O frio da manhã envolvia o reino como um véu de silêncio. A neblina espessa flutuava entre as ruas de pedra, escondendo os contornos dos edifícios e tornando a cidade medieval ainda mais misteriosa.

    Kaizhat abriu os olhos lentamente, sentindo um leve arrepio percorrer seu corpo. Ele não sabia ao certo por que havia acordado tão cedo, mas algo dentro dele o puxou para fora da cama.

    Levantando-se, ele passou as mãos pelo rosto, tentando espantar o cansaço. O colchão duro não o deixara dormir bem, e sua mente continuava mergulhada em dúvidas. Vestindo suas roupas simples, ele abriu a porta do quarto e caminhou até a entrada da casa.

    Ao sair, sentiu imediatamente o frio tocar sua pele. O ar estava úmido, e a névoa densa criava um ambiente quase surreal. As luzes fracas dos postes de tochas espalhados pelo reino tremeluziam, lutando para perfurar a cortina de neblina.

    Kaizhat inspirou profundamente. O cheiro da madeira úmida, da pedra fria e do ar matinal preencheu seus pulmões. Era diferente do cheiro do amanhecer em sua cidade natal, mas ainda assim, havia algo nostálgico na brisa gelada.

    Foi então que notou uma silhueta sentada nos degraus da casa.

    Fred.

    O grandalhão segurava uma caneca de barro entre as mãos, soprando suavemente o vapor que subia do líquido quente dentro dela. Seus olhos estavam fixos na névoa, como se estivessem vendo algo além do que os olhos poderiam alcançar.

    Kaizhat hesitou por um momento antes de se aproximar.

    — Você também acordou cedo? — sua voz saiu um pouco rouca devido ao frio.

    Fred virou-se para ele e sorriu, dando um tapinha no degrau ao lado.

    — Parece que sim. Vem, senta aí.

    Kaizhat aceitou o convite e sentou-se ao lado do alemão, sentindo o frio da pedra abaixo dele.

    — O que você tá bebendo? — perguntou, observando o vapor subir da caneca.

    Fred deu um gole e fez uma careta.

    — Chá. Pelo menos eu acho que é chá. Encontrei umas ervas no armário e joguei na água quente. Tem um gosto estranho, mas até que é bom.

    Kaizhat riu levemente.

    — Espero que não sejam venenosas.

    Fred soltou uma gargalhada baixa.

    — Se forem, acho que só vou descobrir tarde demais.

    Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, observando a neblina dançar pelo reino. Era uma cena pacífica, mas ao mesmo tempo, melancólica.

    Kaizhat abraçou os próprios joelhos.

    — Você sente falta de casa?

    Fred respirou fundo antes de responder.

    — Muito.

    Kaizhat ficou em silêncio, esperando que ele continuasse.

    — Eu sempre fui um cara simples, sabe? Lá na Alemanha, minha vida não era nada demais. Mas era minha. Trabalhava, saía com amigos, visitava minha família nos finais de semana… Não era perfeito, mas eu gostava.

    Ele tomou mais um gole do chá, mantendo os olhos na neblina.

    — Agora, tudo isso parece tão distante… Como se fosse um sonho.

    Kaizhat assentiu.

    — Eu também me sinto assim. Um dia eu tava indo pra escola, conversando com meu amigo sobre besteiras, pensando no que ia comer no jantar… E agora, estou aqui.

    Ele apertou os punhos.

    — Eu fico me perguntando se minha mãe tá bem. Se ela percebeu que eu desapareci… Se meus irmãos estão preocupados comigo.

    Fred olhou para ele, seus olhos expressando uma compreensão silenciosa.

    — Eu tinha uma irmã mais nova — disse, após um tempo. — Ela sempre implicava comigo, dizia que eu era um bobão, mas no fundo, a gente se dava bem.

    Ele sorriu de leve.

    — Toda vez que eu voltava pra casa, ela roubava a última fatia de bolo que minha mãe fazia. Era meio irritante, mas agora… Agora eu daria qualquer coisa pra passar por isso de novo.

    Kaizhat sentiu um aperto no peito.

    — Eu também tenho irmãos. Quatro. Sempre faziam barulho pela casa, brigavam por besteira, enchiam o saco… Mas agora eu daria tudo pra ouvir eles brigando de novo.

    Os dois ficaram em silêncio. A saudade era um peso invisível, esmagador.

    Fred suspirou, girando a caneca entre os dedos.

    — Sabe o que é mais estranho?

    Kaizhat o olhou.

    — Eu sei que preciso seguir em frente. Sei que minha vida agora é aqui. Mas ao mesmo tempo… eu tenho medo de esquecer.

    O japonês piscou, confuso.

    — Esquecer?

    Fred assentiu.

    — Esquecer o som da risada da minha irmã. O cheiro da comida da minha mãe. O jeito que minha cidade ficava no inverno… Eu tenho medo de que, com o tempo, tudo isso vá desaparecendo.

    Kaizhat sentiu um nó na garganta. Ele nunca tinha pensado nisso, mas Fred tinha razão. E se, com o tempo, as memórias da sua casa começassem a se desfazer? E se um dia ele acordasse e não conseguisse mais lembrar do rosto da sua mãe com clareza?

    O pensamento era aterrorizante.

    Kaizhat respirou fundo e encarou a neblina à sua frente.

