Capítulo 11 — O Prazer da Pólvora
Rodrich acordou mais uma vez, com um pouco mais de suavidade do que da última vez. Era um homem do proletariado, acostumado a acordar às cinco da manhã. Os céus estavam começando a clarear e da fogueira só restaram as brasas. As moças dormiam em paz, como não tinham conseguido fazer no tempo em que estavam presas.
A névoa matinal tomava conta de todo o acampamento, tornando a visualização difícil. Ele tocou na cintura, porém ao perceber que não tinha nada lá, sentiu falta de algo. Coçou a mão mais uma vez, se lembrando da sensação de mais cedo. Aquele lugar era aterrorizante, principalmente se não tivesse nenhuma forma de se defender além de um pedaço de madeira.
— Como eu queria meu cachimbo agora…
Sem ter para onde ir, Rodrich começou a caminhar pelo acampamento, tentando colocar a cabeça no lugar. O som das folhagens balançando do lado de fora dos muros o deixava inquieto, imaginando o que poderia estar espreitando na escuridão, prestes a atacar. Aquilo não estava ajudando. Então, sua atenção se voltou para a barraca.
Aquele lugar o intrigava. Ele podia jurar que havia alguém ali dentro, mas nunca foi capaz de ver quem era. Além disso, Huan Shen nunca tinha dito para não entrar ali. Será que era onde dormia? Uma espiadinha não deveria fazer mal, ele pensou.
Se aproximando cuidadosamente, o detetive inclinou sua cabeça na direção da entrada da barraca. Se aquele homem estivesse realmente lá dentro, qual poderia ser sua reação? Ele parecia tranquilo o bastante para não reagir violentamente, mas também poderia pensar que estaria tramando contra ele e ter uma reação rápida e letal. Por mais que detestasse admitir, Huan Shen poderia quebrar seu pescoço com tamanha facilidade.
De repente, Rodrich sentiu uma mão tocando em seu ombro. Seu corpo tremeu e o medo subiu pela sua espinha, fazendo-o se virar depressa e recuar alguns passos. Ele tinha feito algumas aulas de karatê, mas fazia anos que não praticava. Para sua surpresa, não era quem o detetive esperava que fosse.
— Melissa? O que está fazendo aqui? — perguntou ele, sussurrando.
A moça ainda estava enrolada nas cobertas, enquanto o encarava com um olhar repreensivo.
— Eu é que pergunto! Não podia continuar dormindo como qualquer pessoa normal? Veio fazer o quê xeretando aqui? — respondeu ela, também sussurrando.
— Eu sou um detetive, senhorita! Eu preciso de respostas, senão eu não consigo dormir em paz!
Vendo que não conseguiria dissuadi-lo, apenas fez um aceno com a cabeça para ele continuar, afinal nem todos os homens eram facilmente dissuadidos. Para garantir que ele não cometeria nenhuma besteira, ela decidiu pelo menos acompanhá-lo. Já tinha perdido o sono e não tinha nada de interessante para fazer ali mesmo.
Rodrich, cautelosamente, abaixou o zíper que fechava a entrada da barraca e entrou nela, acompanhado de Melissa. Seu espaço interior não era enorme, mas tinha espaço para armazenar umas dez pessoas com bastante folga. Haviam alguns baús empilhados do lado esquerdo e uma mesa emborcada, com várias marcas de pontas cravadas por toda a superfície.
— Então era aqui que aqueles malditos guardavam tudo que roubavam dos outros! — disse Melissa, enquanto olhava seus arredores.
Rodrich se agachou no chão, tentando deduzir o que tinha acontecido ali. Havia uma embalagem de sanduíche semelhante aos que consumiram mais cedo completamente amassada no canto. O cheiro ainda era forte, indicando que tinha sido consumido recentemente. Próximo dali, tinham pedaços de corda largados. Suas extremidades indicavam que tinham sido cortadas, mas havia também sangue seco em sua estrutura, o que o fez acreditar que algo estava preso por elas e tentou sair na base da força.
