Capítulo 6: A Armadilha

O TIGRE NÃO SABE SER PRESA, somente predador. Quem seria louco o bastante para ir direto para a boca da fera? Alguns poucos que não têm nada a perder.
O escuro da madrugada cobria a mata tropical de Vento Gentil por completo. Os primeiros sinais do orvalho surgiam e o canto dos insetos, abafados, fazia um coro de fundo.
Entre troncos cobertos de musgo, folhas largas e arbustos fechados, três homens se esgueiravam na selva.
— Dizem que anda mascarado — murmurou o primeiro, magro e de olhos fundos, usando sua lança de bengala. — Que não é um homem de carne, e sim, espectro.
— Besteira — retrucou o segundo, corpulento. Trazia consigo uma espada quadrada, típica das longínquas terras do leste. — É só mais um tentando bancar o herói. E, se for algo além da nossa força… Eda nos presenteou.
O terceiro e último caminhava logo atrás, sempre apalpando um medalhão de madeira, com uma gema verde-escuro cravada no centro. Constantemente passava os dedos sobre ele, como se certificasse de estar sempre lá.
— É o nosso último recurso — dizia, com o verde inflamando dentro do cristal quando tocado. — Se for ele mesmo, vamos escapar vivos.
— E libertos — completou o magro, retomando a caminhada.
Mais pegadas. Galhos quebrados, restos de fogueira, sons ao longe; tudo indicava que o alvo estava logo à frente.
— Eles estão fugindo apressados. — O robusto riu animado, recolhendo um pedaço de estopa do chão. — Estão deixando tudo para trás.
O magro sorriu esperançoso; talvez, esse tal Tigre Alado não fosse tudo isso, afinal de contas. Capturá-lo poderia ser uma missão mais fácil do que o esperado; entregar o corpo vivo para Eda e pronto: estariam libertos novamente. O terceiro, porém, engoliu em seco. Cheirava algo de errado no ar.
Um assobio longe cortou o silêncio da floresta. A presença fora anunciada.
O corpulento ergueu a mão, sinalizando para que sua equipe parasse no lugar. Seus olhos correram pela folhagem densa, atentos.
Nada.
— Ouviram isso? — sussurrou o magro.
Antes de qualquer resposta, um brilho metálico surgiu. O reflexo prateado zuniu no ar, girando como um bumerangue.
O robusto nem mesmo teve chance de desviar; a lâmina o atingira na clavícula, abrindo uma cavidade na carne de seu tronco antes da foice dar a volta nas árvores e tornar à penumbra.
O homem berrava de dor, se jogando no chão e deixando seus companheiros sem reação.
O magro, enquanto assistia a agonia de seu parceiro, ergueu sua lança sem exatamente saber a quem atacar. Tentou buscar um alvo nas sombras, mas sem sucesso. Jogava seus olhos para todos os lados, mas se descuidou, pois havia sido avisado sobre quem seria seu provável adversário.
O vazio puxou facilmente a lança de suas mãos. Não havia ninguém na sua frente, nem dos lados, nem atrás; ou pelo menos cria que não. Ela flutuou por um instante, girou no ar e voou, arremessada no mato. Incrédulo, um impacto potente na boca do estômago o fez cuspir sangue e despencar entre terra úmida e raízes.
O terceiro, diante aquilo tudo, percebeu que tudo era verdade.
Seguiu seu instinto; correu. Todos sabem que a pior coisa que se pode fazer num encontro contra um predador é dar as costas. Entretanto, não foi perseguido de imediato.
O mesmo sibilar metálico veio em sua direção, cortando o ar com destino óbvio. Sem tempo de reagir, a garra do gavião cravou fundo em uma de suas coxas, arrancando um urro bestial do homem. Tropeçou em raízes e rolou no chão até parar, derrotado.
Foi questão de segundos para que toda a busca deles acabasse. Foram atraídos como ratos para uma ratoeira, e não suspeitaram um sequer instante.
O terceiro apagou por breves segundos, acordando enquanto era arrastado de volta para perto de seus colegas.
O corpulento talvez já estivesse morto, pois jazia imóvel e pintado de vermelho. O magro vomitou e arfava forte. O terceiro foi jogado ao lado deles, com uma ferida enorme na perna que não coagulava de maneira alguma.
Os primeiros raios de sol iluminaram uma mulher, que parou na frente deles trajando uma capa negra por cima de um qipao safira. O capuz cobria parte da máscara branca, que ilustrava o rosto de uma ave de rapina.
Outra máscara, desta vez representando um felino, se formou no nada, atrás dela. E tomou forma o tórax e os braços e as pernas. Suas vestes monásticas eram todas escuras, com exceção de seu japamala rubro.
— O Tigre Alado — balbuciou o terceiro, buscando o medalhão pendurado em seu pescoço.
