AS BANDEIRAS DO TEMPLO ERAM LEVADAS PELO VENTO, que trazia consigo o perfume das lótus recém abertas. Kiro lembrava-se bem desses momentos, quando, no intervalo dos treinamentos com Hu, se colocava a refletir nos jardins vultosos da Casa do Tigre.

     O céu, tingido de lilás, refletia o pôr do sol, pintando os ornamentos de pedra escura com os últimos raios de luz. Nesse crepúsculo, as aves preenchiam o alto, aproveitando os últimos instantes do dia, como se voltassem apressadas aos ninhos.

    Kiro sentava-se em um ponto alto, onde poucos outros monges tinham acesso. Dali, com mãos unidas e os olhos baixos, podia desfrutar da vista da fechada mata tropical e o mar de nuvens no horizonte. 

    Atrás dele, os passos soavam leves, inaudíveis, mas o eco de sua presença era inconfundível.

    — Sozinho novamente — começou Hu. Sua voz era sempre serena, porém grave como trovão. — Pergunto-me o porquê de não se misturar com os outros cenobitas1.

    Kiro demorou a responder. O vento brincava com seus cabelos, mas também alentava os músculos doloridos. Ainda não desviara o olhar do longe.

    — Eu sou diferente — respondeu, enfim, com cautela. — Não os entendo e eles não me entendem.

    Hu caminhou em círculo ao redor, fazendo seu gi branco varrer o chão gasto. O som de seu graúdo japamala tilintava, misturando-se ao oscilar das imensas bandeiras.

    — Diferente… — repetiu Hu, pensativo. — De fato; você não é como eles. Porém, não quer dizer que não possam conviver. Isso é algo que precisa compreender.

    Kiro ergueu o olhar cansado. Os olhos do Tigre, um âmbar brilhante, refletiam certa compaixão, mesmo sem nunca perder o rigor em igual medida.

    — O quê preciso compreender então, mestre?

    — Que não pode se esconder, Kiro. — Hu se aproximou mais e tragou seu cachimbo. — Você está entre bênção e maldição, filho. É parte de mim, então tem que liderar aqueles que me seguem. É isso que a Roda escolheu para ti. — Os dedos de Hu apertaram levemente o ombro de seu discípulo — E você ainda teima em temer o que a Roda guarda para você.

    Kiro respirou fundo, tentando ocultar o desconforto. Hu percebeu; sempre percebia.

    — Eu não temo o destino — respondeu, mais por orgulho do que por convicção. Ele mesmo não cria em suas próprias palavras.

    Hu deu-lhe um sopapo bruto na nuca, sem medir força. Kiro engoliu seu ego. 

    — Não diga palavras vazias.

    O silêncio caiu entre os dois. O rugido de uma brisa mais forte fez esvoaçar folhas mortas. 

    Kiro se viu pequeno, humano. Cerrou os dentes. Hu sempre parecia ler sua mente; sabia sempre quando titubeava nas convicções. O Tigre o conhecia como ninguém; como se ambos compartilhassem fragmentos da mesma alma.

    Hu sentou-se ao lado de Kiro, assistindo o sol ser engolido pela linha do horizonte. A fumaça de seu fumo vacilava acima quando expelidas pelas narinas.

    — Há um mundo fora desta ilha. Seu tempo aqui está chegando ao fim, e você sabe disso. — A resposta de Kiro se resumiu a um aceno de cabeça. — Por isso, precisa entender que existe uma rota já traçada para você; é diferente dos outros não pelas marcas nas suas mãos ou pelas habilidades que lhe ensino. Você é o Deva; aquele que partilha da minha essência, garoto.

    Kiro sentiu seus olhos encherem d’água. Mesmo que tentasse se conter, suas emoções não obedeciam à ordem alguma; nem mesmo na frente de seu mestre.

    — Isso… não me diz nada. — Uma lágrima solitária correu seu rosto.

    Hu respirou fundo e soltou um longo suspiro. Kiro passou logo a mão na face, envergonhado.

    — Por mais sozinho que se sinta, quero que aceite quem é. Os Devas que vieram antes de ti, aqueles que treinei da mesma forma, trilharam o mesmo caminho que você trilhou e trilhará. — Tragou seu fumou outra vez. — Apenas… não fuja de sua missão.

    O menino tentava ao máximo não demonstrar seus sentimentos; não queria parecer frágil na frente de ninguém. Contudo, Hu pouco se importava. Constatava que os homens tinham um controle débil de sua própria psiquê.

    Kiro era parte de Hu, mas ainda era homem de carne.

    — E eu tenho alguma escolha? — Palavras saiam entre o choro contido.

    Hu se levantou vagaroso.

    — Não… não tem. — E sumiu no ar, tornando invisível dentre os últimos raios de sol.


    O som da chuva despertava lembranças mais doces.

    Kiro e Yuna deviam ser três ou quatro anos mais jovens quando, abrigados sob um alpendre de folhas de bananeiras, resistiam a uma tempestade nas sombras da selva de Vento Gentil. 

    A noite era desconfortável ao extremo e o nevoeiro subia do vale quando a manhã se aproximava. Yuna preparava um extrato de babosa e álcool. O olhar dela era leve, mas sempre guardava uma pontinha de preocupação. Só Kiro conseguia ler.

    — Essa foi feia — disse ela, manuseando estopa. — Tá doendo muito?

    Kiro acompanhava seus movimentos com o olhar. Aquela moça que encontrou no início de sua jornada, sozinha, acabara por se tornar sua parceira nas trincheiras. 

    Hu o ensinou o que o mundo deveria ser, e Yuna ensinou-lhe o que o mundo era de verdade.

    — Só um pouco. — Uma lança perfurou seu ombro esquerdo, num movimento em espiral. —  Não é nada demais.

    — Pare de tentar bancar o durão. — Ela começou a limpar a ferida depois de descolar a camisa da ferida, grudada pelo sangue seco à carne. Kiro chiou contido quando o álcool queimou o machucado. — Não precisa ficar tentando me impressionar toda hora.

    Mesmo com a chuva torrencial, o cansaço de uma emboscada mais cedo, o ferimento que Kiro sofrera; Yuna parecia indiferente a tudo. Ela mesma já havia perdido tudo uma primeira vez.

    Ele suspirou. 

    — Quase falhei hoje.

    Yuna, ajoelhada diante dele, seguia limpando a lesão. Delicada, aplicou a solução que preparara minutos antes. A babosa aplicada diretamente ajudaria na cicatrização e acalmaria a pele. 

    — Então já sabe até onde pode ir. Vamos tomar mais cuidado da próxima vez, tá bom? — Aplicava pressão com o pano encharcado, diluindo o antídoto na escoriação. — Se não pode ficar intocável todo o tempo, seja mais precavido, meu bem.

    Kiro fitava, logo à sua frente, as sacas com três cabeças de membros procurados do Dente de Ferro que foram suas vítimas naquele dia. Chovia tanto que não conseguiram ir ao posto de troca.

    — Escapamos hoje — murmurou Kiro, encontrando enfim o olhar dela. — Mas, se um dia eu falhar de novo…

    — Ah, cala a boca — Ela riu, leve. — Nem parece o cara corajoso que conheci.

    Vendo-a tratá-lo com tamanho esmero e carinho, a aflição já não balançava mais Kiro. Ela era a leveza que o completava; que não deixava que o tigre fosse engolido pela paranoia.

    — Ainda não entendo por que… Por que me seguir? — Kiro desviou o olhar. — Não tenho nada a te dar em troca pelo o que faz por mim. Só… te coloco em perigo.

    Yuna não respondeu de imediato. Continuou aplicando, lentamente, o remédio. Riu de canto, sutil. 

    — Não diga isso. — E então pegou-lhe pelo queixo, retomando o contato visual. — Eu te amo, idiota. E nada vai me tirar do seu lado, ouviu?

    Os olhos de Kiro brilharam, hipnotizados pelos da gaviã. Ela não precisou de uma resposta, pois a alma do tigre o denunciava através das pupilas. A tempestade abrandou-se, fazendo soprar uma brisa mais tenra.

    Ela recolheu a estopa e a solução curandeira. Fez um curativo rápido. Levantou e, após os narizes se encontrarem, beijou-lhe os lábios, com tamanha ternura que Kiro ainda não acostumara. Não tirou os olhos dela, sem conseguir mentir para seu coração.

    Vou te proteger. Ninguém colocará as mãos em você. 

    Nunca. 

    Nunca. 

    Nunca. 

    Eu te amo, Yuna.


    Piscou forte, repetidas vezes. Kiro voltou ao presente.