— Quem será que estava preso aqui? E por qual motivo? — murmurou Rodrich, observando as gotas de sangue espalhadas no solo.
Seguindo o rastro sutil, o detetive fez uma descoberta terrível: dedo anelar esquerdo, largado no canto da barraca. Aquilo não despertou nojo em Rodrich, pois já estava acostumado com cenas de crime, mas suas preocupações estavam no fato do que acabou causando aquilo. Olhando de perto, era um dedo de uma mulher jovem, que mal tinha entrado na casa dos vinte. As lacerações no membro indicavam marcas de corte e perfuração bastante brutais, como se tivesse sido arrancado por algo bastante voraz.
— Deuses, o que será que aconteceu aqui?
Então, um som seco de uma pancada surgiu no outro lado da barraca, assustando o detetive. Melissa, com um pé de cabra em mãos, forçava a abertura de um dos baús. Para sua surpresa, ela parecia estar se divertindo bastante com isso. Era um baú alongado, com quase dois metros de comprimento e meio metro de largura. Era o maior dos que estavam ali.
— Cuidado para não se machucar — disse ele, se aproximando.
Posicionando a ponta da ferramenta exatamente no minúsculo espaço entre a tampa e a estrutura, ela concentrou seu peso na outra extremidade, criando um desnível tão grande de força que o cadeado se rompeu violentamente.
— Aos vencedores, os espólios! — respondeu Melissa, com um sorriso.
Ao abrir o baú, deu para perceber que haviam muitas coisas importantes ali. A base era completamente revestida com palha para amortecer os produtos. Em uma sacola de pano, haviam duas pistolas de autodefesa. Elas eram leves e práticas o bastante para segurar apenas com uma mão.
— Armas de fogo? — indagou Melissa. — Não é ilegal o porte de armas sem registro oficial no Santo Império? E pelo que estou vendo aqui, o número de série está raspado!
Rodrich retirou a sacola e as analisou mais friamente. Antes de ser detetive, serviu à sua pátria por quase vinte anos. Embora não fosse um atirador de alto nível, sabia o bastante para derrubar um homem. E ele já tinha derrubado vários.
— Essa é uma semiautomática de defesa pessoal padrão do Santo Império. É comum entre policiais, capitães e cavaleiros quando não estão servindo. Doze centímetros de cano, porte para um cartucho de dez balas, calibre .45 ACP, design ergonômico para reduzir o recuo, trava de segurança ambidestra e ainda tem cheiro de novo, como se tivesse acabado de sair das mãos do armeiro. Até uma dama como você consegue manuseá-la com apenas uma mão, milady.
Melissa ergueu uma sobrancelha, observando-o entregar a arma em suas mãos.
— Nem posso imaginar as complicações legais que eu posso sofrer só por segurar uma coisa dessas!
— Estamos no meio da Selva de Concreto, Melissa! — disse Rodrich. — Tudo que fizermos aqui será considerado legítima defesa quando estivermos relatando aos policiais. Não sei como será daqui para frente, mas você precisa pelo menos conseguir se defender caso eu não esteja por perto.
A mulher olhou aquela arma posta em suas mãos, enquanto se indagava se seria capaz de atirar em alguém. Toda sua vida foi moldada em torno de atividades femininas e administrativas, nada que pudesse passar perto de puxar um gatilho. Seus parentes já achavam que era um exagero ela comprar um taser de bolsa, imagina uma pistola?
Enquanto isso, Rodrich revirava ainda mais a caixa, a procura de mais informações. Ele sabia que uma pistola daquelas era fácil o bastante para Melissa se defender, mas armas daquele tipo não faziam seu gosto. Foi então que, embaixo daquela palha, ele encontrou o que exatamente procurava: Um belo exemplar de rifle de repetição. Cano longo de cinquenta centímetros, perfeito para o combate a distância. Uma coronha revestida em couro, uma mira óptica removível e com capacidade para um carregador capaz de armazenar até cinco cartuchos de uma .223 Remington.
