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    Opa, não vamos nos apressar desse jeito! Vamos voltar um pouco, para termos um pouco de contexto.

    Era como um enorme mar negro, onde o horizonte parecia o céu escuro de uma madrugada. As estrelas residiam solenemente no céu, com todo o seu resplendor distante. Não havia terra seca, não havia barco, nada. Não importava em qual direção olhasse. Era solitário, vazio e ao mesmo tempo justificável.

    — Então é assim que é morrer? Pacifico, não vou mentir — disse Huan Shen, que nadava para se manter flutuando sobre a superfície.

    O emissário prendeu a respiração e mergulhou o corpo inteiro debaixo da água, como se tentasse dimensionar o que havia debaixo dele. Porém foi em vão. Apenas água e mais água, imersa em escuridão quanto mais fundo observava.

    “Seria isso uma metáfora para os meus pecados e o quão intermináveis eles são? Ou então sobre como o universo é tão extenso que a nossa presença não é nem um pouco maior do que o menor grão de areia?”

    De repente, uma voz familiar surgiu acima dele.

    — Por que os humanos acham que tudo tem que ter um significado oculto? Tem vezes que as coisas só são uma merda mesmo, não tem nenhuma lição ou aprendizado.

    Emergindo das profundezas, Huan Shen recuperou o ar que tinha faltado em seus pulmões imaginários. Acima dele, uma figura espectral, desforme e cintilante brilhava sobre sua cabeça. Era o único ponto de luz além das estrelas que poderia encontrar por ali.

    — Fada? É você? — perguntou.

    — Em espírito e manifestação, meu caro. Sentiu minha falta? — respondeu, com uma voz levemente aguda e ecoante, ao ponto de formar ondas no mar.

    — Pra ser sincero, não. Eu estava aproveitando minha pós-vida silenciosa e melancólica.

    Uma risada surgiu no meio do nada.

    — Espera, você acha que isso aqui é o pós-vida?

    — E não é? — perguntou ele, confuso.

    — Não, seu tolinho! Isso aqui é o meu domínio espiritual. Antes que você morresse, preservei sua alma nesse lugar antes de finalmente partir. Teoricamente, você ainda está vivo, só que sem seu corpo.

    Huan Shen olhou para os arredores mais uma vez.

    — Que lugarzinho deprimente, hein?

    — Pois é, combina com você. Pelo menos agora terá tempo de se arrepender antes de partir na sua nova jornada. Já pensou no que te aguarda nos portões da morte? Como deve ser a sua existência? Está animado?

    O emissário respirou fundo e fez seu corpo boiar completamente no meio do mar infinito. Com os braços abertos, como uma estrela-do-mar, ele contemplou as estrelas.

    — Eu não me importo, sinceramente. Acho um final digno, considerando tudo que eu fiz nesses incríveis vinte e três anos de vida. Qualquer coisa que deixem sem resolução, não é mais problema meu.

    — Seu desapego é algo que sempre me surpreende. Parece que a morte da Xue Lan fez você mergulhar de cabeça nessa visão meio niilista sua. Foi engraçado por um tempo, mas confesso que me dói vê-lo assim.

    Huan Shen soltou um pequeno sorriso.

    — Essa foi a herança que ela me deixou, fada. Eu só a abracei. Será que no pós-vida eu vou finalmente poder ajeitar minhas questões com ela?

    Um silêncio pairou pelo ar, antes de ser quebrado novamente.

    — Parece que você ainda tem questões não-resolvidas, rapaz. E seu vazio existencial não foi a herança que ela te deixou, você sabe bem disso. Uma pena que dedicou todo o restante da sua vida para desperdiçá-la. Aliás, nem sei porque me pediu para usar a Criomancia novamente, ela teria vergonha do que teria visto.

    Irritado, Huan Shen tentou se levantar e encarar a voz, mas acabou se esquecendo que estava no meio do mar. Seu corpo afundou com tamanha manifestação de fúria, o que o fez engolir água involuntariamente e a nadar desesperadamente para a superfície, tossindo.

    — ESCUTA AQUI…cof cof…Você não sabe porra nenhuma sobre o que nós tínhamos, seu espírito de merda! Se soubesse, saberia que eu não tenho direito nenhum de usar algo que não me pertence.

    — É claro que eu sei, homem. Eu estou dentro do seu corpo, da sua mente, esqueceu? Eu sei tudo o que aconteceu naquele dia. E sei o quanto se culpa por isso.

    — E mesmo assim diz uma merda dessas? Ela cultivou a Criomancia por toda sua vida e estava disposta a morrer por isso! E então eu deveria simplesmente pegar isso e agir como se fosse algo meu? A coisa mais importante da vida dela? Xue Lan literalmente morreu por isso.

    — Se tivesse usado direito, não estaria à beira da morte, como está agora.

    Os dois permaneceram em silêncio, enquanto um fraco vento uivava pelo vazio. Aquelas palavras, embora não aparentasse, perturbavam o emissário.

    — Eu já disse: não tenho arrependimentos, não tenho nenhum receio de morrer. Esse é o meu destino, vou aceitá-lo com honra.

    — Sabe o que eu acho? Acho não, tenho certeza! Você é um especialista em fugir dos seus problemas. Fugiu da sua família e das suas responsabilidades, apenas para começar uma nova vida em um lugar onde ninguém te conhecia. E quando finalmente criou raízes, uma reputação e uma nova família, no primeiro trauma que recebeu acabou desistindo de tudo mais uma vez. Fugiu para cá, procurando uma saída fácil. Eu nem te reconheço mais! Completamente reativo, preso em cautela, lutando na defensiva, esse não é o Huan Shen que eu conheço.

    O emissário olhou para as profundezas do mar, com um olhar distante e pesaroso.

    — O Huan Shen que você conhecia morreu junto com ela. Eu sou apenas uma casca vazia do amor que eu já tive.

    — Novas palavras para covardia, pelo que vejo. Quer dizer que você está completamente bem em deixar aquelas quatro pessoas morrerem e deixar o druida mandar e desmandar por aí. Eu sei que você tá implorando para que eu grite, te chame de fracassado, faça você sentir dor ou te mande para a morte que tanto deseja, mas quer saber? Eu tenho pena de você, Grey. A Xue Ying já perdeu a irmã daquele jeito, nem vai saber do paradeiro do irmão. Tudo isso porquê você é uma vítima da própria covardia.

    Aquelas palavras atingiram o âmago do emissário. Sem muito o que responder, começou a deixar seu corpo submergir gradativamente, enquanto seu corpo era engolido pela escuridão.

    — Eu só espero que Xue Lan consiga te perdoar por ter desistido da vida que ela lutou tanto para ter.

    Aquelas palavras eram duras e profundas, mas não conseguiam mais remover o emissário da tristeza pelo qual tinha se envolvido. Desde a adolescência, tinha um talento macabro para superar e tirar a vida dos outros. Muita gente se beneficiou do prejuízo que ele causou a outras pessoas, o que por muito tempo tirou seu sono. Todo aquele treinamento, toda aquela perfeição, tudo isso para quê? Matar mais gente? Todo dia, parecia ter um alvo novo, mais alguém para matar, era um ciclo sem fim. Um pesadelo manifestado.

    Tudo isso mudou quando se aproximou de Xue Lan. Pela primeira vez, ele se permitiu a pensar uma vida onde não precisasse estar lutando pela vida e para tirar vidas todo santo dia. Ele poderia deixar de ser um guerreiro, soldado, executor, assassino e carrasco para ser um amigo, namorado, marido, irmão, quem sabe até mesmo um pai. Era a sua redenção.

    Infelizmente, o sonho dos outros nem sempre são compatíveis com os seus. Uma tragédia aconteceu e sua esperança foi completamente destruída. Apenas a solidão da perda e a falta de sentido preencheu seu coração. O rosto dos seus amigos parecia julgá-lo o tempo todo, as lembranças na parede eram uma marca do seu fracasso. O frio correndo em suas veias era um lembrete vivo de quem perdeu. Um fardo maior do que poderia carregar.

    Mas havia algo estranho em tudo aquilo. Um sentimento de ciclo incompleto, uma pequena ponta de arrependimento dentro de si, por mais que negasse.

