Eles são capazes de formar e manipular kouen, assim como eu. Não será tão fácil. 

    Tatsuo, após uma intensa troca de ataques, recuou com um salto. Arfava pesado; o som de sua respiração se entrelaçava com o crepitar do fogo queimando os arredores da clareira.

    — Recuperado, Tigre Alado? — perguntou, debochado. — Se não se incomoda, preciso de uma ajudinha aqui.

    Kiro assentiu sem o fitar. Seus olhos estavam vidrados no Naraki. Tatsuo virou-se para reclamar algo, mas se deparou com as pupilas fendidas; os verdadeiros Olhos da Iluminação. 

    O Naraki estalou todos os seus dedos de uma só vez.

    — Quanto mais resistem, mais sinto vontade de saborear seu sangue. — Lambeu os lábios outra vez. — Acabei de renascer e, de cara, ganhei um banquete…

    E seus olhos travaram contato com os de Kiro.

    Tudo parou. Seus músculos se contraíram, seu corpo negou responder comandos. Assim como Eda e outros milhares de miseráveis, aquele avarento Naraki estava sob o domínio do Deva.

    Pela primeira vez, tirou o sorriso do rosto.

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