— Deuses, olha essa belezinha…
Se as circunstâncias fossem outras, o detetive iria chorar. Como armas de fogo tinham um controle muito rígido, ele não poderia ter acesso a tantas sem uma justificativa plausível, algo que quase nunca ele tinha. Um pequeno pesar surgia em seu coração, sabendo que teria que devolver assim que voltasse para as terras do Santo Império.
— Rodrich, olha o que eu achei aqui!
Após colocar a alça do rifle em suas costas, o detetive se aproximou para ver o que sua colega tinha achado. Ela parecia estar analisando alguns papéis e pela sua cara, pareciam ser importantes.
— Sabe o que é isso? Documentos bancários de transferência financeira.
Pegando algumas folhas em suas mãos, Rodrich começou a analisá-los junto com ela. Ali, tinham registros carimbados e assinados por alguns nomes familiares, não apenas para ele e sim para o Santo Império como um todo. Valores que iam de quinze mil draconis até mesmo cem mil. Isso o deixou confuso.
— Não tem como isso ser verdade. As chances de isso serem falsificações são altas.
— As chances de isso serem falsificações são nulas, detetive — respondeu Melissa. — O Banco Central marca seus documentos com uma Prensa de Laplace. Todo documento marcado por ela tem um selo que possui um relevo único, que até onde eu sei, não pode ser replicado por nenhum tipo de magia.
Rodrich passou o polegar sobre a marca, confirmando a veracidade dela. Era difícil acreditar que alguns bandidos estavam em posse de algo tão “seguro” como aquele. Isso o fez expandir seus horizontes, percebendo que havia muito mais coisa que ele não fazia ideia.
— Olha que coisa peculiar, todas essas ordens de pagamento têm origens diferentes, mas estão endereçadas para a mesma pessoa: Jurandir D. Gouveia. Seria ele a pessoa que está por trás de tudo que está acontecendo conosco? — indagou Melissa.
— Jurandir? É difícil ver um nome nativo das terras hoje em dia… mas respondendo sua pergunta, dificilmente. Esse cara deve ser um laranja, um intermediário legal entre o possível contratante e o executor ilegal, que seriam esses caras. Mas não faz sentido isso tudo ser apenas por nossas causas. Tem transferência aqui no valor de cinquenta mil draconis! Duvido que alguém pagaria isso para se livrar de um detetive qualquer em Polimnia como eu.
Passando o olho rapidamente pelos documentos, algo chamou atenção da moça. Em uma das ordens de pagamento, um nome familiar estava presente como o dono da ordem: Marco Pizzuti, o filho mais velho do falecido dono da rede de hotéis Pizzuti, Giuseppe Pizzuti. Seu coração pesou, percebendo o quanto aquilo significava. Uma singela lágrima surgiu no canto esquerdo do seu olho, mas aquele não era um momento de mostrar sua fragilidade. Sua sobrevivência vinha em primeiro lugar.
— Esses documentos não têm nenhuma informação direta sobre o motivo da transferência bancária — disse Melissa.
— Faz sentido, já que segundo o Banco Central, é importante preservar a privacidade dos participantes. Então esse campo é sempre opcional.
— Detetive, não precisa ser tão polido em relação a isso! Todos sabemos que é opcional porque o Banco Central se mantém isento de qualquer problema relacionado a transferência financeira e mantém o anonimato de quem está realizando lavagem de dinheiro.
Rodrich deu um leve sorriso. Era bom estar na companhia de alguém que conseguia estar em uma situação difícil e conseguir acompanhar o seu ritmo, sem atrapalhá-lo. Com tudo aquilo reunido, mas o seu mapa de investigação, não demoraria quase nada para montar um caso de investigação em larga escala. Ele poderia até mesmo ter o apoio dos Inquisidores para uma operação de alto nível.
Até que algo chamou sua atenção.