    Desde que a humanidade existe, ela se especializou em se matar de formas mais eficientes. Isso era algo que Huan Shen era muito bom em fazer, o que o deixava triste. Não importava quando, mas sempre haveria alguém disposto a ferir pessoas fracas em prol do próprio ganho, para estar acima dos outros e para se sentir no topo do mundo. E não havia nada que estivesse ali para protegê-las. Nem mesmo as leis, que deveriam blindá-las, mas que trabalhavam em prol dos poderosos.

    Aquilo começou a acender uma pequena fagulha no interior do emissário. O sentimento de raiva, que causou toda a guerra civil na qual passou cinco anos lutando, perdendo aliados e amigos, todas as pessoas inocentes que ajudou a ferir e prejudicar, toda a dor que causou. Morrer era uma forma de fugir do sofrimento e naquele momento era uma escolha. Então, percebeu que o desapego não era uma natureza sua, mas sim um reflexo do sentimento negativo que o possuía. Ele não queria deixar tudo para trás, ele queria viver. Lutar pelos que não podiam, fazer a coisa certa para poder redimir tudo que acreditava ser errado.

    Não era uma questão de ser heroi, era ter o poder de fazer algo para melhorar. Mesmo que não se considerasse uma boa pessoa, aquilo não o impediria de tentar.

    Desesperado, o emissário começou a nadar em direção à superfície. Mesmo com dificuldade e sem ar, ele lutou para tentar sair da escuridão das profundezas. Porém, já tinha se afogado a um ponto sem retorno. Sua visão escurecia, seus movimentos enfraqueciam e sentia o vazio eterno clamando por sua alma.

    “Não posso morrer agora! Não quando eu decidi mudar! Preciso me lembrar do princípio…como era que ela fazia?”

    Xue Lan era conhecida pelos seus movimentos leves e precisos, tecendo o frio como uma teia mortal feita de cristais. Aquele estilo não tinha nada a ver com Huan Shen. Sua magia era bruta, explosiva e poderosa. De repente, cristais de gelo começaram a se formar ao seu redor. A água submersa congelava em uma velocidade fora do comum. Antes que percebesse, todo o seu corpo já estava preso em um enorme prisma. E como o gelo é mais leve que a água, ele começou a subir até a superfície.

    Quando finalmente conseguiu respirar mais uma vez, suas mãos se ergueram em direção ao céu. Então, o gelo que revestia o seu corpo se expandiu, congelando toda a superfície aquática que estava nas proximidades, formando um pequeno iceberg no meio de todo aquele vazio.

    — Fada, apareça! — bradou, enquanto repousava sobre o gelo.

    — Ora, ora! Parece que no desespero, todo ser humano se agarra à vida. Parece que você aprendeu uma lição valiosa hoje, meu caro.

    — Corta esse papo de merda! Eu tenho muitas pendências, principalmente com o cara que mandou arrancar meu coração como se fosse um animal de abate! Eu tenho que voltar.

    — Hohoho! — riu a voz no meio do vazio. — E acha que você pode simplesmente voltar a viver simplesmente quando quiser?

    O emissário cruzou os braços.

    — Você mesmo disse que não estou morto. E se não me engano, o druida faz suas criaturas através dos cadáveres. Há uma pequena chance do meu corpo ter sido restaurado.

    — Acha mesmo que uma possibilidade tão baixa como essa pode se…espera…o que está acontecendo nesse momento no mundo dos humanos?

    A fada passou alguns minutos em silêncio, deixando o emissário impaciente.

    — Fada, o que está acontecendo? Cada minuto perdido é crucial!

    — Eu vou te mandar de volta, mas você tem até o final do dia para resolver suas pendências. Depois disso, você morre e acaba. Entendeu?

    — O que está acontecendo? Qual o contexto? Por que você não explica nada como uma pessoa normal?

    — Porque tem mais graça desse jeito. Tá aqui o seu contexto!

    Então, uma luz brilhante surgiu no meio da escuridão, envolvendo o emissário. O que aconteceria depois daquilo, apenas o destino iria decidir.

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