RESPIRAÇÃO DENSA, SUOR QUE ARDIA OS OLHOS escorrendo pela testa. A umidade da selva tornava tudo um pouco mais difícil, como sempre pesando sobre os ombros. 

    Apesar do dia quente e ensolarado, o dossel das árvores mal deixava a luz chegar ao solo. Vez ou outra podia se flagrar macacos pulando de galho em galho ou canto de pássaros, mas, naquela clareira aberta no meio da flora volumosa, só se ouvia o arfar dos dois, típico do treinamento acirrado.

    Ninguém poderia escapar da prática. Kiro e Yuna treinavam um contra o outro rotineiramente, sem armas ou habilidades especiais. Somente avançariam para a refeição após cumprirem seu treino. 

    Cada ataque era sério, duro e verdadeiro, ao passo que cada defesa era valendo. Sempre foi assim, porém, depois do último incidente, tudo ganhou traços mais graves de tensão.

    Yuna avançou, sempre com a agilidade num nível além. 

    Mudando de direção para que Kiro não antecipasse seu ataque, pulou rápido e o chutou lateralmente, no ar, mirando sua cabeça. Kiro defendeu, mas o impacto o jogou para o lado. Yuna sabia que não podia o deixar respirar. Girou no próprio eixo e o golpeou na linha de cintura; uma, duas, três vezes.

    Ele sempre defendia.

    O tigre agarrou um dos tornozelos da gaviã, sem dar intervalo para o próximo ataque. Arremessou-a para o outro lado da clareira; Yuna usou as mãos para cambalhotar no ar e cair de pé.

    — Vai ficar só na defensiva? — Ela sempre tentava o provocar, mas nunca conseguia.

    Não obteve resposta. 

    Kiro correu em sua direção, investindo com um soco armado. Ela foi rápida, pois saltou, apoiando-se nos ombros de seu parceiro e voando por cima dele, fazendo o ataque ser em vão. 

    Uma oportunidade clara. 

    Yuna contra-atacou com uma rasteira, que não foi forte o suficiente para o derrubar. Pulou e, com os dois pés, o atingiu no peito, jogando Kiro para trás. Ele cambaleou e só pode assistir ela voar novamente em sua direção.

    Kiro se via preso em um mata-leão que apertava sua garganta com solidez. Até tentou se desvencilhar, mas ela apertava firme.

    — Meu bem… — Sua respiração pesada. — Você é rápida demais.

    Yuna riu depois de inspirar fundo.

    — Por que está pegando leve? — Apertou mais um pouco. — Tá com dó de mim? 

    Ele sorriu e deixou escapar um riso ligeiro.

    Num instante, Yuna deixou de sentir a respiração dele pelos seus braços que seguravam-no no lugar. O corpo de Kiro simplesmente se tornou imaterial e trespassou o mata-leão, como se nada existisse entre Yuna e ele. 

    O Passo Infinito. 

    Franziu o cenho e se levantou enquanto ele caminhava para o outro lado da clareira. Sempre se irritava quando Kiro apelava para suas habilidades de Deva.

    — Você tá jogando baixo, querido.

    Kiro alongava os músculos doloridos à passos lentos.

    — Você é melhor no corpo a corpo do que eu, já sabemos disso. — Limpou o suor do rosto. — Mas precisa se reinventar; nunca se sabe o inimigo de amanhã.

    Yuna bufou. Talvez, finalmente, sua provocação tenha funcionado. Diante seus olhos, a imagem de Kiro se desfez. 

    Corpo Oculto. 

    Yuna cerrou os dentes e não pensou duas vezes ao usar sua única habilidade: Visão Absoluta

    Essa técnica era proveniente do Caminho do Gavião, ensinada somente no Templo de Ying. Mesmo que Yuna nunca tenha sequer pisado lá, seu pai — que foi um monge e fez parte por anos — quebrou seu juramento e ensinou à sua filha essa perícia. 

    Com a Visão Absoluta ativada, o usuário pode enxergar trezentos e sessenta graus num raio que depende do quanto domina a técnica. Essa visão inclui os fluxos de urja, kouen ou myoutai; qualquer coisa que estivesse oculta aos olhos comuns, não estaria a salvo dos olhos do gavião.

    Yuna, por não ser uma Deva, não conseguia sustentar a habilidade ativa por muito tempo; apenas alguns minutos já a cansava. Por isso, costumava ativá-la por breves segundos, o que ajudava e muito no ofício de caçador que o Tigre Alado exercia. 

    Mesmo com o Corpo Oculto ativo, Yuna podia ver Kiro claramente. Não defendia seus ataques, e sim desviava, pois, por vezes, mesmo os bloqueando, levava a pior. 

    Seus movimentos ágeis e leves a tornavam um alvo arisco e difícil de acertar. Kiro golpeava com socos, chutes e agarrões, mas ela era tão escorregadia que escapava de seus dedos.

    Contra-atacá-lo talvez fosse inútil, pois o Passo Infinito o tornava intangível. Por ser um Deva, podia manter esse estado por vários segundos. Depois de mais outros segundos, poderia voltar a usar; bastava apenas que ativasse a técnica no momento correto. 

    A partir deste momento, Yuna só poderia fugir.

    Sua visão cansou-se. Por uma fração de segundo, viu apenas um clarão branco; uma brecha para seu adversário. Piscou forte, tentando reaver seu sentido. 