Kiro se aproximou dele, apontando-o sua mão esquerda. Seu urja fundiu-se com o urja da selva, da natureza.
Uma energia efervescente começou a se acumular em volta de seu antebraço e, após, em seu punho. O kouen se formou, circundando quente, de tom esverdeado e translúcido, tremulando como uma chama.
Conforme apontava para o homem com o medalhão, uma lâmina espectral se fez no ar, seguindo a direção em que apontava. A energia se acumulou e só parou quando tocou levemente no pomo de adão do inimigo.
Eram os Sabres Flamejantes do Tigre Branco — um poder que somente o Deva poderia sustentar.
O homem fechou os olhos e parecia fazer uma prece corrida, recheada de desespero e temor.
— Quem os mandou? — A fala do tigre veio abafada pela máscara, mas cheia de firmeza.
O homem tremia e pela sua cabeça passava um filme de todas as vezes que o alertaram sobre o Tigre Alado. O magro, do lado, elaborava mil e uma formas de evadir dali.
— Foi… foi Havakai — gaguejou, enquanto a luz esmeralda do kouen clareava sua expressão de agonia, esquentando um pouco mais. — Somos seus enviados… disse que…
A mão do magro agarrou uma pesada pedra no seu arredor, no que parecia uma última chance de viver. Mirou na cabeça do tigre e a lançou. Por uma fração de segundo, ficou surpreso por não ter tido seu movimento interceptado — não foi porque não conseguiram, mas sim porque não precisavam.
A pedra atravessou a cabeça de Kiro como atravessaria fumaça, se perdendo na selva de fundo. O Passo Infinito esteve ativado o tempo inteiro.
O magro começou a rir , não feliz, mas desesperado.
— Vai matar escravos como nós, é? O que tem de honroso em um ser iluminado como você matar ralé como a gente, hã?
As máscaras davam a eles expressões impávidas, mas, por trás delas, acenderam um alerta.
Haviam mesmo descoberto a identidade de Kiro como o Deva do Caminho do Tigre? Ainda mais, isolado no fim do mundo que era Vento Gentil?
Era tudo o que Kiro não queria.
— Ein! — O magro continuou. — Sua morte me libertaria da escravidão, mas vejo que não tenho como te vencer, Vossa Santidade. Eu sou só a merda de um servo, um escravo do maldito Havakai! Ouça, ele virá atrás de você e você vai morrer; nos encontraremos em algum Naraka, Filho de Hu!
Kiro ouvia aquelas palavras parado, sem saber como reagir. Nunca antes alguém tinha descoberto sua identidade. Tentou relembrar de qualquer momento que fosse que tivesse deixado algo escapar, mas nada fazia sentido.
Apenas Yuna sabia a verdade, e ela mesma também não tinha ligações com mais ninguém do mundo exterior depois de que o conhecera.
Yuna estava tão surpresa quanto ele. Enquanto o inimigo tagarelava, observava a linguagem corporal de Kiro, prevendo seu próximo movimento.
— … já que é digno morrer ass- — sua cabeça se partiu em dois, do alto de uma orelha até a base do pescoço, graças aos Sabres Flamejantes, que cortam como em manteiga.
O terceiro homem berrou, choroso e aflito.
Yuna podia ouvir a respiração forte do tigre mesmo debaixo da máscara. Não estava cansado ou algo do tipo, e sim, enfurecido. Depois de oito anos que deixou o Templo de Hu, foi a primeira vez que alguém o tratou desta maneira.
A lâmina de energia voltou a ameaçar o último inimigo vivo, que tremia como vara verde.
— Quem é Havakai? — O flamejar do Sabre intensificou, assim como a gema cor-de-jade no medalhão.
— Me deixe viver, Vossa Santidade! — O homem começou a chorar, agarrado ao seu medalhão. — Por favor, me deixe viver!
Kiro cerrou os dentes e franziu o cenho. Suspirou frustrado.
Um borrão esmeralda correu pelo ar e a mão que protegia o rosto do homem não fazia mais parte de seu corpo.
Seu urro ecoou na selva, tornando seu chorar ainda mais agoniante para alguém que não estivesse acostumado com cenas assim.
Yuna tocou o ombro de Kiro e tomou a frente da situação. Ela saberia desenvolver melhor o cenário. Agachou ao lado do homem, com uma das foices em mãos.
Encarou-o até que parasse de agonizar.
— Você não é um ladrão comum, é? — Sua voz era mais suave, quase complacente. — Por que está aqui?
— S-Sou apenas um… escravo! — Sua fala era lacrimosa. — Só quero pagar minha dívida, senhora, só isso!
Yuna trocou olhares com Kiro.
