A CHUVA PERSISTIA, PERENE, fazendo da trilha de Vento Gentil um lodaçal. O cheiro de terra molhada misturava-se ao das folhagens esmagadas sob os passos do Tigre Alado. 

    Kiro caminhava em silêncio, com o Corpo Oculto ainda ativo, ao lado de Yuna, pousando uma das mãos em seu ombro para que o efeito se estendesse a ela. As gotas deslizavam por suas silhuetas invisíveis, deixando rastros quase imperceptíveis na lama.

    No alto, entre as copas das árvores, uma graúna sobrevoava a trilha. Seu canto quebrou a monotonia da chuva. 

    Kiro parou. 

    Os olhos percorreram o entorno. Algo não soava natural naquele voo. O animal deu um último giro e seguiu em direção contrária deles.

    Mais adiante, um vulto cortou a estrada.

    Kenshimaru vinha do povoado, com um chapéu de palha abaixado sobre o rosto e capa surrada de lama. Seus sentidos, aguçados pela vida de mercenário, captaram algo que não podia enxergar. 

    Parou no meio da trilha. O vento soprou, desviando a chuva por um instante.

    Kiro conteve a respiração. Preferiu não reagir. Passou rente a ele, sem som. O ronin, no entanto, virou o rosto exatamente na direção em que o Tigre Alado estava. Por um segundo, os olhares se cruzaram.

    — Estranho… — Kenshimaru vidrava o vazio; o vazio que encarava de volta. — Não… estou imaginando coisas.

    O som da chuva retomou seu ritmo. O ronin ficou parado por mais alguns segundos, antes de continuar seu caminho. A graúna cantou outra vez.


    Na cabana, Tatsuo e Gojin trocavam opiniões acaloradas enquanto Yuuka fazia anotações em um caderno molhado.

    — Ele não confia em ninguém pelo visto, e nem devia — dizia Tatsuo. — Mas aposto que não tem más intenções. Eu lutei ao seu lado. Um pouco arrogante, talvez… mas aliado.

    — Acredito que ele não tinha outra opção — respondia Yuuka. — Pelas circunstâncias em que o combate foi travado, a aliança de vocês era quase obrigatória. 

    Gojin andava lentamente de um lado a outro, pensativo e de braços cruzados. 

    — A questão é simples: podemos ou não contar com esse Deva? Ele não parece entender a gravidade do que está ocorrendo por aqui. — Gojin se sentou ao lado de Yuuka, acompanhando sua escrita com o olhar. — Me cheira como problema.

    Tai, flutuando, abriu um meio sorriso enquanto revisava o comunicado que enviaria à Confraria de Baaranishan. 

    — Contar com ele, podemos. Mas controlar… nunca. Os Devas são diferentes de nós; não seguem um regimento ou ordens que não concordam.

    Gojin franziu o cenho.

    — Que seja; mas não podemos deixar que faça o que bem entender. A Roda o escolheu, mas a alma dele não vale mais do que a minha.

    — Não foi isso que eu quis dizer, Gojin — retrucou o mestre. — Um Deva é um escravo de um carma infinito; um ciclo de reencarnações que nunca cessará. Reza a lenda que a missão de cada Deva é acabar com o carma de seu antecessor, e é isso que os acorrenta a um destino que jamais poderão escapar.

    — Por isso, estão entre bênção e maldição.

    — É o que dizem.

    Yuuka alongou os dedos depois de alguns parágrafos em sequência e se recostou nas poucas almofadas. Contudo, não deixou de prestar atenção nem por um momento na fala de seu mestre.

    — Acha que… ele se esconde aqui porque foge desse destino?

    A conversa cessou quando bateram à porta. 

    Três pancadas firmes. Gojin levantou-se, com o instinto alerta. Tai, porém, fez um gesto com a mão para que esperasse.

    — Entre.

    A porta abriu-se lentamente, revelando um espadachim que retirava seu chapéu de palha, ensopado pela chuva. O ronin fez uma mesura para Tai e removeu a capa, deixando escorrer a água.

    — Espero não chegar em má hora. — A voz de Kenshimaru era firme, mas cortês. — Peço uma conversa com o regente desta fração.

