Índice de Capítulo

    Hinoka passou o dedo nos vestígios do sangue no canto da sua boca, saboreando os vestígios do que sobrou da vida do seu oponente. Deixando a carcaça para trás, ela caminhou serenamente até o seu mestre. Seus joelhos se prostraram no solo, onde ela ofereceu o coração como uma forma de agradecimento.

    O velho segurou o órgão oferecido a ele. Era uma textura firme e densa, ao mesmo tempo que era macia e ligeiramente elástica. Porém, algo estranho aconteceu. Quando o sangue entrou em contato com sua pele, uma sensação leve de entorpecimento o atingiu, fazendo seu corpo se arrepiar. Foi quando ele percebeu que aquele sangue era um pouco mais escuro do que o normal. Ele pensou em provar, mas seus instintos imploraram para que não o fizesse.

    — Eu disse para não pegar tão pesado! — disse o druida, repreendendo-a. — Se você fosse um pouco mais além, o corpo ficaria danificado a um ponto que não valeria a pena revivê-lo!

    — Perdão, Mestre do Carvalho. Eu me excedi ao lembrar o que aquele miserável fez comigo. E ainda me sinto um pouco aflita por não ter encontrado a minha amiga.

    Aquelas palavras deixaram o homem pensativo. Embora fosse desconfortante saber que uma das suas marionetes estava ganhando independência e pareciam até mesmo resistente a algumas ordens, o alegrava saber que ela era a primeira de uma série de sulfurizados que representariam a simbiose perfeita do humano com a natureza. Essa era a evolução que a civilização seria forçada a aceitar.

    — Tudo bem, pegue o corpo e traga conosco. Hoje à noite será proveitosa. E cuide desse ferimento na sua cabeça, ele não cai bem com a sua beleza.

    A moça deu as costas para o druida e foi em direção ao corpo. Embora para qualquer pessoa normal fosse uma imagem horrenda, ver o cadáver de Huan Shen parado ali, com as formigas subindo pelo seu tórax e alguns indícios de moscas verificando os arredores. Ela se apoiou nos joelhos, enquanto observava o enorme buraco que abriu mais cedo.

    — Sabe, você pode ter sido um grande filho da puta comigo, mas graças a você, recebi um presente melhor. Agora, você também irá! Veja como meu mestre é um homem generoso!

    Suas mãos alcançaram as pernas do emissário, mas de repente, algo estranho aconteceu.  Seu corpo não se movia. A princípio, pensou na possibilidade de ser câimbra, mas não fazia sentido pois seu corpo não sentia dor. Ela tentou forçar mais uma vez, porém não conseguia se mover. Era como se tivessem cordas amarrando-a naquele lugar.

    — Anda logo com isso, minha filha! Ainda não estamos prontos para cortejar o dia ensolarado — disse o druida, bocejando.

    — Mestre, eu não consigo me mexer! Tem alguma coisa me prendendo aqui.

    Aquilo chamou sua atenção. Ele olhou na direção de Hinoka, que parecia bastante com alguém paralisado tentando se mover. O homem olhou novamente para o cadáver, mas era difícil imaginar que o cadáver pudesse fazer algo. Então, as coisas ficaram mais claras quando ele olhou para a mulher mais uma vez.

    Sua sombra não estava lá.

    — Merda!

    Embora Huan Shen estivesse certo sobre a demora na criação de uma magia de origem Primordial, ele também sabia que era possível ter algumas magias preparadas para situações emergenciais. E aquela era uma dessas.

    Do outro lado, Hinoka se sentia indefesa mais uma vez. Ela tentava forçar sua saída, mas nada dava certo. Quando tentou ativar suas veias de calor, a força que a mantinha parada ficou mais intensa, derrubando-a no chão. Então, sobre si, uma figura misteriosa surgiu.

    Era uma criatura espectral, completamente formada de névoa negra e que tinha a sua silhueta. Antes que pudesse processar o que estava acontecendo, a monstruosidade alterou a estrutura da sua mão para uma lâmina, golpeando imediatamente em direção à sua cabeça. Hinoka desviou no pouquíssimo tempo que teve, recebendo um enorme corte na sua bochecha. A lâmina atravessou o solo como uma faca atravessa manteiga, o que tornava tudo muito mais perigoso.

    — Que porra tá acontecendo aqui? — perguntou Hinoka, desesperada.

    A criatura ergueu sua arma mais uma vez, porém no instante que ia realizar o golpe certo, o som do vento sendo cortado seguido de um impacto poderoso atravessou a criatura, libertando a mulher das suas amarras. Hinoka respirou aliviada, enquanto se reposicionava de pé e criava distância novamente.

    — Mestre, o que está acontecendo? — perguntou, receosa.

    Ao olhar na direção do druida, viu algo que não esperava. Ele residia de pé, segurando seu cajado e com sem o seu capuz. Do seu lado, o urso que antes servia para carregar suas coisas e ser ameaçador, tinha mudado completamente. Seu pelo escuro e sua carne foram substituídos por membros de madeira, na mesma tonalidade das árvores da selva. Onde suas patas residiam, uma grama negra surgia sobre seus pés. Do topo da sua cabeça até a área da cauda, vários espetos perversos complementavam a aparência assustadora da criatura.

    — Então esse é o verdadeiro poder do mestre… — murmurou Hinoka, impressionada.

    O velho bateu o cajado no chão, bradando:

    — KALIRA, SUA BRUXA MALDITA! TUDO ISSO FOI COISA SUA PARA ME MATAR?

    Embora ele parecesse uma pessoa tranquila o tempo todo, foi a primeira vez que Hinoka o viu parecer concentrado. Foi então que percebeu algo bizarro no ambiente: as sombras estavam desaparecendo. A luz incidia com o objeto, mas não formava qualquer tipo de imagem residual. Nem sua própria sombra residia no lugar.

