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    O crepúsculo matinal se aproximava na Selva de Concreto. Os céus outrora escuros, assumiam uma tonalidade sépia. O contraste das cores tornava o vermelho das folhas mortas ainda mais intenso, enquanto empalidecia os troncos escuros.

    No coração daquele lugar, uma multidão caminhava de forma cerimonial entre as árvores. Seus passos eram constantes e sincronizados, suas feições não aparentavam o menor sinal de medo. As criaturas que habitavam aquele lugar residiam ocultas, apenas observando o que um dia foram suas presas. Seus corpos, embora funcionais, exibiam sinais de mutilação em diversas regiões.

    Um deles não tinha mandíbula. Outro estava sem ambos os braços e um dos que estava mais à frente da procissão não tinha uma parte consideravelmente grande do seu tórax, além das suas cavidades oculares estarem sem seus olhos. O que os movia não era sua vontade de viver, mas a magia obscura que existia na Selva de Concreto. Uma força maligna, que tomava os corpos e os forçava a continuar funcionando, mesmo contra todas as probabilidades.

    Os corpos ambulantes caminhavam incansavelmente, quando se depararam com uma enorme árvore na sua frente. Seu tronco era espesso, quase da mesma largura de um pequeno prédio. Suas raízes eram tão extensas que mesmo estando a cerca de vinte metros de distância do tronco, elas pareciam tão grossas quanto as que estavam na base dele. Seu caule possuía tantas ramificações entrelaçadas entre si que parecia uma couraça protetora do caule principal.

    Seus galhos eram grossos e extensos, atingindo centenas de metros para todos os lados. Sua folhagem era tão frondosa que a simples ideia de contá-las parecia uma atividade para três reencarnações. Sua altura era tão impressionante que ao olhar para cima, seu tamanho não poderia ser medido apropriadamente, pois o que aparentava ser sua copa, ajudava a esconder o quanto mais ela tinha crescido.

    E essa nem era a parte mais bizarra. Ao longo da sua extensão, rostos agonizantes eram esculpidos pelas formações únicas do caule, como se algo preso estivesse tentando sair daquele lugar. De vez em quando, era possível ver alguns galhos se movendo de forma errática.

    Havia cerca de trinta pessoas reunidas ao redor da árvore, completamente ociosas, com seus corpos balançando levemente de um lado para o outro, oscilando. Então, na base da árvore, os caules se reviraram, como se estivessem abrindo passagem para alguma coisa. Quando um buraco escuro surgiu, uma figura misteriosa saiu de lá.

    Coberto por um enorme manto de lã escura, o que aparentava ser um homem velho caminhava lentamente em direção às pessoas. Ele portava um cajado de madeira que parecia ajudá-lo a andar. Seus pés estavam descalços, suas vestes se resumiam a uma enorme taparrabo em suas pernas e um colar rudimentar decorado com dentes de várias criaturas.

    Sua pele era flácida, o que ressaltava a falta de músculos definidos em seu corpo. Várias cicatrizes espalhadas em seus braços, tórax e rosto demonstravam a experiência de um homem velho. Sua barba, branca e suja, alcançava o centro da sua caixa torácica. Seus olhos eram sábios, cautelosos e peculiares. Sua íris era verde, mas não um verde natural e sim um verde cintilante. Sua esclera, ainda branca, tinha várias pequenas manchas verdes que se mexiam erraticamente pelos seus olhos, como se fossem folhas em uma ventania.

    A multidão se movia junto com o velho, formando um enorme círculo ao seu redor. Seus olhos, completamente sem vida, eram abastecidos com uma energia amarela profana e ameaçadora, que mantinha seus cadáveres reanimados e funcionais. Para aqueles que tinham uma visão mais apurada, era possível observar um pequeno fio dourado que saía do senhor e se conectava com cada uma daquelas pessoas.

    — Meus filhos! — disse o senhor, com sua voz ríspida e rouca. — Que dádivas vocês trazem para mim nas profundezas deste lugar abençoado pela mãe-natureza?

    Vários deles deram um passo à frente, portando consigo um cadáver dos saqueadores mortos mais cedo. Alguns os carregavam por cima do ombro, outros os arrastavam, os mais corteses os traziam carregados em seus braços. Entre eles, uma em específico chamou sua atenção: uma mulher de casaco vermelho, que estava com o pescoço dilacerado.

    O velho passou sua mão magra sobre os cabelos carmesins da moça, com um olhar piedoso.

    — Vejam como o mundo trata a humanidade, meus filhos! — bradou, enquanto confrontava a multidão. — A civilização, a sociedade, o maquinário arcano-capitalista! Eles trocaram a vida harmoniosa com a natureza para formar sua simbiose com a ganância! Isso os tornou violentos, imprevisíveis e ingratos! Porém, fomos abençoados pelo deus que morreu nessa terra sagrada! Ergam-se, minhas crianças! Bebam do seu sangue, alimentem-se do sumo deste solo e renasçam mais uma vez, não como um humano condenado à morte, mas sim como um arauto do Verde, pronto para derrubar a maldição de metal que os protegem!