    — Eu não quero esquecer.

    Fred sorriu de leve.

    — Então a gente tem que se lembrar juntos.

    Kaizhat o olhou, surpreso.

    — Sempre que der, a gente conversa sobre nossa casa. Compartilhamos histórias. Mantemos nossas memórias vivas. Se a gente fizer isso, elas nunca vão sumir.

    Kaizhat não soube o que responder de imediato, mas então, sorriu.

    — Parece uma boa ideia.

    Os dois ficaram ali por mais um tempo, compartilhando pequenas histórias sobre suas vidas antes de Estier. Pequenos detalhes que pareciam bobos, mas que, naquele momento, significavam tudo.

    E assim, enquanto o reino despertava lentamente por trás da cortina de névoa, Kaizhat e Fred fizeram um pacto silencioso.

    Eles não esqueceriam.

    A neblina ainda pairava densa sobre o reino, mas o frio da manhã já não incomodava tanto. O chá de Fred, mesmo com o sabor duvidoso, trazia um calor reconfortante às mãos e ao peito. Sentados nos degraus da casa, Kaizhat e Fred continuavam sua conversa, mergulhando mais fundo nas lembranças de suas vidas antes de Estier.

    — Então… como era sua vida na Alemanha? — Kaizhat perguntou, curioso.

    Fred encostou-se à parede de madeira da casa, cruzando os braços.

    — Bom, eu diria que era bem comum. Trabalhava durante o dia, jogava videogame à noite e, quando tinha tempo, saía pra beber com os amigos.

    Kaizhat ergueu uma sobrancelha.

    — Jogava videogame?

    Fred sorriu.

    — Pois é. Apesar da minha idade, eu era um nerdão. Sempre fui viciado em RPGs, aqueles jogos de mundo aberto gigantescos, sabe?

    Kaizhat riu.

    — Você? Um nerd? Com esse tamanho todo?

    Fred deu de ombros.

    — Eu sei, eu sei. Meu físico não combina muito com a ideia de alguém que passava madrugadas tentando derrotar chefes impossíveis.

    Kaizhat balançou a cabeça, ainda rindo.

    — Nunca imaginei que ia acabar num mundo medieval com um cara que, em outra vida, provavelmente passava mais tempo em frente a uma tela do que levantando uma espada.

    Fred riu junto.

    — E você? Como era a vida no Japão?

    Kaizhat suspirou, olhando para a neblina.

    — Movimentada. Todo dia tinha algo acontecendo. Eu vivia na correria da escola, treinava esportes de vez em quando, saia com meu amigo Fukuji…

    Ele sorriu de leve ao lembrar do amigo de infância.

    — Ele sempre me arrastava pra todo tipo de evento. Festivais, apresentações, até concursos de comida…

    Fred arregalou os olhos.

    — Concursos de comida?

    — Sim! Tinha um festival na minha cidade que fazia isso todo ano. Quem comesse mais rápido ganhava um prêmio.

    — E você participou?

    Kaizhat riu, envergonhado.

    — Sim… e falhei miseravelmente. Nem consegui terminar metade da comida antes de quase engasgar.

    Fred caiu na gargalhada.

    — Cara, eu daria tudo pra ter visto isso!

    — Não ria! Foi humilhante!

    Fred se segurou para não rir mais, mas depois de alguns segundos, suspirou.

    — Cara, sinto falta dessas coisas. Sinto falta de momentos simples, desses eventos bobos que fazem a vida valer a pena.

    Kaizhat assentiu, compreendendo.

    — Eu também.

    O silêncio voltou por um momento, mas então Fred quebrou a quietude com uma pergunta:

    — Quantos anos você tem mesmo?

    — Dezessete.

    Fred soltou um assobio.

    — Nossa, você é um bebê.

    Kaizhat franziu a testa.

    — Bebê o quê? Eu já sou quase adulto!

    — “Quase” não é “adulto”, garoto. — Fred riu, apoiando os cotovelos nos joelhos. — Eu tenho trinta e dois.

    Os olhos de Kaizhat se arregalaram.

    — Trinta e dois?!

    — Exatamente.

    Kaizhat o olhou de cima a baixo.

    — Você não parece ter trinta e dois…

    — O que isso significa?

    — Sei lá, você não tem cara de velho.

    Fred bufou.

    — Ótimo. Eu passo tempo demais jogando RPGs, acabo num mundo medieval e agora um moleque de dezessete anos tá me chamando de “não tão velho”.

    Kaizhat riu.

    — Mas trinta e dois anos… você já viveu o dobro do que eu vivi.

    Fred olhou para a cidade adormecida, seu rosto ficando mais sério.

    — Sim. E posso te dizer que, não importa quantos anos você tenha… sempre vai sentir falta de algo.

    Kaizhat ficou em silêncio, absorvendo aquelas palavras.

    Fred olhou para ele e sorriu de leve.

    — Mas quer saber a parte boa?

    — O quê?

    — A gente pode criar novas memórias. Aqui, nesse mundo novo.

    Kaizhat refletiu sobre isso.

    — É… acho que tem razão.

    Os dois ficaram ali, sentados, enquanto o reino começava a despertar aos poucos. O passado ainda doía, mas pelo menos, agora, Kaizhat sabia que não estava sozinho.

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