De fato, não eram apenas mercenários quaisquer — se fossem, teriam dado mais trabalho. Ela fitou o medalhão que ele não soltava. Primeiro, pensou que fosse apenas um amuleto religioso ou algo assim, mas logo percebeu que ele tentava fazer algo a mais.
Yuna não era uma especialista em manipulações de artefatos ou das artes ocultas, mas já ouvira coisas como materiais imbuídos de energia capaz de invocar criaturas da pior espécie. Com os dizeres do magro antes de morrer e a confirmação que aquele coitado à sua frente acabara de fazer, já tinha uma principal suspeita.
— Tudo bem — retornava ela —, já que quer viver, podemos fazer um trato. — Kiro a encarou, mas sabia que devia ter um plano. — Revele onde podemos encontrar esse seu senhor e não te mataremos.
Os olhos do aleijado se encheram de esperança, seguido por um sorriso malicioso de quem viu uma única oportunidade de se dar bem.
— Não posso lhe contar, senhora. Posso levá-los até lá, o que acha?
Yuna levantou, girando a foice com uma das mãos. Um chute que arrancou dentes do agora aleijado cortou pela raíz suas intenções escusas.
— Conte-nos: quem é esse Havakai? — Na pronúncia do nome, o brilho da joia no medalhão brilhou forte mais uma vez.
O homem sentiu o artefato esquentar. Alguns segundos se passaram enquanto ele pesava as consequências de revelar as suas verdades.
— Ha… Havakai é-
A gema cravada no medalhão fissurou e, de dentro dela, uma energia intensa escapou.
Primeiro um raio; depois dois, três.
Kiro desfez seu Sabre Flamejante e deu passos atrás, assim como Yuna. O clarão cegou todos ao redor. Um som agudo perfurou seus tímpanos, uma cauda verde e espectral voou no ar, serpenteando acima.
Nos olhos arregalados do homem via-se uma fagulha de vitória. O medalhão que Eda o deu para a missão de capturar o Deva enfim havia funcionado; o mesmo que tentou desselar pelos últimos minutos.
Começou a gargalhar como se tivesse triunfado, como se tivesse se libertado de grilhões ancestrais.
— Eu venci! Serei liberto finalmente! Paguei minha dívida, Havakai! Paguei minha dívida, maldição!
Kiro e Yuna tentavam entender o que estava acontecendo, aquela serpente de pura essência translúcida se revirava no ar.
Prepararam-se para se defender; Kiro tentava lembrar de algum ensinamento de Hu para enfrentar coisas como essa. Mas nada lembrou.
A cobra vagueou pelo dossel das árvores e investiu para baixo com toda sua velocidade.
Não contra Kiro. Não contra Yuna. Investiu contra o homem.
Invadiu sua boca, penetrando goela abaixo. O infeliz convulsionou, seu corpo se debatia como um peixe fora d’água durante o tempo em que a serpente mágica se metia em seu corpo.
De repente, tudo acabou.
O homem jazeu imóvel, inanimado. O medalhão despedaçou completamente, se tornando nada mais do que um montículo de fragmentos.
Kiro e Yuna, intactos. Ela respirava ofegante; a coisa mais parecida com isso que já tinha experimentado eram os Sabres de Kiro.
— Isso foi… um selo?
Kiro tirou a máscara para ver de perto o cadáver do homem. Exatamente como pensou: suas pupilas desaparecidas, boca aberta e um ideograma marcado na testa que indicava um selamento.
— Pelo visto, sim. Alguém não queria que falassem; alguém que sabe o que eu sou.
Yuna se aproximou dele, varrendo o terreno com os olhos buscando fragmentos da gema.
— O que acha que é?
— Não faço ideia. Sabe algo sobre esse nome; Havakai?
— Nunca ouvi falar. — Também retirou a máscara. — Mas suspeitei que esse homem fosse algum tipo de manipulador de artefatos. Ou ele guardava um segredo muito grande, ou esse tal Havakai ordenou que andassem com esse amuleto justamente para um momento como este.
— Pouco me importa o que eles eram ou faziam; só me pergunto como me descobriram.
Yuna deu de ombros, tentando esconder uma preocupação ascendente.
— Os boatos sobre nós podem ter ido longe demais. Não costumamos poupar os capangas do Dente de Ferro, mas as pessoas que salvamos podem ter falado mais do que deveriam.
Kiro refletiu por um momento.
Suspirou, sem resposta. Não dormiria bem nos próximos dias.
— Você tá certa. Esses vermes devem ter contratado esse tal Havakai para que pudessem voltar a operar na região. — no fundo, Kiro ainda tentava acreditar na própria constatação.
— Fique tranquilo; rumores viajam rápido — deu um beijo carinhoso em sua bochecha — Trouxe as sacas? Vamos levar as cabeças para o posto; vai que vale alguma coisa.

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