    Houve um silêncio generalizado, pois ninguém sequer entendia o que o druida estava falando. Tudo que os corpos reanimados conseguiam escutar era um ruído constante, que variava baseado nos sons do ambiente. E isso pouco importava para ele também, pois nem ele acreditava no que dizia.

    Desde que descobriu a fonte imensa de poder do Sagrado na Selva de Concreto, ele esteve fissurado para conseguir o máximo possível. Embora não conseguisse conduzir pelo seu corpo, que já tinha a presença do poder Primordial. Mas ao descobrir que essa energia poderia se concentrar em corpos mortos, ele poderia usar a energia do corpo deles para se converter na sua, como se fossem uma espécie de conversor e intermediário.

    Nos últimos anos, ele dedicou sua vida a aumentar o seu poder Primordial em detrimento do próprio corpo. Embora tenha sido um preço caro, foi um valor que valeu a pena pagar. Embora ainda fosse um sonho distante, a ideia de colocar todo o Santo Império sobre seus pés não era algo impossível.

    — Dito isso, daremos início ao ritual.

    Deixando os cadáveres no chão, as pessoas que os trouxeram começaram a escavar o solo com as mãos nuas. Porém, diferente do esperado de uma pessoa comum, sua velocidade era muito maior. Os punhados de terra voavam, aumentando constantemente o enorme buraco que tinha acabado de se formar. O velho caminhava em volta dos escavadores, proferindo cânticos em idiomas desconhecidos.

    Uma brisa fria passou pelo lugar, seguido de um sussurro misterioso. O druida olhou para o alto, sabendo que o Chamado Obscuro estava clamando por oferendas. Um círculo cravado no solo se formou ao redor do buraco. Das suas marcas, um líquido transparente escorria lentamente até o final daquela cova.

    Sem perder tempo, as pessoas jogaram os cadáveres ali dentro, todos empilhados e de qualquer jeito. O buraco tinha cerca de dois metros de profundidade, o que era impressionante levando o tempo que levou para ser concluído. Quando todos os corpos atingiram as profundezas, o líquido na borda começou a ficar mais intenso, a ponto de deixá-los completamente submersos. Então, taparam o solo com a terra residual.

    — Observem, meus filhos! A chegada de seus irmãos!

    O velho balançou o cajado mais algumas vezes pelo ar. De repente, um vórtice de vento atingiu o solo, erguendo todas as folhas no lugar. O círculo começou a brilhar em dourado, emitindo diversas partículas cintilantes que caíam sobre a região do enterro. Isso durou uns bons minutos, até o brilho desaparecer e o vento parar.

    Rompendo do solo, uma mão surgiu. Seus dedos acinzentados se mexeram de um lado para o outro até cravarem no solo, para servir de apoio. Então, várias outras mãos surgiram, se apoiando no solo também. Não demorou para os corpos emergirem da terra, completamente acinzentados e com suas veias brilhando em dourado. Sem se incomodar com a terra em seu corpo, tomaram fileira junto com os membros mais antigos.

    — Meus filhos lindos! Bem-vindos à minha legião!

    Inspecionando cada um deles, o velho não podia evitar de demonstrar orgulho por suas criações. Todos enfileirados, fortes e capazes de obedecer a qualquer um dos seus comandos. Sua atenção caiu na nova versão da Hinoka, que era diferente do resto. Com um simples aceno de cabeça, ela levantou sua blusa. Do seu pescoço, uma grossa linha dourada cintilante se estendia até o seu peito, onde se dividia em duas ramificações onde cada uma delas delineava o formato dos pulmões. A forma como o Sagrado subia e descia através das ramificações era algo belíssimo.

    — Vejo que foi abençoada, minha filha! Logo colocaremos você em prática.

    O céu ficava mais claro a cada minuto, era o momento ideal para recuar e descansar para a outra noite. O druida bateu a ponta do cajado no chão, uma ordem subliminar para suas criaturas se misturarem na natureza. Porém, algo chamou a atenção dos seus sentidos.

    — Esperem!

    O homem olhou em direção ao sudoeste atentamente, como se quisesse capturar alguma coisa. Então, seus olhos se fecharam e seu corpo ficou estático como uma estátua. Na escuridão das suas próprias pálpebras, ele conseguia observar a Selva de Concreto através dos seus vários círculos em Ogam distribuído por lá. Então, sua visão captou algo peculiar: Um acampamento. Haviam dezenas de luzes amarelas ao seu redor, com uma energia muito sinuosa, capaz de ocultar presenças.

    Se algo tão engenhoso estava ali, significa que seu dono deveria estar por perto. O que também significava que haviam muito mais gente para poder “doutrinar”.

    — Meus filhos, hoje teremos trabalho a fazer! Sigam-me!

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