Capítulo 105 — Você esqueceu que ela existe, né?
Três dias antes da queda de Santa Marília…
O noroeste de Santa Marília era um lugar tomado pela natureza. Com exceção das ruínas de um antigo vilarejo, toda a área tinha sido tomada pelo verde. Houveram várias tentativas de tornar a região em um longo campo de cultivo, mas a intensidade e hostilidade da mana primitiva no solo fazia com que as sementes fossem devoradas, os animais se perdessem na mata e a vegetação rompesse as construções, outrora de madeira. Como resultado, o lugar foi abandonado.
Mesmo sem qualquer vigilância, ninguém normalmente se arriscava em tentar reclamar o lugar para si. Durante a noite, era possível escutar ruídos e vozes ecoando entre as árvores e sibilos espreitando nas sombras. Se a causa da morte não fosse um soterramento acidental, um inseto perdido dentro das suas calças ou uma criatura que te devorasse de cima para baixo, seria pela paranoia de estar sendo constantemente observado.
Felizmente, Ayda não era alguém normal. Usando o interior de uma sequoia com mais de dois séculos, a moça estabeleceu um acampamento a cerca de trinta metros do solo. Era um espaço oco que, outrora ocupado por aranhas e bem-te-vis, tinha sido limpo, expandido e perfumado com mirra. Um saco de dormir modesto, uma mesinha portátil com vários pergaminhos sobre ela, uma aljava no canto e um arco composto recostado na parede do tronco repousava serenamente.
Com o sol matinal despontando no horizonte, a moça residia ao lado da sequoia, prostrada de joelhos sobre uma longa pele curtida de javali. Toda manhã, ela colocava seu longo e fino robe branco e rezava em persa antigo, homenageando Aúra-Masda. Já tinham quatro meses desde que chegou em Santa Marília para sua investigação contra a Mão Sombria, mas além do filho mais velho dos Bakir, não conseguiu encontrar ninguém que pudesse dar qualquer pista de onde estaria centrado a presença do Mal que habita sorrateiramente na cidade.
Sua mente estava em um turbilhão de ideias, procurando por qualquer tipo de orientação divina. Embora adorasse a natureza, estar naquele lugar por tanto tempo já estava se tornando insuportável.
— Oh, todo poderoso! — suplicou ela. — Peço que, por favor, ilumine meu caminho através da chama divina! Mostre-me a verdade nesse caminho maligno que…
Foi então que sons de folhas secas sendo esmagadas chamaram sua atenção. Como uma guardiã, seus sentidos estavam além do que um humano poderia fazer. Eram seis pares, cinco deles pesados e firmes, provavelmente homens. Porém, o outro era leve e se movia apressadamente, como se estivesse fugindo dos outros.
Aquilo era particularmente estranho, pois nesses quatro meses, ninguém além dela pisou os pés naquela região tão profunda.
— Talvez isso seja a iluminação que eu procurava… — murmurou.
Ao lembrar que seu arco e seu equipamento estavam no topo da árvore e que demoraria bastante para se arrumar apropriadamente, a moça pegou um cipó e amarrou firme na cintura, para garantir que sua túnica não a pegasse de surpresa, pois era a única coisa que cobria sua total nudez.
Diferente dos brutos que subiam as montanhas, seus passos leves e rápidos pelo solo poderiam facilmente ser confundidos com o de um animal pequeno. Sua agilidade imprescindível a fez escalar a árvore mais próxima com apenas dois impulsos, fazendo-a atingir o seu topo e ter uma boa visão do que estava acontecendo no solo.
A primeira coisa que chamou sua atenção foi uma jovem à beira da exaustão passar correndo desorientada pela floresta. Não carregando nada além de uma mochila, ela parecia que passou as últimas horas fugindo pela própria vida, porém estava a um passo de colapsar.
Cinquenta metros atrás, um grupo de milicianos com machetes e bestas de mão seguiam o rastro deixado pela jovem com uma determinação terrível.
— Garota! — bradou um deles. — Pare de nos fazer perder tempo e se renda. Não vamos te machucar! Nosso chefe só quer ter uma palavrinha com você, só isso.
— Ou resista então, ninguém vai te ajudar mesmo nesse fim de mundo… — murmurou o outro.
— Que isso, cara! Ela não parece que nem fez dezoito ainda!
— E daí? Você tá entregando os irmãos agora? Além disso, o que aquele doutor maluco vai estragar ela todinha, então nada mais justo do que poder aproveitar uma bucetinha jovem enquanto ela ainda serve pra alguma coisa. Não concorda comigo?
O outro fez uma clara expressão de desgosto.
— Vire seus fetiches pra lá, mano. Eu só tô aqui para fazer o meu trabalho.
— E eu também, mas não quer dizer que eu não possa me divertir um pouco, né? Da última vez não tinha sido você?