    Foi então que uma voz surgiu no meio das árvores. Uma voz feminina, melódica e misteriosa, que não podia ser localizada, não importava para onde virasse seus olhos.

    — Bruxa maldita? Heferus, você está perdendo o seu charme. Vive se escondendo entre as árvores, rodeado das suas marionetes, preso na própria covardia. Até quando tem terreno alto, consegue colocar tudo a perder. Lembra do dia em que eu prometi te encontrar, remover sua pele e devorar seu fígado enquanto te mantinha consciente? Faz o quê? Uns sessenta anos? Eu não sou do tipo que se esquece de uma promessa.

    Ainda tentando localizar a fonte da voz, não percebeu quando uma sombra saiu voando entre as árvores direto na sua direção, pronto para arrancar sua cabeça. Usando seus reflexos superiores, Hinoka rolou na direção do seu mestre e saltou, bloqueando o impacto com suas adagas. A força era tanta que o ricochete a empurrou para trás, deslocando alguns dos seus dedos.

    — VOCÊ É UMA VADIA IMPRESTÁVEL, KALIRA! EU, COMO DRUIDA, POSSO SER INCAPAZ DE ENFRENTAR UMA BRUXA REPLETA DOS SEUS REPERTÓRIOS OBSCUROS, MAS EU GARANTO QUE UM DIA OS MEUS FILHOS TRARÃO SUA CABEÇA EM UMA BANDEJA PARA MIM! EU USAREI SEU CORPO COMO UMA FONTE DE PROCRIAÇÃO PARA AS MOSCAS!

    Após aquelas palavras duras, o som de uma risada ensurdecedora cobriu a Selva de Concreto.

    — Homem é um ser tão iludido que chega a ser engraçado! Eu só precisei colocar uma isca básica no meio da selva e você caiu feito um pássaro em um alçapão.

    De repente, as sombras começaram a se solidificar nas copas das árvores, deixando o ambiente tão escuro quanto a noite. Aquilo os deixou preocupados, pois magias obscuras tendem a ganhar força quanto mais se expandem. Se aquilo crescesse mais, ficariam completamente à mercê de quem estava fazendo aquilo.

    — Você acha que está enganando quem, Kalira? Eu consigo sentir a força da sua magia, não é um terço do que você emitiu no passado! Seja qual for o truque que estiver realizando, não será capaz de me matar só com isso! É por isso que você preparou uma armadilha, né? Porque se você estivesse com todo o seu poder, só destruiria tudo e me mataria.

    Conforme esperado, a bruxa não o respondeu. Aquilo era tudo que Heferus precisava para continuar com o seu plano.

    — Filha, a bruxa vai tentar nos atacar de todos os lados possíveis, me proteja enquanto crio uma forma de nos tirar daqui!

    Assumindo posição de guarda, Hinoka se posicionou na frente do seu mestre, usando seus sentidos para tentar prever quando surgiu o próximo ataque. O druida cravou o cajado no chão e começou a mexer as mãos ao seu redor em sentido anti-horário. Sua boca recitava alguns cânticos em Ogam, enquanto sua íris brilhava.

    De repente, a moça escutou o som de algo cortando o vento. Sua mão se ergueu rapidamente, cortando algo que vinha na direção do canto superior esquerdo. A sensação de cortar uma sombra era parecida com passar a lâmina no meio da fumaça. Aquilo foi estranho, pois se lembrava do peso do impacto anterior.

    Sem perceber, um outro projétil seguiu a sombra, acertando e atravessando parte do seu abdômen. Apesar de não sentir dor, o incômodo era real. Sem hesitar, ela tentou retirar o projétil do corpo, mas não havia nada além de uma fumaça negra.

    — Isso é o melhor que você conseguiu construir com o tamanho poder dessa terra? Você é muito medíocre, Heferus. Chega a ser um insulto chamar esses projetos defeituosos de filhos! Irei pôr um fim a sua mediocridade agora!

    O druida esboçou um sorriso.

    — Não! Eu que darei um fim nas suas artimanhas agora! Raio Solar dos Mil Solstícios!

    Heferus ergueu os braços em direção ao céu, quando no meio da escuridão, um feixe de luz atingiu o solo com um impacto terrível, a ponto de colocar fogo no chão sulfúrico. A intensidade do calor teria cegado a qualquer pessoa normal, mas tanto o urso quanto Hinoka não eram normais.

    A força da luz dissipou a névoa que obscurecia o lugar, trazendo iluminação novamente ao ambiente. Sem perder tempo, ele subiu novamente no urso. Era hora de recuar e ficar fora do alcance daquela bruxa.

    — Filha, vamos sair daqui o mais rápido possível!

    — Mas e quanto ao cadáver daquele homem? — perguntou ela, curiosa.

    O velho pôs a situação na balança. Embora aquele homem pudesse ser uma adição importante ao seu arsenal, era arriscado permanecer no alcance de uma bruxa. Mesmo que ela estivesse enfraquecida, as chances não eram favoráveis para ele. E não podia arriscar um projeto tão bom quanto Hinoka ser perdida ali.

    — A Selva de Concreto será seu túmulo. Nossa segurança é mais importante agora. Vamos!

    Um pouco receosa, Hinoka seguiu seu mestre por dentro da selva. Em outras circunstâncias, ela teria pelo menos cortado o pescoço da sua vítima para garantir que ela estivesse morta, mas como a mesma tinha acabado de arrancar seu coração, era impossível um cenário onde ele pudesse voltar a vida como antes.

    Pelo menos era assim que ela pensava.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota