O PLANTÃO ERA SILENCIOSO, como deveria ser. Para Gojin, fazia parte do ritual ouvir somente a respiração de seus ajudantes. 

    Austero, frio e sem adornos desnecessários; era assim o recinto no qual se encontrava. Uma pedra circular se dispunha no centro e, logo acima, flutuando no ar, o Orbe de Mil Correntes

    Suspensa a um palmo do piso, o globo líquido, translúcido e de coloração aquosa rodava vagarosamente, representando, em seu interior visível, milhares e milhares de pontos enegrecidos — era a imagem de cada ilha e leixão conhecido pelo homem.

    Sentados de pernas cruzadas e em círculo em volta da Orbe, quatro serventuários estavam sob o comando de Gojin. Não eram hetas, mas comprovaram ter um controle decente sobre o myoutai, o Corpo Sutil. Só isso já era o suficiente para estar ali, vigiando cada irregularidade que pudesse ferir o Tecido de Veras

    Vinha até cada um deles veias de água, que escorriam do fluxo da esfera por sulcos gravados no chão de pedra fria. O líquido convergia, então, de volta para o Orbe, completando o ciclo silencioso de vigília. 

    Respiração calma e medida, silêncio sepulcral; era assim, num estado meditativo, que os hetas e seus subordinados buscavam por perturbações no véu do mundo.

    Gojin — este sim um heta autêntico— mantinha as mãos sobre os joelhos, na tradicional posição equivalente ao mudra do trovão. Olhos cerrados, foco total nas ondulações do interior do Orbe. Estava no profundo estado em uníssono com o globo. A essência do myoutai era essa: a conexão afinada junto à natureza.

    Uma das assistentes quebrou o silêncio, sussurrando contida:

    — Instabilidade no setor leste; região de Bergara, Vento Gentil.

    Gojin respirou fundo e mergulhou ainda mais em sua meditação. O Orbe tremeu, como se uma gota de tinta encontrasse água pura. 

    Não, isso não é nada bom

    De imediato, percebeu que algo muito incomum havia acontecido; algo havia rompido brevemente o Tecido. Um rasgo, o menor que seja, sempre deixa uma marca enorme, como o trovão de um raio que não foi visto. Era impossível não notar.

    — Continuem — ordenou, sem alterar o tom de voz. — Registrem cada detalhe do fluxo.

    Os ajudantes, focados na tarefa e sabendo da raridade daquilo, afundaram ainda mais na sua própria percepção. O Orbe tremeu mais uma vez, parecia repelir aquela mesma interferência. 

    Apenas Gojin sentiu a dor do sonido agudo perfurando seus tímpanos como agulhas. No mesmo instante, um arrepio correu sua espinha, fazendo-o abrir completamente os olhos e encarar o globo, que brilhava lilás.

    Um sinal inequívoco que algo muito fora da realidade havia acontecido. Poderiam ser diversas coisas: um Mantra Sagrado rogado, o despertar de um Artefato Lendário ou… obra de um manipulador muito poderoso. Um rasgo no véu do mundo. 

    Desfez os mudras e fechou os punhos. Gojin levantou-se, postura ereta e rígida, como prometia sua disciplina.

    — Uma fenda. — Agora sim alterou o tom de voz. — Nada de natural registra esse padrão.

    Os assistentes se entreolharam inseguros. Eles sabiam que ele era um heta, portanto sua sensibilidade com os fluxos de myoutai seria extremamente superior ao deles. Ficou claro que Gojin sentiu algo que eles jamais poderiam sentir.

    — Você acha que… — Um deles procurava palavras. — Pode ser uma invocação?

    — Não. — Gojin respondeu de imediato, com certeza invejável na fala. — Uma invocação pode até rasgar o Tecido, mas nunca de maneira tão rápida quanto essa. Se fosse mesmo uma, levariam minutos até a fenda se fechar.

    O Orbe voltou a oscilar. 

    Uma ferida se abriu justamente na localização dos entornos de Bergara e Vento Gentil. Os ajudantes, na mesma hora, começaram a recitar, em uníssono, um mantra de estabilização. O traço faiscou mais uma ou duas vezes, enfim parando de vez. 

    Gojin suspirou e aprumou seu manto púrpura de detalhes prateados. Na sua cabeça, uma rota clara a seguir; um protocolo calculado que previa os próximos passos. 

    Jamais se permitiria quebrar a escala hierárquica da Irmandade Heta, isso ia contra qualquer um de seus votos e instintos. Seguir regras era mais forte do que ele. Sua própria interpretação não importava tanto, e sim a de um responsável mais experiente. Seu mestre poderia decidir a ação seguinte com maior embasamento.

    — Sigam aqui e continuem registrando tudo que acontecer na região da fenda. — Lançou um olhar cortante para cada um dos serventuários — Não têm autorização para falar sobre o que ocorreu há pouco.

    Os ajudantes baixaram a cabeça em reverência.

    Gojin deu meia-volta e saiu do recinto. Seus passos compassados carregavam certa urgência, mas sem nunca transparecer nervosismo. A disciplina exigia compostura. 

    Poucas vezes antes havia visto algo assim, e, pela primeira vez, sentiu enquanto liderava sua própria vigília.

    Sua experiência o dava certa autoridade para elucubrar possibilidades e porquês, mas talvez Gojin não confiasse tanto assim em si mesmo para confirmar suas suspeitas sem a validação de um mestre. 