— Shhh! E outra, elas estavam chapadassas, então não é bem a mesma coisa. Teoricamente elas gostaram.
O outro franziu os olhos.
— Sei…ih, olha ela lá! Nem vamos precisar correr dessa vez, ela tá quase caindo.
Havia um comportamento específico no ser humano que não era comum entre as outras criaturas: quando estavam prestes a capturar sua presa, baixavam a guarda. Nunca era quando tinham capturado efetivamente, mas sempre antes de capturar. Embora tivesse sido uma boa aluna, seu teste mais difícil foi cultivar o foco necessário para finalizar o serviço o mais rápido possível, enquanto estivesse com a vantagem, pois a realidade tinha um costume péssimo de inverter as circunstâncias.
Os dois que estavam liderando apertaram o passo, enquanto o terceiro apenas seguiu no seu ritmo tranquilo, o quarto parou para fumar e o quinto foi aliviar a bexiga na árvore mais próxima. Todos ali não estavam muito distantes um dos outros, além de estarem dentro da visão periférica dos seus companheiros.
Mas para Ayda, aquilo era mais do que o suficiente.
Ela correu sobre o galho e saltou direto no outro, causando um farfalhar das folhas que chamou brevemente a atenção do terceiro. Enquanto ele ainda olhava pro lado errado, Ayda saltou de cima da árvore sobre a cabeça do homem que estava mijando.
Seu peso caiu sobre os ombros dele, derrubando-os no chão. O homem, confuso, se levantou e tentou alcançar sua machete, mas ela não habitava mais o seu coldre.
— Tá procurando isso? — disse uma voz feminina, atrás dele.
O miliciano olhou na direção da voz, apenas para ver uma mulher em um robe branco mover a machete com tanta fluidez e naturalidade em um arco horizontal que passou pelo seu pescoço como uma faca quente na manteiga. Sua cabeça saltou para trás, enquanto seu corpo caiu para frente, esguichando sangue e maculando a pureza da túnica.
O quarto deles, assistiu a cena com profundo horror e confusão. Seus lábios tremiam, fazendo o cigarro dançar sobre seus lábios. Antes que pudesse pedir por ajuda, Ayda já tinha tomado impulso e arremessado a machete com tamanha força e precisão que ela atravessou seu pescoço, o que o fez cair duro no chão.
A queda chamou a atenção do terceiro, que virou para trás e viu uma mulher suja de sangue rolando pelo solo e arrancando a besta de mão da cintura do corpo do quarto miliciano, recarregando-a como uma tempestade.
— ESTAMOS SENDO ATACADOS! FORMAÇÃO! — gritou ele, correndo para trás de uma das árvores.
Os dois primeiros pararam imediatamente e correram para trás das árvores, tentando ganhar cobertura e tempo para recarregar suas bestas. Porém, era exatamente o que ela queria: homens desesperados que buscavam a autopreservação acima da tática. Ayda imediatamente rolou para a esquerda, escalando a árvore mais próxima como um macaco frenético e saltando para a outra.
Quando o terceiro apontou sua besta para a posição onde ela estaria, não encontrou nada além do quarto caído no chão.
— Pra onde aquela desgraçada foi?
Ayda estava com seu foco travado nos dois primeiros. Ao saltar para a próxima árvore, seu corpo girou no ar, o que deu tempo suficiente para ela mirar a seta na nuca do homem no solo e realizar um disparo de precisão. A seta viajou com uma pequena curva, perfurando a lateral do pescoço do miliciano, junto com sua jugular. Enquanto ele caía vergonhosamente no chão, ela pousava graciosamente sobre a árvore.
— Desgraçada! — disse o primeiro, disparando a seta na direção dela.
Embora treinados, eles não eram atiradores natos. E qualquer tiro de Ayda pudesse ver de alguém que não tinha uma vasta experiência em tiros não representava ameaça alguma. Seus dedos capturaram a seta e ela imediatamente a usou para recarregar a própria besta, disparando contra o homem de volta.
Para sua surpresa, o segundo saltou na frente com um pequeno broquel e bloqueou a seta.
— Parece que suas setas acabaram, vadia! E aí, vai ficar aí em cima pra sempre? — disse o segundo. — Por que não desce aqui pra gente brincar, hein?
O primeiro pensou em contestar, pois ela já tinha matado três dos seus colegas em um intervalo de vinte segundos, porém a única coisa que conseguiu fazer foi sacar a sua machete e esperar pelo melhor.
Por um lado, eles estavam certos. Sua melhor ferramenta para combatê-los a distância naquela situação era a besta e ela não teve tempo de pegar mais setas. Por outro lado, eles estavam completamente enganados em achar que aquilo daria qualquer vantagem para eles.
Suas mãos desataram o nó da robe que estava usando. As coisas estavam prestes a ficar mais quentes.

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