Capítulo 14 - Dia de faxina
O campo de treinamento estava silencioso.
Todos ainda tentavam processar o que acabaram de ver.
Davidson, um recém-chegado, um iniciante no mundo de Estier, havia acabado de derrotar um soldado experiente com uma facilidade assustadora.
Randolf ainda estava de joelhos, suando e ofegante. Seu rosto estava vermelho, não só pelo cansaço, mas pela vergonha. O orgulho de um soldado veterano havia sido destruído diante dos olhos de dezenas de recrutas e cavaleiros.
Ele apertou os punhos, olhando para o chão, sem conseguir aceitar aquela humilhação.
— Eu… eu quero mais uma chance.
Sua voz soou trêmula, mas firme.
Davidson ergueu uma sobrancelha e deu de ombros.
— Se quer perder de novo, por mim tudo bem.
Mas antes que qualquer coisa acontecesse, Xavier deu um passo à frente.
— Não.
Todos olharam para o comandante.
Randolf se levantou com dificuldade.
— Mas, comandante, eu só…
— Você perdeu. Aceite isso.
A voz de Xavier era firme e sem espaço para contestação.
Randolf engoliu seco.
Davidson sorriu vitorioso.
Xavier então se aproximou de Davidson, cruzando os braços. Seus olhos estavam semicerrados, analisando o garoto com mais atenção.
— Você usou sua magia…
Davidson inclinou a cabeça, confuso.
— Sim, e daí?
Xavier estreitou os olhos.
— Isso deveria ser impossível. Recrutas não conseguem usar magia de forma eficaz tão cedo. Você nem deveria ser capaz de ativá-la de maneira consciente ainda.
Davidson riu, girando sua espada nos dedos.
— Comandante, o senhor esqueceu? Eu sou um Herói.
Havia um ar de arrogância em sua voz.
Xavier permaneceu em silêncio por um momento.
Ele entendia o que aquilo significava.
O “Herói” não era apenas uma classe qualquer. Era uma classe especial, reservada para aqueles que tinham um destino acima do comum. Pessoas que, se treinadas corretamente, poderiam se tornar os guerreiros mais poderosos de Estier.
E Davidson não só tinha essa classe, como estava avançando rápido. Muito rápido.
Isso era empolgante… mas também preocupante.
Xavier suspirou.
— Muito bem. O treinamento continua.
Ele se virou para os outros recrutas.
— O que estão olhando? Vamos, voltem ao treino!
O silêncio foi quebrado pelo som de espadas voltando a se chocar, passos rápidos no chão de terra batida e gritos de esforço ecoando pelo campo.
Mas mesmo enquanto treinavam, todos tinham algo em mente.
Davidson não era normal.
…
A lua já brilhava no céu quando Kaizhat e seus companheiros voltaram para casa. Todos estavam exaustos. O dia inteiro de treinamento pesado os deixara quase sem forças.
Fred praticamente se jogou no sofá.
— Eu nunca mais quero ver aquele campo de treino na minha vida…
Choi Miu, que estava tirando os óculos para limpá-los, respondeu sem emoção:
— Vamos ver se você diz isso amanhã.
Fred gemeu.
— Nem brinca com isso.
Frida, como sempre, estava séria e sentada no canto da sala, afiando a ponta de sua lança.
Star foi até a cozinha, mexendo nas frutas que tinham comprado no mercado.
Kaizhat se sentou ao lado de Fred, ainda absorvendo tudo o que havia acontecido.
— Vocês viram aquilo?
Choi Miu assentiu.
— Você está falando do Davidson, certo?
Kaizhat suspirou.
— Como ele pode ser tão forte tão rápido? Ele nem parece um iniciante.
Fred se endireitou no sofá, cruzando os braços.
— Isso é ridículo. Tipo… ele é bom. Muito bom. Mas é injusto, sabe? A gente tá aqui sofrendo pra aprender o básico, e ele já tá derrotando soldados veteranos?
Choi Miu ajustou os óculos.
— O problema não é apenas o talento dele. Ele tem uma magia que só heróis podem ter. E, além disso, ele aprende muito rápido.
Kaizhat coçou a nuca.
