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    Embora não possuísse relógio, conseguia determinar que metade do dia já tinha se passado apenas pela posição do sol. Ainda faltava um tempo considerável para o anoitecer, onde as coisas aconteceriam pra valer.

    Embora os dois não fossem necessariamente inimigos e estivessem se unido contra um alvo em comum, Huan Shen, como qualquer pessoa com o básico de raciocínio lógico, não confiava na bruxa. Ele sabia muito bem que qualquer promessa feita ali tinha sido por motivos de força maior e a incapacidade dela se equiparar ao seu poder atual, mas as coisas poderiam facilmente mudar quando ela recuperasse totalmente sua magia.

    — Que porra eu tô fazendo? — murmurou o emissário.

    A árvore que residia na sua frente era um Salgueiro Sanguinário. Ela era facilmente reconhecida por causa do seu tronco negro e das suas folhas naturalmente avermelhadas, além das suas vinhas rubras espalhadas por toda sua extensão, como se fossem artérias em um corpo.

    Era comum ver ossadas na base da árvore, pois por ser uma das várias plantas carnívoras da Selva de Concreto, qualquer criatura que fosse atraída pelo seu odor agradável tinha um destino horrível. No instante em que a árvore identificava a presença de sangue, suas vinhas disparavam contra seu alvo e a puxava contra seu tronco, que apesar da aparente rigidez, facilmente se rompia para liberar sua seiva ultra aderente. Em poucos segundos, com a vítima presa ali, a árvore estendia suas protuberâncias similares a dentes afiados, rompendo a pele do alvo de drenando seu sangue enquanto liquefazia suas peles e músculos gradualmente.

    “Que morte horrível do caralho…”

    Seus dedos encostaram no tronco, mas não houve nenhuma reação por parte da árvore. O mesmo não conseguia compreender ao certo o motivo, mas também sabia que não adiantaria nada saber daquilo agora. Suas mãos começaram a se envolver em névoa e a formar o seu clássico machado danês.

    “Olha que engraçado! Eu nunca fui tão fã de machado, mas tá sendo uma ferramenta tão prática ultimamente!”

    Então, seus braços fortes, alvos e veiúdos começaram a balançar sua arma de um lado para o outro. A cada movimento, seus punhos cerrados cravavam a lâmina do machado congelado na árvore, que emitia um som estridente a cada pancada. Os ecos percorriam a Selva, como se alguma criatura horrenda estivesse demonstrando sua presença ali. Mesmo sendo um sulfurizado, aquilo fez Huan Shen segurar a arma com mais força.

    Quando o tronco finalmente caiu, algo chamou a atenção do emissário. Diferente da estrutura lenhosa comum em todas as outras árvores, seu interior era composto por uma estrutura orgânica muscular, com terminações nervosas que reagiam ao seu toque.

    “E se eu colocasse o meu pau ali dentro…PENSAMENTO INTRUSIVO DE MERDA!”

    Receoso de ter ideias ruins em lugares piores ainda, o emissário se agachou próximo ao tronco caído e o ergueu. Como seu corpo não sentia dor e seus tecidos eram regenerados continuamente, não sentiu nenhum incômodo em levar quase quatro toneladas de madeira nas costas.

    “Eu vi o que você fez aí nesse último parágrafo, mano.”

    Não demorou muito para o emissário retornar às construções antigas do templo. Não importa o quanto olhasse, os cristais que tinha evocado durante o seu despertar davam uma nova atmosfera ao ambiente. Não sabia quanto tempo demoraria para eles derreterem, mas a sensação de ter arruinado um monumento histórico perduraria por um longo tempo.

    — Bruxa, eu retornei com sua madeira!

    Sentada sob o toco de uma árvore, Kalira reunia um pequeno punhado de gravetos no solo. Utilizando o que parecia ser uma prataria velha, seus dedos estalaram um no outro, formando fagulhas que acenderam uma pequena fogueira. Dentro do bule que estava repleto de ferrugem, ela colocou pequenos pedaços de gelo que agora redecorava o cenário.

    — Traga mais para perto, por favor-

    Ao ver o emissário carregando aquele tronco sobre seus ombros, o arrependimento de não ter conseguido implantar uma maldição na sua mente e controlá-lo apenas crescia. Seus braços alvos e fortes colocaram quatro toneladas de madeira no solo com uma precisão absurda, mas o mesmo não demonstrava nenhum sinal de cansaço ou dor.

    — É o bastante? — perguntou Huan Shen, estirando o corpo.

    A bruxa ergueu uma sobrancelha.

    — Bastante? Eu queria o equivalente a um toco, algo com no máximo sessenta centímetros, mas você vai lá e me traz uma árvore inteira! O que eu vou fazer com tudo isso?

    — E eu sei lá, porra! Você não especificou quando pediu! Você falou que queria a madeira, eu te trouxe a porra da madeira! Você recebeu mais e ainda tá reclamando? E pra que você quer isso, hein? Que tipo de maquinação você está planejando?

