Capítulo 16: O Mestre do Ar

KIRO CALCULAVA CADA PASSO DIANTE O DEMÔNIO. O cuidado para que o contato visual não fosse quebrado era tamanho que o tigre nem mesmo falava.
Tatsuo e Yuna observavam, coadjuvantes à arte do Deva, o sorriso ardiloso do Naraki sumir. Contudo, diferente de todas as outras vítimas de Kiro ao longo dos anos, era possível ver a musculatura do ser se contrair e remexer por debaixo da pele.
— É um bom truque na manga, garoto. — Agora, sua voz era mais grave.
Kiro se aproximava sem ao menos piscar. Ao redor de seu antebraço direito, o kouen borbulhava esmeralda. A essência que somente os escolhidos poderiam manipular. De seu punho, uma lâmina energética se formou, o Sabre Flamejante do Tigre Branco.
Enfim, o tigre estava frente a frente com o Predador. As pupilas fendidas não perdiam o foco.
— Serve a Havakai, demônio?
A pergunta devolveu o riso mordaz ao Naraki.
— O que te faz pensar isso? — A menção àquele nome manifestou tons mais graúdos de sua fala. — Pois não sirvo a nenhum Asura, Filho de Hu. Todavia, o maldito me aprisionou naquele medalhão. Se trama planos de vingança, serei seu maior aliado… Deva.
Kiro cerrou os olhos.
— Nem fodendo.
O Sabre rasgou o ar.
Um clarão cegou a todos na clareira quando o kouen do tigre encontrou o couro do Naraki. No instante após, o estrondo fino e metálico cortou os tímpanos. Kiro cambeteou para trás, levando as mãos aos olhos invadidos. Tatsuo e Yuna não foram exceções ao lampejo.
A mão de unhas afiadas agarrou as vestes de Kiro, pelo peito. Com toda a força de seu corpo, agora liberto do Olhar da Iluminação, o Predador arremessou o tigre metros e metros selva adentro.
O Naraki se virou, encarando uma última vez Tatsuo, e sumiu com um salto, perseguindo Kiro. Perdendo-o de vista, o heta não pensou duas vezes antes de o seguir.
Merda, merda, merda!
Yuna formou o mudra do gavião e, quando reabriu os olhos, podia ver cada veia de essência da floresta. Enfim, se juntou à caça de Kiro e do Naraki.
O silêncio posterior à batalha só dava palco ao estalar da queimada que o heta deixou para trás. Sob a copa densa da clareira, bailavam a poeira e as cinzas, além das brasas que logo se apagavam pela umidade da selva de Vento Gentil.
O odor de enxofre preenchia o lugar, enchendo de repulsa qualquer um que pisasse ali. Eda não controlava os espasmos de seus dedos. Sua boca parecia querer balbuciar algo, mas suas faculdades mentais pareciam todas terem lhe deixado.
À deriva, morreria no meio da mata fechada de lugar nenhum.
O chão estava revirado pelos corpos que lutavam como animais e manchado de sangue. O vermelho encharcava a terra e o medalhão, partido em mil pedaços, jazia espalhado. Entretanto, o maior sinal de que um heta houvera passado por ali eram as brasas ainda ardentes.
A visão turva conseguiu diferenciar movimentos à frente. Surgindo do verde, um homem parecia flutuar, sentado de pernas cruzadas… no nada.
O Anjo da Morte… meu fim chegou.
Sem dizer uma palavra, Tai planou até ele. As folhas se levantavam em pequenos redemoinhos quando passava, como se respondessem à presença do Mestre do Ar. A cena impetuosa das entranhas de Eda espalhadas ao redor de seu corpo e seu abdômen aberto cessou qualquer uma de suas dúvidas.
— Você abriu o selo — dizia, calmo. Não havia raiva em seus olhos, apenas empatia. — Mas não será o único a pagar o preço.
Conforme Tai se aproxima, Eda buscou forças para emanar qualquer som.
— Eu sei… sei seu verdadeiro nome… — E tossiu sangue após a garganta falhar. — Me leve daqui, Anjo… Me dê uma segunda chance…
Tai o encarou mais intenso. Mais folhas esvoaçaram no entorno do quase cadáver. De repente, os pulmões de Eda já não conseguiam puxar ar. Por mais que tentasse, um vácuo o cobria. Mesmo com o desespero fruto da adrenalina, nada podia fazer; Eda sufocou no vazio, finalmente se dando por vencido.
Que siga um caminho iluminado na Grande Roda.
Um sopro de vento passou. A atenção do Regente se voltou para o leste, onde árvores tremiam. Nada estava terminado.
A água da cachoeira descia em violentas torrentes, pulverizando no ar com minúsculas gotículas. A luta havia se arrastado até ali, onde o som forte da corrente abafava gritos e golpes.
Kiro se movia como sombra, desviando das unhas e investidas que rasgariam-lhe a carne. O Naraki avançava sobre ele, tentando encontrar apenas o momento em que sua intangibilidade se esgotaria por segundos.
Precisaria acertar somente um golpe.