— Isso quer dizer que ele sempre vai ser mais forte que todo mundo?
Frida, que estava calada até então, falou sem tirar os olhos de sua lança.
— Não.
Kaizhat olhou para ela.
— Como assim?
Frida parou de afiar a lança e encarou Kaizhat.
— Ele pode ser mais forte agora. Mas isso não significa que será sempre assim. Ele tem talento e uma vantagem inicial, mas ninguém sabe como será o futuro.
Kaizhat refletiu sobre isso.
Era verdade. Davidson estava na frente agora, mas o caminho ainda era longo.
Star voltou da cozinha com uma maçã na mão.
— Sabe… eu meio que acho que ele gosta de ser o centro das atenções.
Fred riu.
— Como não gostar? O cara venceu um veterano e ainda usou uma magia que nem devia saber usar. Aposto que tá se achando agora.
Choi Miu olhou para Kaizhat.
— Você está preocupado com isso?
Kaizhat hesitou antes de responder.
— Eu só… não quero ficar para trás.
O grupo ficou em silêncio por alguns segundos.
Star sorriu e deu um leve soco no ombro dele.
— Então não fique.
Kaizhat olhou para ela.
— Hã?
Star riu.
— Davidson pode ser forte agora, mas e daí? Você também pode se tornar forte. É só treinar e se esforçar.
Fred levantou a mão.
— É, mas sem exagerar. Eu ainda quero viver pra contar história.
Choi Miu cruzou os braços.
— Star está certa. Se ficarmos preocupados demais com os outros, vamos esquecer de melhorar a nós mesmos.
Kaizhat respirou fundo.
Eles tinham razão.
Davidson era forte. Muito forte.
Mas ele não era imbatível.
Kaizhat ainda não sabia qual era sua magia, nem qual era seu verdadeiro potencial.
Mas se quisesse sobreviver nesse mundo… se quisesse proteger a si mesmo e aos outros…
Ele teria que se tornar forte.
Não por causa de Davidson. Mas por ele mesmo.
O jovem arqueiro apertou os punhos.
— Amanhã… eu vou treinar mais forte.
Frida deu um leve sorriso de canto, imperceptível para a maioria.
Fred gemeu.
— Lá vamos nós de novo…
Todos riram.
Amanhã seria um novo dia.
E Kaizhat estava pronto para enfrentá-lo.
…
O sol nasceu radiante sobre Estier, iluminando as ruas de pedra e trazendo um calor agradável para aquele dia incomum. Não haveria treinamento.
Para a maioria dos recrutas, isso significava um dia de descanso merecido. Para Kaizhat e seu grupo, significava algo ainda mais importante: arrumar a casa antes que ela se tornasse um verdadeiro caos.
Fred, jogado no sofá com as pernas abertas, soltou um suspiro profundo.
— Eu ainda acho que a gente devia só… deixar as coisas como estão. Tá aconchegante desse jeito.
Choi Miu, que segurava uma vassoura, olhou para ele com descrença.
— Aconchegante? Tem poeira o suficiente aqui para formar outro ser vivo.
Star Uonk concordou, pegando um pano e sacudindo no ar. Uma nuvem de poeira subiu, fazendo Fred espirrar violentamente.
— Pô, Star! — ele reclamou, abanando as mãos.
Ela riu.
— Viu? Se você não quer que a casa nos ataque, melhor a gente limpar logo.
Kaizhat, que estava no canto varrendo, olhou para o estado da casa. Realmente, precisava de uma boa limpeza. Os móveis estavam cobertos de poeira, os pratos estavam empilhados na pia e havia até algumas teias de aranha no teto.
— Tá, mas como a gente vai dividir o trabalho? — ele perguntou, encostando a vassoura no ombro.
Choi Miu ajustou os óculos e levantou um dedo, já pronto para organizar tudo.
— Simples. Eu faço a parte de catalogação e organização dos objetos. Star pode cuidar da louça e da cozinha. Fred e Kaizhat, vocês varrem e limpam os móveis.
— E eu? — Frida perguntou, cruzando os braços.
— Você… — Choi Miu hesitou.
Os olhos frios de Frida fizeram ele engolir seco.