    Os hetas pouco demonstraram surpresa, trocando olhares rápidos. Talvez fosse o líder de alguns dos povoados querendo tirar algo a limpo — mesmo que aquele homem parecia jovem demais para isto.

    Tai assentiu, pousando lentamente seu pergaminho na mesa. 

    — O que lhe traz até nós, morador?

    Kenshimaru caminhou até o centro da cabana e sentou-se onde há pouco Kiro havia estado. Tirou então, de dentro da roupa, um pequeno selo de cera carmesim. Colocou-o sobre a mesa.

    — Não sou daqui, regente. Talvez já tenha ouvido falar.

    Kenshimaru falava sobre o emblema da Lótus Carmesim no selo que apresentara. Os hetas se entreolharam. Tatsuo arqueou a sobrancelha enquanto Gojin seguia avaliando-o com atenção.

    — Um membro da Lótus? Aqui, nesse fim de mundo? — indagou Tatsuo. — Tem mais quantos com você?

    Kenshimaru pensou por um ou dois instantes.

    — Me chamo Matsushio Kenshimaru e estou sozinho. — Mantinha o tom controlado. — Não levo o nome da Lótus ou de alguma família; o que me trouxe a Vento Gentil foi… uma missão pessoal.

    Tai cruzou os braços. 

    — Missão especial?

    O ronin o fitou diretamente nos olhos. 

    — Um homem especial.

    O ar ficou denso de repente. Tatsuo coçou a cabeça, Gojin firmou o olhar em Tai. Jun Lei interrompeu sua meditação pela primeira vez.

    — E como acha que poderíamos lhe ajudar? — perguntou Tai. 

    — Quero informações. — Kenshimaru respondeu, sem hesitar. — Hetas estarem nestas terras não é menos incomum do que um espadachim da Lótus. Sei que sabem mais do que eu.

    Tai permaneceu em silêncio por longos segundos, avaliando o homem. Aquele rapaz carregava certeza na fala, quase num tom desafiante, respeitando-os, porém sem um pingo de receio de consequências.

    — Podemos te ajudar, sim. — Tai, por sua vez, não alterara o tom de voz. — Se for uma boa causa; por que não?

    Kenshimaru não esboçou reação. 

    — Preciso de informações sobre o Tigre Alado. — O recinto se alertou um pouco mais. — Estão aqui por causa deles?

    Tatsuo riu de canto e deu de ombros, irreverente.

    — Claro que não, apesar de sabermos sobre essa lenda. Se quiser eliminá-lo, terá muito trabalho, eu diria.

    — Não — retrucou o ronin —, não são uma lenda; vocês devem saber bem disso. Veem o que não vejo.

    — E no que consiste essa sua busca? — Gojin se inclinou para frente, sentado ao lado de Yuuka.

    Kenshimaru escolheu suas palavras.

    — Digamos que… quero retribuir um favor que eles me fizeram.

    “Eles”… Sabe que são uma dupla.

    — Eles? — Tai se fazia de desentendido.

    — Regente, receio que estejam me tratando como tolo. — A fala de Kenshimaru era postada, firme. — Pois saibam que presenciei parte da operação dos senhores ontem. — Os hetas se encararam outra vez, ainda mais sérios. — Não me interessa sua missão, mas sei que encontraram o Tigre Alado, assim como eu mesmo fiz dias atrás.

     Aquele espadachim parecia saber mais do que deveria. Sua atitude afrontosa deixara Gojin desconfortável; aquela postura convencida era, no final das contas… semelhante a dele mesmo. Dava-lhe nos nervos observar que aquele jovem não seguira sequer um dos ritos e etiqueta para se dirigir a um regente da maneira apropriada.

    — E acha que devemos explicações a você? — Inquiriu Gojin.

    — De maneira alguma, mas se lutam ao lado de quem luta ao meu lado, logo acredito que podemos nos ajudar.

    — O combate ao lado do espectro de Vento Gentil foi mero acaso, sr. Matsushio. — Tai interrompeu, de tom solene, contudo, incisivo. — A incursão saiu de controle e quis o destino que as coisas seguissem assim. Sobre o Tigre Alado, não temos como confirmar sua identidade, se é isso que tanto lhe interessa.