    Por sorte, o seu mestre era o melhor possível.

    Aquela era mais uma base heta, onde um regente liderava sua equipe que, por sua vez, liderava os serventuários. Essas bases se erguiam em leixões, ou seja, em ilhas tão pequenas que não poderiam abrigar nem sequer o menor dos vilarejos; verdadeiros monólitos errantes. 

    Normalmente, as bases eram instaladas em leixões nas terras altas, sob o pretexto de poder observar melhor tudo o que há abaixo. O prédio era construído de pedras brancas e lisas, totalizando quatro andares segmentados em setores diversos sem adornos ou esculturas, sem vaidades ou adorações. Apenas um edifício feito para vagar e vigiar entre as nuvens.

    Último andar; foi até lá que Gojin se dirigiu. 

    A pedra fria dos corredores ecoava sua passada sem hesitação. Jogava seus olhos ao longe, por entre as varandas e guarda-corpos, visando um aglomerado de nuvens cinzentas abaixo que traria tempestade para o lado deles. Tudo bem, acontecia sempre.

    No último andar havia apenas a câmara do regente. Após subir a escadaria, Gojin já pôde ver entre o vão da porta a figura que flutuava na posição de lótus, de costas, admirando o horizonte sem fim. 

    Cabelos castanhos compridos, pele cor-de-camurça e vestes como as de Gojin, porém verdes e intrincadas com detalhes dourados; era um regente, afinal. Seus pés nunca tocavam o chão — pelo menos Gojin poucas vezes vira. 

    Tai era o oposto de seu discípulo. Sempre ponderado, gozava de um relaxo quase indolente, permitido apenas pelo seu nível de poder. Transmitia sempre uma calmaria ímpar, como quem não carrega peso algum nos ombros; de certa forma, isso o dava ainda mais confiança e respeito dos subordinados. 

    Gojin nunca viu Tai fraquejar. Nunca viu seu mestre dar um passo em falso numa operação ou recuar de uma decisão. Queria ele mesmo ser assim; tentava ele mesmo ser assim. 

    Adentrou a câmara, iluminada pelos últimos raios dourados do dia. Ajoelhou-se a uma distância respeitosa, da maneira exata que mandava o regulamento da Irmandade. 

    Tai não se virou.

    — Já falei que não precisa disso. — A voz como brisa.

    — Mestre, venho em cumprimento ao protocolo de vigilância. — Gojin sempre insistia na burocracia, sem traço de emoção. — Registramos uma fenda no Tecido, senhor. O Orbe apontou para a remota Vento Gentil. Classificação: –

    — … perturbação intencional. — Tai seguia admirando a linha do horizonte.

    O mestre inspirou fundo o ar úmido, enfim tornando a atenção para seu pupilo. O único som no recinto foi o cantar das aves fugindo da tempestade que chegaria.

    — Levante-se. — Gojin obedeceu. — Não estamos mais no complexo da Irmandade; largue o legalismo. Já tenho o respeito que preciso de vocês. — Fez uma pausa, até sua voz branda retornar. — Parece que vai chover, não acha?

    Gojin franziu o cenho. Por mais que respeitasse seu professor de maneira muitas vezes quase cega, sua tranquilidade excessiva atiçava-lhe os nervos. 

    — Senhor, não é um resíduo de urja comum ou flutuação normal do Orbe. Solicito diretrizes. — Gojin não mexia um músculo além do necessário.

    Tai deu um meio-sorriso. Gostava de provocar o instinto seguidor de ordens de um de seus discípulos mais exemplares.

    — Até quando me traz notícias que mais parecem desgraça, recita como uma emenda qualquer do Conselho.

    — Apenas cumpro minha função, mestre. Não compete a mim interpretar além do previsto.

    Palavras tais quais estas deixavam Tai ligeiramente desconfortável. Queria que Gojin fosse um pouco mais… autêntico. Seu aluno era completamente diferente de si: inflexível, impávido, rígido. 

    — Uma fenda no leste… — murmurou, voltando sua visão para a chuva iminente. — Não é qualquer coisa que rasga o Tecido, você sabe bem disso. Alguém o fez, e alguém com propósito. — Seus dedos tamborilavam sobre a própria perna. — Sentiu medo, Gojin?

    O discípulo ergueu os olhos, surpreso pela pergunta. Pensou rapidamente na resposta mais exata e eficiente.

    — Senti apenas o que devia sentir, senhor. Clareza é o que precisamos, não medo.

    Tai soltou uma risada curta, quase um sopro irônico.

    — Admiro isso em você, sabia? Mas cuidado: às vezes, não reconhecer suas fraquezas pode ser apenas um tipo de cegueira.

    O silêncio caiu. 

    No fundo, ribombar e trovoadas. O relâmpago clareou a feição de Tai por uma fração de segundo. A fragrância da chuva invadiu a sala, anunciando, enfim, sua chegada. Os primeiros pingos começaram com a sinfonia barulhenta nas telhas acima. 

    Tai se aproximou de Gojin.

    — Informe ao resto da equipe: a partir de agora, todo e qualquer distúrbio na região será de alta prioridade. — Sorriu leve, como se não se abalasse com o anúncio de uma guerra que se avizinha. — Iremos para Vento Gentil.

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