Tatsuo o acompanhava, mantendo as chamas contidas, moldando-as em círculos protetores que giravam como sóis em miniatura. Não entendia como seu fogo não causava efeito no demônio, mesmo que viesse do Naraca.
Arrastou a gente pra essa cachoeira justamente para minhas chamas se tornarem mais fracas… É um miserável.
Yuna, pousada em uma rocha escorregadia no topo da queda-d’água, enxergava com sua Visão Absoluta o que os outros não podiam. Seus olhos analisavam cada movimento, cada detalhe.
Sinapse.
No momento em que Kiro se aproximou para contra-atacar, Yuna percebeu um pulsar diferente em todo o corpo do Naraki. Foi neste instante que ele se afastou.
Aquela essência esverdeada que somente a Visão Absoluta podia enxergar cobria todo o couro do ser; a mesma essência esverdeada que Kiro, enquanto Deva, conseguia manipular.
— Agora entendo… — Yuna falava para si. — Só pode ser isso.
Poucos segundos e o verde retornou ao corpo da criatura. Conforme a condição voltava, o Predador tornava ofensivo outra vez. Era como se seu estilo de luta estivesse condicionado àquilo.
A gaviã aguardou; contou cada segundo. Tatsuo lançava turbilhões de chamas, Kiro cortava com seus Sabres energéticos, todavia, enquanto aquela camada de kouen vestia o Naraki como uma carapaça, nada lhe feria.
Yuna pousou sua mão no cabo de uma das foices. Apertou-o. Preparou o lançamento, com a precisão que sempre exercia.
Três… dois…
A energia verde sumiu. O sibilar metálico cortou o ar da selva mais uma vez.
No momento em que o demônio recuava dos ataques dos dois, se deparou com o vulto prata reluzindo em sua direção. Contorceu seu corpo como animal.
Não era comum se esquivar das garras da gaviã. Mas confirmou sua suspeita. Diferente de outrora, o fio do projétil rasgou de resvalo o peitoral do monstro, enfim tirando-lhe sangue e um grunhido frustrado.
Kiro arregalou os olhos e de pronto correu sua visão para Yuna.
— Carapaça! — gritou ela. — Ele tem uma armadura de kouen que se apaga!
O tigre não precisou de mais explicações. Assim como seu Passo Infinito, o Naraki não conseguia manter aquela defesa impenetrável de maneira perene. Por isso, quando o fluxo precisava se fechar, o Predador recuava, o que também servia para tanto Tatsuo quanto Kiro tomarem fôlego.
Os três se entreolhavam, em meio às arfadas profundas.
— Descobriu um de meus segredos, mocinha. — Não tirava os olhos de seus dois oponentes. — Parece que são um grupo muito mais qualificado do que imaginei…
Antes que pudesse reagir, Kiro virou em um passo súbito, golpeando o flanco da criatura. As mãos do Predador interceptaram parte do ataque, mas ele cambaleou; era o momento.
De imediato, Tatsuo ergueu os braços e invocou uma labareda que caiu em espiral, chocando-se com a carapaça energética do Naraki antes que ela se reformasse por completo. O impacto fez o chão vibrar, tornando a torrente de água em vapor.
Yuna observava o padrão do kouen pulsando sob a pele verde. Agora, era um abrir e fechar contínuo, como se o demônio estivesse cada vez mais cansado.
— As janelas de defesa! — ela gritou de novo. — Estão vacilando agora!
Kiro respirou fundo e seus olhos fendidos faiscaram.
O kouen em torno de seus braços girava como redemoinhos, formando o Sabre Flamejante. Ele esperou o ritmo, as pulsações do demônio.
O Naraki já não sustentava aquele sorriso irônico dantes. Ofegava, suava como homem. Agora, duvidava de sua vitória. Toda aquela confiança era incinerada, pouco a pouco, pelas chamas de Tatsuo; destruída, pouco a pouco, pelos ataques de Kiro.
Mesmo com seus quatro braços, parecia não conseguir mais acompanhar os movimentos do Deva. Estava mais do que claro que havia entrado em um estado agudo de foco. Kiro não desperdiçava qualquer moção; cada investida precisa, cada golpear com pressão, retidão.
Yuna podia ver a carapaça de kouen do demônio cintilando cada vez mais forte. Podia ver também que aquilo acabaria logo.
Apagou.
O impacto veio com um clarão. Um corte limpo; a mão do braço inferior esquerdo do Predador voou, decepada pela técnica do Deva, espalhando sangue escuro que fluiu na correnteza junto ao membro mutilado.
O rugido do Naraki fez as aves fugirem das copas e a selva pareceu estremecer. No mais puro furor, afastou Kiro com uma braçada reativa.
Yuna sorriu. Tatsuo sorriu. Kiro resplandeceu.
— Insetos… — A fala dele soou em muitas vozes, sinfônica e grave. — Há quanto tempo não sentia dor… — O vermelho tingia a água como piche. Nunca antes o fedor de enxofre foi maior.
Mirou todos, lúgubre e vil. Uma de suas mãos se foi, porém era seu orgulho o mais ferido. Sabia ele mesmo que não venceria aquele embate, mas não bateria em retirada humilhado.
