Capítulo 20: Confiar

A chuva fina havia lavado parte da mata durante a noite, deixando o ar úmido e mais silencioso que o normal. A trilha estreita parecia recém-formada pelo peso dos passos do Tigre Alado, que seguiam lado a lado, mas distantes naquilo que importava.
O desassossego entre eles era quase palpável. O dossel não impedia o gotejar sobre suas cabeças; Kiro mantinha o olhar fixo no caminho, e Yuna, embora sempre atenta à selva, mirava apenas o horizonte.
— Kiro… — começou ela, de voz baixa, mas firme. — Eles já sabem quem você é. Não adianta mais nos escondermos.
Ele não respondeu de imediato. A brisa sussurrou entre os galhos. Yuna esperou alguns instantes, mas ele não cedeu nem um centímetro.
— Não estamos nos escondendo, Yuna — replicou por fim, sem alterar o tom. — Não sei quem está para chegar, mas serviremos a ninguém.
— Não é isso — rebateu ela, aproximando-se um pouco. — A partir do momento em que a Confraria aparecer, eles virão atrás de você; não ouviu o que o regente disse? Por que acha que todos esses manipuladores estão atrás de nós?
Dessa vez, ele parou de andar. Lentamente, virou o rosto. Seus olhos cansados só se permitiam ser compassivos com ela.
— Desde que deixei o Templo do Tigre Dourado — dizia baixo —, não me ajoelho para nada. Não serei arma de ninguém.
Yuna apertou os lábios. O cheiro de terra molhada a envolvia, à medida que a chuva cessava; mas nada abafava a inquietação.
— Não estou pedindo para que você se ajoelhe — afirmou. — Mas toda essa situação está escalando, e rápido. Se a Confraria está vindo, Kiro… talvez seja a chance para dar um passo além; afinal, eles também são…
— Devas.
— Devas — repetiu Yuna. — Como você.
Um silêncio tenso se acomodou entre eles.
— Se são como eu, então a última coisa que quero é ter contato. — Sua voz trazia peso, cansaço. — Devas são miseráveis, meu bem; um poço de amargura sob uma casca de ouro. — Então olhou fundo nos olhos dela. — Você é a única coisa que me traz bênção em meio à maldição.
Cada palavra de Kiro carregava quilos de verdade. No final das contas, colocava-a em primeiro lugar sempre, pois Yuna era sua luz; talvez uma luz que o cegasse por vezes.
Ela percebia isso, mas não era algo que a satisfizesse por completo. Assim como ela o salvou, ele a salvou de volta. Yuna só queria que Kiro pensasse mais nele, que não levasse a ferro e fogo sua ideia de que, por sua natureza semidivina, colocava-a em perigo.
Embora sempre deixasse claro com atitudes e palavras que estar ao seu lado não era um sacrifício, Kiro tinha dificuldade de aceitar que alguém consentisse viver uma vida daquelas apenas por… amor.
— Então a benção te pede uma coisa — dizia Yuna. — Vamos nos reunir com os miseráveis, pelo menos uma vez.
Kiro a encarou e soltou um longo suspiro, por fim.
No vilarejo mais abaixo, a chuva transformara o chão em barro. Kenshimaru caminhava pela rua principal, de chapéu encharcado e botas sujas de lama.
Rohan estava se recuperando; era um cara durão que não demoraria para voltar a ativa. A estalagem do velho Bashoya oferecia uma refeição quente e um aroma que instigava estômagos vazios.
O espadachim empurrou a porta com o ombro e escolheu uma mesa afastada, onde o vapor de um chá quente logo subiu diante de si.
Estava inquieto. Desde que conversara com Tai, sentia-se pressionado. Como se já não bastasse os hetas marcarem presença em Vento Gentil, agora a Confraria de Baaranishan se faria presente. E, pelo conversar de outras mesas e fofocar dos locais, a própria anciã Imoj já tinha ciência da visita dos confrades.
Sentiu que os hetas o toleravam, talvez até simpatizavam com ele. Mas a Confraria? Não seria tão fácil lidar com Devas, pelo menos não se os preconceitos e estereótipos se provarem verdade. Não seria tão fácil sequer se aproximar deles.
E ele precisava; precisava por ela. Pela promessa.
O chá esquentou seu corpo, mas não suas preocupações.
— Posso me juntar? — disse uma voz faceira.
Kenshimaru ergueu o olhar. Um homem comum, rosto esquecível, roupas de tons neutros, sorriso fácil. Não chamava atenção; justamente por isso, chamava.
— Se quiser — respondeu, desconfiado.
O homem fez uma leve mesura e se sentou, como se já fossem velhos conhecidos. Depositou um bloquinho de anotações na mesa.
— Bela chuva hoje, né? — comentou o estranho. — É bom pra lavar a alma. Ou pelo menos deveria.
Kenshimaru arqueou uma sobrancelha.
— E você é…?
— Alguém curioso — disse o homem com um sorriso um tanto inconveniente. — Curioso sobre as coisas malucas acontecendo por aqui. O povo conta tantas histórias, mas não sei se acredito. Tigre Alado, hetas… Diga você, gringo; o que acha de tudo isso?
Kenshimaru pousou o chá.
— Não costumo discutir trabalho.
— Mas é justamente isso que me intriga — o homem inclinou-se, brincalhão. — Que trabalho, exatamente, você faz?
A pergunta soou leve, mas tinha garras. O ronin percebeu imediatamente.
— Sou caçador. Caço quem precisa ser caçado.
— Hm… — o homem balançou a cabeça, como quem tira conclusões. — E está atrás de alguém especial, certo? Alguém… raro.
Kenshimaru congelou por um segundo. Só um segundo. Mas o estranho percebeu.
Demais.
— Continue — disse Kenshimaru.
O homem abriu um sorriso largo, como se estivesse adorando aquilo.
— Não, não sou eu quem deve falar. Mas achei interessante como você tem caminhado pra cima e pra baixo, tão perto dos hetas. E agora a Confraria está chegando… lugar perigoso para caça.
Sim. Muito perigoso.
Kenshimaru já havia conhecido vários como ele pelos meandros de seu trabalho como mercenário. Homens que falam demais, que se aproveitam de sua lábia para conseguirem o que querem, mas aquele em específico parecia diferente.
Saber que Kenshimaru era um ronin não era nada impressionante; apenas pelo visual já se podia inferir que não era só um mercenário qualquer. Entretanto, qualquer conhecimento sobre sua missão era, no mínimo, absurdo.
— Imagino que não seja um local qualquer — indagou o ronin.
— Não sou daqui, assim como você. Mas vivo há muitos anos nestas terras e posso te dizer que Vento Gentil nunca esteve tão… badalada. — O homem gesticulava como um verdadeiro contador de histórias. — Vejo que a lenda do Tigre Alado anda atraindo muitos olhares, você não acha?
Lenda…
Kenshimaru continuou o encarando enquanto dava um gole de seu chá.
— Então os hetas nunca vieram para cá?
— Não enquanto estive aqui; e muito menos os confrades. Veja bem, Vento Gentil é o fim do mundo; ninguém se importa com o que acontece aqui. Mas, com tantas peças pesadas no nosso tabuleiro, é impossível achar que o Tigre Alado seja apenas uma lenda, não é?
Kenshimaru apenas acenou com a cabeça.
— E o que sabe sobre o Tigre Alado?
— Tanto quanto você, viajante.
— Que seria?
— Você o caça.
O espadachim se espantou. Suprimiu a surpresa franzindo o cenho.
— Não só o caça, como quer desvendar sua natureza mística, não? — Kenshimaru seguiu calado. O sorriso do homem se entortou mais. — Já percebi isso; digamos que sou um ótimo observador.
O instinto de Kenshimaru pousou sua mão na empunhadura de uma de suas lâminas, sempre consigo.
— Calma, calma; não precisa se ouriçar, companheiro. Você não é exatamente uma pessoa difícil de perceber na multidão.
O ronin o fulminava com o olhar, mas não foi isso que tirou seu foco naquele instante: algo em seu peito começou a aquecer. Do nada, toda aquela expressão de confiança deu lugar a um desconforto que começou leve, mas só aumentaria.
O sujeito apanhou o bloco de notas que trazia consigo, de folhas amareladas e encadernado com um fino cordão. Tirando do bolso uma ponta de carvão afiada, semelhava apressado ao anotar algo. Kenshimaru seguia-o com os olhos.
— Sabe, gostei de você — dizia enquanto escrevia. — Por isso, senti que devo te ajudar um pouco. — E entregou a folha arrancada com as anotações.
Ele se levantou, tentando disfarçar a afobação repentina.
— Acabei de me lembrar que fiquei de levar a comida pra casa! Minha mulher vai me matar! — Exclamou entre risos afoitos. — Nos vemos por aí, gringo.
A passos largos, o homem serpenteou pela porta dos fundos. Kenshimaru jogou os olhos pelos escritos, e, no furor do momento, decidiu seguir o indivíduo. Algo não estava certo.
A saída dava-se numa série de becos enlameados, onde se podia ouvir os passos encharcados de alguém apressado nos arredores. O espadachim seguiu o som, mas nada encontrou.
Uma graúna alçou voo.

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