— Você pode… ficar com a parte mais pesada, como limpar o porão e carregar os móveis para a gente reorganizar tudo.
Frida deu de ombros.
— Tanto faz.
Fred bateu palmas e sorriu.
— Então bora nessa, galera!
Kaizhat pegou um pano e um balde d’água e começou a limpar a mesa, enquanto Fred varria a sala com uma eficiência… duvidosa.
— Ei, Fred, você tá mais espalhando a sujeira do que varrendo! — Kaizhat reclamou, vendo o amigo passar a vassoura sem direção.
— Eu tô tentando, cara! Mas essa poeira parece ter vida própria!
Choi Miu revirou os olhos.
— É só varrer em uma direção. Você tá fazendo um tornado na sala.
Fred olhou para a vassoura e para a bagunça de sujeira que ele mesmo criou.
— Hmmm… então é assim que eles fazem aqueles ventos cortantes nas lutas?
Kaizhat riu.
— Se concentra, cara!
Enquanto isso, na cozinha, Star Uonk lavava a louça com animação, cantarolando uma música que lembrava sua terra natal.
— ♪ A gente lava, a gente esfrega, a gente vê a sujeira sumindo… ♪
Choi Miu, que estava organizando as estantes de livros, olhou para ela com uma sobrancelha arqueada.
— Essa música é real ou você tá inventando agora?
Ela riu.
— Eu acabei de inventar. Mas devia virar uma música oficial de faxina, né?
Fred gritou da sala.
— Apoiado!
Frida, por sua vez, estava no porão, arrastando uma estante enorme sozinha.
Kaizhat desceu até lá para ajudar, mas ao vê-la movendo o móvel pesado sem qualquer esforço, arregalou os olhos.
— O quê?! Você tá carregando isso sozinha?!
Ela deu de ombros.
— Sim.
Ele piscou algumas vezes.
— E você nem tá suando…
— Isso aqui não é nada.
Kaizhat suspirou, pegando um dos caixotes mais leves para não parecer completamente inútil.
De repente, um grito veio da sala.
— AAAAHHH!
Era Fred.
Kaizhat e Frida subiram correndo.
— O que aconteceu?! — Kaizhat perguntou.
Fred estava pálido, apontando para a parede.
— T-t-t-tem um bicho ali!
Todos olharam.
Era uma pequena aranha.
Frida suspirou, pegou sua lança e esmagou a aranha com a ponta da arma.
Fred soltou o ar, aliviado.
— Minha heroína…
Frida não respondeu, apenas voltou para o porão.
Star, segurando um prato ensaboado, olhou para Fred.
— Você enfrentaria um exército, mas tem medo de aranhas?
Fred cruzou os braços.
— Ei, aranhas são sorrateiras. Nunca se sabe o que estão pensando.
Choi Miu suspirou.
— Só você mesmo…
Depois de muito esforço (e algumas brigas sobre quem estava limpando errado), a casa finalmente começou a ficar organizada.
O resultado foi surpreendente.
A poeira havia sumido, os móveis estavam no lugar certo, a cozinha brilhava e até o porão parecia mais espaçoso.
Kaizhat olhou ao redor, satisfeito.
— Bom trabalho, pessoal.
Fred se jogou no sofá novamente.
— Foi o trabalho mais difícil da minha vida.
Star riu, sentando ao lado dele.
— Você fala isso, mas amanhã vai preferir esse trabalho ao treinamento.
Fred arregalou os olhos.
— Meu Deus, amanhã tem treinamento de novo?!
Choi Miu confirmou.
— Sim. E, depois do descanso de hoje, Xavier vai estar ainda mais animado para nos colocar para sofrer.
Fred fechou os olhos.
— Eu deveria ter fugido pra floresta enquanto era tempo…
Frida apareceu, bebendo um copo d’água.
— Isso não ia adiantar.
Fred suspirou.
— Eu sei…
O grupo riu.
Kaizhat olhou para todos. Eles já estavam juntos há algum tempo, mas parecia que, aos poucos, se tornavam uma família.
Mesmo em um mundo novo e estranho, eles tinham uns aos outros.
E isso era o suficiente.
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