Num salto monstruoso, ele focou Yuna. As pupilas douradas ardiam e os lábios salivaram por um instante.
Outra vez, as pernas de Yuna a deixaram na mão. Seus músculos hesitaram com aquela imagem grotesca voando em sua direção. O Naraki dividia o ar com o restante da força que tinha.
Por fim, sua feição era vitoriosa. Kiro, sem pensar, saltou atrás — porém, tarde demais. Os rostos do Predador e de Yuna jaziam separados por centímetros.
Mas um vendaval rugiu.
O impacto de uma corrente de ar invisível o atingiu em cheio, lançando-o por dezenas de metros mata adentro. O choque do Naraki contra as árvores e raízes estrondou quando perderam seu corpo de vista.
A água da cachoeira se abriu ao meio por um instante, revelando-o, suspenso no ar, envolto em brumas e folhas flutuantes.
Tai, o Mestre do Ar.
— Em tempo… — bufou Tatsuo, aliviado.
As vestes do regente se moviam com o fluxo de vento que o acompanhava. O olhar dele se fixou no Naraki, que se erguia do meio dos arbustos com o riso doentio.
— Insetos… — zombou o demônio, cuspindo rubro. — Não passam de insetos insignificantes…
Tai não respondeu. Abriu a mão direita e o ar explodiu. O corpo do Naraki foi empurrado contra as rochas com violência. Tentou se levantar, mas outra rajada o lançou para trás.
E outra.
E mais outra.
Era como se o próprio Tecido o repelisse; brincasse com ele.
O vento não o deixava se aproximar. Tai movia as mãos em gestos mínimos, controlando o fluxo invisível com a precisão de um autêntico mestre da Arte do Vento; o Herdeiro do Tornado.
A cada tentativa de investida, o Naraki era arremessado de volta, esmagado, repelido. Aquele homem flutuante jogava o ser de lado a lado, tal qual uma criança com um boneco de pano.
A natureza ressabiada de Kiro não impediu que ficasse boquiaberto com o poder daquele sujeito de cabelos longos, olhos estreitos e vestes verdes.
— Nunca vi algo assim — disse entre dentes.
— É o meu professor — murmurou Tatsuo, quase em reverência. — Nada que se mova pode com ele, acredite.
O Predador urrava de frustração. As joias tilintavam, rachadas pela força que o golpeava. Tentou projetar seu kouen numa medida desesperada, mas o ar o dissipava antes mesmo que tomasse forma.
— Você não é homem — rugiu o Naraki, de cenho furioso mesmo que chocado. — É mais forte que o Deva! Eu te declaro o mais honrado desta terra, humano!
As folhas ao redor subiram em espiral conforme se achegou de Yuna e a dupla que se aproximava.
— Recuem. — Mostrava um sorriso leve, como sempre. — Já fizeram demais, garotos.
O Naraki bufava raivoso, ignorado outra vez pelo regente. O Predador tentou, então, saltar novamente para pegar Tai desprevenido. Era impossível; uma pressão tão grande o esmagava contra o chão, como se a gravidade estivesse ainda mais potente.
— Você não pertence a este mundo. — A voz de Tai ecoou, grave, enquanto retomava a atenção ao inimigo. — E mesmo o Naraca há de rejeitar o que é impuro.
O golpe final veio como uma muralha invisível.
O ar condensou-se num estrondo, empurrando o Naraki com tamanha força que o lançou para além da cachoeira, desaparecendo nas sombras da floresta.
Por alguns segundos, nada se moveu. Apenas o som da água retomando seu curso.
Uma pontada perfurou as costelas do regente, fundo como um punhal. Tai cambaleou, levando a mão à dor.
As raízes.
As malditas raízes que pulsavam sob sua pele, como se quisessem escapar. A dor da penetração o atravessou, fria e ardente ao mesmo tempo.
Tatsuo entendeu de pronto e se aproximou, preocupado.
— Tai?
— Não… — Ergueu a mão, impedindo-o. — Estou bem. — O suor frio o denunciava. — Tatsuo, aguarde com eles a chegada da equipe. Volto logo.
Antes que obtivesse resposta, Tai zuniu em voo rasante, atrás do demônio. Em velocidade, desviava dos troncos e da vegetação densa. Tentava farejar o ar, mas os rastros daquele ser haviam se perdido.
A perfuração entre as costelas mais uma vez. A agonia em seus pulmões o fez parar sua busca. Sentiu vibrar a voz serena de Jun Lei em seu imaginário.
Ele se foi, mestre. Devemos contatar a Confraria.
Pouco distante, uma silhueta observava a cachoeira. Imóvel, sentia o ar vibrar, além do cheiro do sangue e enxofre alcançar suas narinas.
— Só pode ser isso… — murmurou sozinho, segurando firme a empunhadura de uma de suas espadas. — Restam poucas dúvidas…
O vento soprou, levando seu manto. Ele se virou, desaparecendo entre as árvores. Kenshimaru nunca antes esteve tão perto de seu grande objetivo quanto agora.

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