    — Veja, regente, o Tigre Alado me salvou contra o Dente de Ferro. Por isso, os devo a vida. — O ronin recolheu o selo da Lótus Carmesim e o guardou. — Apenas me diga se ele está aqui. É tudo o que peço.

    Tai respirou fundo. Seus discípulos o encararam como se esperassem que não revelasse a verdade. Sabiam bem o quão imprevisível poderia ser seu mestre de vez em quando.

    Kenshimaru e Tai se encaravam. O Mestre do Ar captou bem o que o ronin queria saber. Nos seus olhos, via verdade; na sua voz, ouvia certeza. Resolveu confiar-lhe a informação. 

    — Sr. Matsushio… a Confraria chegará em breve. — Kenshimaru arregalou os olhos. — Se é essa a resposta que deseja ter.

    Kenshimaru cerrou os punhos, controlando a conduta pétrea de um espadachim da Lótus Carmesim.

    — Eu sou grato, mestre.

    Depois de uma mesura, se retirou, silencioso como o vento. Do lado de fora, a chuva seguia, mas agora jamais conseguiria abalar um Kenshimaru que até mesmo esboçava um sorriso contido, que escondia de todos.

    Yuuka o observou ir embora pela janela. 

    — Será que foi certo revelar isso, mestre? Ele pode se colocar em perigo.

    Tai concordou, tornando sua atenção à carta manuscrita aos confrades.

    — Talvez, mas não se preocupe. É importante que tenhamos outros olhos pela ilha. Além do mais, cada homem sabe o fardo que carrega; esse espadachim parece carregar um dos pesados.


    No alto, a graúna pousou sobre um tronco e sacudiu as asas molhadas. Os olhos, de um amarelo quase inatural, se fixaram na direção do povoado ao longe. 

    O corpo da ave distorceu-se em espasmos, ossos estalaram e o bico retraiu até dar lugar a um rosto humano. O corpo encurvou-se, transformando-se em um homem magro, de pele pálida e cabelos finos e claros.

    Kumo ajeitou o capuz e limpou a lama do rosto. Caminhou calmamente pela estrada enlameada, acenando carismático para os aldeões conforme se aproximava do vilarejo. Seu sorriso era gentil, fraterno e, até mesmo, delicado.

    — Ah, vovó… cuidado com o degrau. — segurou o braço de uma idosa que carregava um cesto de colheita. — Se cair, pode se machucar feio.

    A velha sorriu, agradecida. Kumo devolveu o gesto com doçura, e seguiu caminho. 

    Seu passo não deixava pegadas. Sob as vestes marrons, um leve calor pulsava no peito; um calor já conhecido por ele. Um dos medalhões pendurados dentro da roupa aquecia cada vez mais, emitindo um brilho esverdeado. 

    Sahayaka o chamava.

    Ele se afastou do povoado, cruzando a selva até que não pudesse ser ouvido. Ali, ajoelhou-se diante do medalhão, escondido atrás das graúdas raízes de uma samaúma.

    — Eu o ouço.

    A voz de Sahayaka ecoou vacilante, como vinda de dentro da pedra. 

    — Kumo… confirme-me. O Deva está em Vento Gentil? 

    — Não só está, como foi acolhido pelos hetas. — Kumo jogava os olhos ao redor, sempre desconfiado. — Creio que tenham sido atraídos por um dos medalhões que você deu ao Eda.

    Sahayaka pareceu pensar, a quilômetros de distância. 

    — Sua situação está mais difícil agora, mas mantenha-se à vista. Não interfira ainda.

    — Estou sozinho, você deve saber. Ainda por cima, tem um Naraki solto… Vai enviar mais dos seus escravos?

    O medalhão esfriou, deixando-o sem resposta. Kumo ergueu o olhar, assistindo à chuva cessar. Os sons da floresta voltaram à tona.

    Sem mais que Sahayaka pudesse o ouvir, bufou aborrecido.

    — Deva, hetas, espadachim… — murmurava para si. — O jeito será me infiltrar entre eles. Valeu, Eda. Sua morte deixou as coisas mais fáceis para mim…

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