    O alto da madrugada imperava; uma noite clara, de lua grande e sinfonia de cigarras. Uma fogueira prestes a morrer iluminava vacilante o interior escuro da gruta.

    O tigre havia se rendido ao cansaço depois de tudo. Os caçadores, os hetas… o demônio. Prometeu que não dormiria naquela noite, esperando pela volta do Naraki, depois de saber que Tai o deixou fugir. 

    Mas Kiro ainda era homem de carne.

    Diante dele, a poucos metros, sua fiel parceira jazia sentada e de pernas cruzadas. Um filete de luz lunar invadia a caverna de um fenda do alto. De cabeça baixa, não respondeu quando Kiro a chamou.

    A gaviã também havia se rendido ao sono.

    Em suas mãos, conseguiu enxergar quando pressionou os olhos. Cacos e fragmentos da máscara que o Predador fez em pedaços. Yuna dormiu enquanto consertava o disfarce de Kiro.

    Por que faz tanto por mim? Por que se importa tanto?

    Kiro a observou em silêncio por alguns instantes. As peças de cerâmica ainda estavam espalhadas sobre o chão, junto com as ferramentas.

    Dolorido e com a musculatura enrijecida, se abaixou, recolheu tudo e guardou com cuidado. Ficou ali parado, observando o rosto exausto de Yuna sob a luz laranja da brasa. 

    Uma mecha de cabelo caía sobre o olho dela, e Kiro a afastou com delicadeza. Ela resmungou entre o sono, mas nem cogitou despertar.

    — Aprendi a não mais te perguntar por que se sujeita a isso — sussurrava, baixinho. — Invés disso, agradeço por ser tão sortudo.

    Deitou-a nos tecidos que serviam de colchão, com toda a cautela do mundo para não a acordar. Cobriu-a com a manta e ajeitou os pertences espalhados. O vento do lado de fora uivava, enfim, dando trégua àquele calor que, mesmo à noite, não se ia.

    O corpo dele, contudo, não encontrava mais descanso. As vozes do Naraki, o poder de Tai, o cheiro de enxofre; tudo o perseguia. 

    Resolveu tomar um ar sob a luz da lua. O cantar das cigarras se tornou ainda mais alto, assim como o coaxar dos sapos. Vento Gentil lembrava e muito a ilha onde cresceu, no Templo do Tigre Dourado. Por um mero momento, podia jurar ter visto o próprio felino gigantesco serpentear pela selva, reluzindo em ouro. 

    Esfregou os olhos

    — É, mestre… o destino chegou a mim, como o senhor sempre me falou. — Pensava alto, de olhar perdido e correndo as mãos pelos hematomas. — Mas não sei se vou acatar o seu chamado. Pelo menos… não agora.

    Kiro suspirou. 

    Eram agridoces as memórias de seu mestre e da vida monástica. Lá, se preparou para algo que nunca soube o que era. Passou as mãos pelos cabelos, tentando dissipar a mente enevoada.

    O som do rio era constante. O mesmo rio que cortava a ilha, que alimentava os campos e que escorria para fora das bordas de Vento Gentil, despencando em direção ao Abismo. 

    Horas se passaram; no horizonte, o céu começava a clarear.

    Ele, sentado sobre pedra, encarava as próprias palmas. Suas palmas marcadas. O que o grifava de estar entre bênção e maldição. 

    O sangue de inimigos, misturados. Pensou naqueles que tentaram e tentariam ainda o capturar. Um Asura na sua espreita; um ser que nem mesmo um Deva poderia afrontar.

    Sentiu medo.

    Um medo antigo, primal, o mesmo que sentira diante de Hu pela primeira vez, vinte anos atrás. Hu dissera que a Grande Roda já havia escrito seu destino; que nada que fizesse poderia alterar a ordem cósmica de sua vida.

    Era apenas mais um peão. Por isso, não importava o quanto fugisse, a vontade divina sempre o perseguiria e o colocaria de joelhos se fosse preciso. As palavras de Hu, logo, nunca deixavam sua alma.

    Apenas não fuja de sua missão.

    Pois bem, estava decidido. Iria até os hetas na manhã seguinte, assim como fora convidado depois da batalha. Kiro não fugiria mais da Grande Roda.

    1. Monges que vivem em comunidade, diferente de eremitas, que se isolam. ↩︎

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