    Seus olhos semicerrados encararam Huan Shen agressivamente, como se tentasse fazê-lo se sentir culpado por não ter lido sua mente. Vendo que não alcançaria seu objetivo, não teve escolha a não ser respirar fundo e ver o que tinha obtido.

    — Você vai saber em breve. Primeiro, você tem que se concentrar no que está prestes a fazer essa noite. Não gosto de ter que confiar em ativos não-controláveis, mas será tudo ou nada para nós. Você entende isso?

    Sendo seu movimento clássico, suas unhas se estenderam mais uma vez. Com um movimento suave, mas firme do seu pulso, suas unhas laminadas fatiaram uma parte do tronco, deixando uma profunda marca no solo.

    “Que bom que não a enfrentei em combate. Tomar uma dessas deve doer pra caralho.”

    Suas mãos imediatamente adentraram no “tecido” do salgueiro, remexendo sua estrutura muscular como se estivesse procurando algo.

    — Por que diabos você está falando como se eu fosse um novato?

    — Porque você é! Quantos druidas você já matou nos seus incríveis vinte e três anos de vida? Eu já matei cinco deles e não deixarei Heferus ser a exceção. Seja lá qual for sua experiência em combate, você vai estar lutando contra remanescentes da era da Alta Magia. Você pode formar trinta planos de combate que não vão ter metade da eficiência da minha mais simples maldição.

    Huan Shen era um cara estoico demais até para o seu próprio bem. Percebendo que existia uma razão tão forte nas palavras da bruxa que chegavam até mesmo a ser ofensivas, não teve escolha a não ser concordar com elas. Era prioritário conhecer seu inimigo antes de atacá-lo.

    — Ok, vamos fingir por um momento que você tem razão. O que eu deveria saber sobre Heferus e os druidas?

    Retirando suas mãos do núcleo do tronco, seus dedos seguravam um pequeno punhado de sementes carmesim. Delicadamente, ela as colocou dentro do bule que fervia atrás de si.

    — Druidas tem um vínculo especial com a natureza, o que os permite influenciar consideravelmente qualquer tipo de bioma que eles estejam. Eles podem controlar animais, manipular o crescimento das plantas, alterar a essência de uma criatura, modificar o solo, as possibilidades são inúmeras. O único ponto fraco de um druida é o seu tempo de conjuração e recuperação, que tendem a ser mais demorados que o normal.

    — Demorado o quanto?

    — Algo em torno de trinta segundos a um minuto de uma magia para outra. Além disso, muitas das suas magias são rituais, então eles não podem nem se dar ao luxo de realizá-las em um período de estresse.

    — Eu confio na minha velocidade, posso matá-lo antes mesmo que ele possa conjurar qualquer magia.

    Kalira esboçou um sorriso similar ao de uma mãe escutando o filho falando algo da sua mais pura inocência.

    — Querido, se fosse tão fácil assim, eu teria uma contagem de corpos muito acima de cinco. Não é à toa que sua sociedade perdurou por tanto tempo, mesmo quando começaram a caçá-los sistematicamente. Quando ele acordar e não ver seus sulfurizados de elite lá, saberá que algo ameaça seu plano. Até que consigamos localizá-lo, a quantidade de preparações que ele fará para salvar a própria pele não será pouca. Isso sem contar no seu exército de sulfurizados.

    — Exército? Aqueles não eram os únicos?

    — Não sei como você chegou a essa conclusão de que aqueles seriam os únicos. Claramente não serão tão fortes quanto os que você enfrentou mais cedo, mas são o suficiente para te arrastar para morte. Chutando por baixo, acredito que ele já deve ter uns cinquenta a sua disposição.

    — Cinquenta? Agora que deu o caralho mesmo, viu?

    “Deu a porra! Fudeu foi tudo!”

    Huan Shen começou a lembrar do sacrifício que foi lutar contra três sulfurizados básicos mais cedo. Ter que enfrentar cinquenta daqueles parecia um pesadelo sem fim. Mesmo com seus “novos” poderes, se ele fosse pego com a guarda baixa, seria uma derrota completa.

    — Como diabos vamos chegar nele desse jeito? — perguntou Huan Shen.

    A bruxa pareceu formular algo para responder, até que o som de água fervente chamou sua atenção. Imediatamente, ela pegou duas xícaras parcialmente enferrujadas e as colocou sobre o tronco que estava sentada.

    “O que ela está fazendo uma hora dessas?”

    Preenchendo as xícaras suavemente, Huan Shen aproveitou para dar uma boa olhada no conteúdo. O chá tinha um tom avermelhado tão denso que parecia ser sangue. Seu cheiro era intenso e um pouco pungente, fazendo até mesmo seu nariz derramar algumas gotas de sangue.

    — Que tal um pouco de chá antes de prosseguirmos? — perguntou Kalira, com um sorriso misterioso.

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