    Quando, enfim, tornou a enxergar, viu Kiro a poucos passos, em carne e osso novamente. 

    — Conseguiu fugir bem de meus golpes. — Kiro ofegava, mas bem menos do que ela. — Mas eu te pegaria uma hora ou outra.

    Yuna suspirou. Era bom que ele fosse forte e ela sabia que jamais teria chance contra ele em um embate direto, entretanto, ninguém gosta de perder sempre.

    — Você é muito bom no que faz, sabia? — Yuna esboçava um sorriso sem jeito. — Isso me atrai muito.

    Kiro semicerrou os olhos. 

    Yuna agarrou uma pedra e avançou com velocidade invejável para cima dele; tudo ou nada. 

    Sorriu. Pegou-lhe desprevenido. Mas seu corpo se enrijeceu por inteiro. Yuna estava paralisada, sem conseguir o atacar com a arma improvisada. Ficou parada, impotente, como uma estátua de carne. 

    De novo não… 

    As pupilas acinzentadas de Kiro se transformaram em vivos olhos âmbar, fendidos e profundos. Penetravam fundo na alma de Yuna, despertando por um momento um medo primal do predador; uma vontade incontrolável de fugir, mas sem conseguir se mexer. Enquanto ele mantivesse contato visual, ela nada poderia fazer.

    Os Olhos da Iluminação.

    — Tudo bem… você venceu. — Yuna não conseguia desviar sua atenção daqueles hipnotizantes olhos ocre; uma beleza fatal.

    — Você foi muito bem. — Kiro piscou e a paralisia se desfez. Segurou-a antes que caísse no chão. — Venceu hoje, eu admito. — Já tinha, diferente dela, recuperado o fôlego.

    Yuna sabia bem que nunca conseguiria competir com um ser iluminado como ele, mas media seu progresso pelo quanto mais o conseguia cansar. De alguma forma, era um bom sinal que conseguisse fazer com que ele apelasse para as técnicas de Deva.

    Beijou-lhe os lábios.

    — Então você faz o almoço. 

    Foi um treino intenso. A musculatura dolorida pedia descanso e o estômago vazio pedia reforço. Os insetos voltaram a incomodar, assim como a zoada das cigarras.

    Kiro acendeu a fogueira com galhos de espessuras diferentes encontrados ali mesmo, nos arredores. Preparou as pequenas panelas de pedra que tinham; eram velhas e surradas, mas serviam. Yuna o assistia separar os alimentos desidratados, enquanto se recostava num cupinzeiro há muito abandonado.

    O beijo selou o fim do treino diário, mas não a inquietação que os seguia desde o encontro com os que tentaram os caçar. Yuna não sabia bem o que fazer; sair de Vento Gentil parecia a escolha mais óbvia, mas duvidava que Kiro quisesse fazer isso.

    — Não sei se devemos continuar aqui. — Ela soltou o comentário sem grandes intenções, mas sua voz carregava preocupação.

    Kiro não desviou o olhar da tarefa, mas ouviu bem o que disse. Remoeu aquilo alguns segundos, limpando o suor da testa com o antebraço.

    — Se formos embora, virão atrás de nós de qualquer jeito. — Rasgou um pacote lacrado de algum molho espesso, que mais parecia um pedaço sólido de qualquer coisa esponjosa. — Acho que devemos ficar e deixar que venham; podemos acabar com eles, um a um.

    Yuna suspirou e deitou-se na grama, olhando para o céu recortado pelas copas nas alturas.

    — Não sei, meu bem… — Virou o rosto para ele, séria. — Não sabemos quem são; quem mandou esses homens. Sei lá, parece ter algo maior por trás. Eu consigo me virar, Kiro, não sou ninguém… mas você…

    — Sou o alvo. — Kiro devolveu o olhar. — Mas não podemos adiar nossos problemas. Precisamos ficar e resolver isso aqui.

    Yuna tentava crer nas palavras dele, mas algo a enchia de insegurança. Talvez a cabeça de um Deva funcionasse de maneira diferente, mas já estavam em um relacionamento havia muitos anos; sabia bem que ele mesmo não tinha certeza do que dizia.

    — Eu te amo — ela voltou a mirar o alto —, mas não quero que coloquemos o povo daqui em mais perigo do que já estão.

    Kiro sorriu brevemente enquanto colocava o arroz para requentar.

    — E eu não quero te colocar em perigo. — Encarava-a diretamente — Você é tudo que tenho, Yuna. Se algo te acontecer por minha causa-

    — Não vou te deixar, besta. — Ela riu irônica. — Não venha com essa conversa de novo. Sempre tenho que te falar isso: estou do seu lado porque eu quis assim. Nós dois, juntos contra tudo; esqueceu?

    — Claro que não. — Esboçou um sorriso cansado, deixando transparecer um olhar apaixonado por trás da figura lendária do Filho de Hu.

    Yuna se levantou, o rodeando e o abraçando por trás enquanto ele salgava a comida.

    — Fazemos do seu jeito então, viu? — disse ela, por fim — Continuaremos na espreita, como sempre. Mas, se as coisas começarem a desandar…

    — Então fazemos do seu jeito. — completou, conhecendo a mulher que tinha como conhecia suas palmas marcadas.

    Você tem um caminho, meu filho. E precisará persegui-lo. Um fardo que somente você pode carregar.

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