— Você tá ouvindo isso? — perguntou ele.
Melissa pareceu confusa de início, mas quando um fino som agudo atingiu seus ouvidos, ela sentiu que algo estranho estava para acontecer.
— De onde estava vindo esse som?
Rodrich passou alguns anos patrulhando os arredores de uma fábrica de manufatura de itens para iluminação. Todas as formas de lâmpadas que poderia imaginar, ela produzia. Desde as normais até as que envolviam algum tipo de magia. No seu tempo livre, ele conversava com alguns funcionários que acabavam explicando uma coisa ou duas sobre suas atividades.
Um deles explicou que um fusível era um componente feito para impedir que o circuito de um item elétrico ou arcano fosse danificado caso fosse sobrecarregado. Quando a energia ultrapassava o limite, ele queimava, interrompendo a passagem de corrente e consequentemente, desativando o dispositivo. Alguns desses possuía uma espécie de alarme de baixo consumo e alta frequência, enviando um alerta sonoro para informar o que tinha acontecido, na maioria das vezes como um apito agudo similar àquele.
Só havia um único item no acampamento que possuía um sistema com fusíveis: o quadro geral dos emissores.
Os mesmos que mantinham todo o acampamento seguro contra os monstros.
— Pegue sua arma, temos que correr!
Rodrich levantou rapidamente, seguido de Melissa em direção ao lado de fora da barraca. Com o rifle em mãos, ele seguiu direto em direção ao quadro geral do emissor. Porém, se deparou com algo muito bizarro.
Uma jovem mulher, com a pele pálida e cheia de marcas estranhas feitas por uma lâmina na extensão dos seus braços e pescoço, com o sangue ainda secando na sua pele. Seus olhos eram negros, com a íris amarela. Suas unhas eram pretas e longas, com vestígios de pele presa nelas. No lugar do seu dedo anelar da mão esquerda, tinha algo similar a um tentáculo completamente negro, viscoso e úmido, que se balançava de forma errática.
Do seu lado, o quadro geral estava em chamas. As luzes que antes protegiam o acampamento, se foram totalmente, revelando o quão sombrio e desolador a Selva de Concreto era sem elas.
Sem hesitar, Rodrich apontou o rifle em sua direção. Um pouco perdida e assustada, Melissa também ergueu a arma, com as mãos trêmulas.
— Quem é você e qual o motivo de ter feito isso? — perguntou Rodrich, em um tom claramente ameaçador.
Não importava quais seriam os resultados, Rodrich em nenhum motivo poderia soltar o dedo do gatilho. As suas chances eram medianas, por ser alguém com experiência em combate e com a vantagem do alcance, mas se aquilo fosse uma bruxa de verdade, então nada daquilo adiantaria.
— Eu te fiz uma pergunta, porra! Quem é você?
A expressão imóvel da mulher misteriosa se transformou em um som agudo e estridente em menos de um segundo, atacando diretamente a audição de Rodrich e Melissa, causando contrações dolorosas em seu corpo. No reflexo, o detetive disparou um tiro, mas não conseguiu definir o seu alvo. A dor era tão crucial que seus corpos caíram no chão, se contorcendo.
Quando finalmente parou, ele imediatamente buscou sua arma e apontou na direção onde tinha observado, mas não havia mais nada ali. Apenas um buraco de bala em um dos troncos.
— Melissa, consegue se levantar? — perguntou ele, checando sua arma.
A mulher se pôs de pé, com a visão levemente embaçada.
— Consigo! O que foi que acabou de acontecer? Esse lugar fica estranho a cada momento que passa!
— Entende por que todo mundo busca evitar esse lugar? Pegue sua arma, as coisas vão ficar mais complicadas agora.
— Por que?
O olhar de Rodrich estava fixado nas enormes árvores que estavam balançando sem nenhum vento e no som crescente de guinchos enfurecidos vindo em sua direção.
— Vamos ter que abrir caminho na base da força se quisermos sair daqui vivos! Se prepare.
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