Capítulo 41 — Lapada Seca
Lavignia estava presenciando o horror na forma mais pura. Após passar o dia inteiro presa no interior de uma árvore enquanto raízes grossas e ásperas apertavam sua pele, acreditava fielmente que tinha encontrado o lugar em que seria sepultada para toda eternidade. Para o seu desprazer, tudo aquilo estava apenas começando.
Quando a árvore se abriu mais uma vez, seu corpo exausto foi largado no chão. Havia seiva avermelhada por todo o seu corpo, causando uma sensação desagradável de irritabilidade. Quando sua visão finalmente se estabilizou e pôde ver o que lhe aguardava, desejou permanecer em coma.
— Deuses…o que eu fiz para merecer isso? — disse Lavignia, com a voz embargada.
Uma horda inteira de sulfurizados, com diferentes formas, pesos e estaturas, mas todos pálidos e com as veias douradas. A horda formava dois grupos completamente alinhados, rígidos e inflexíveis. Sua pele parecia mármore frio e polido. Apenas uma daquelas criaturas seria capaz de arrancar sua cabeça tão fácil quanto puxar a rolha de uma garrafa.
Os céus iluminados apenas pela palidez da lua, com o vento soprando folhas por todos os lados e um frio que atingia até seus ossos, o corpo da garota congelou naquele mesmo lugar. Foi então que uma voz familiar surgiu em seus ouvidos.
— Livy, acorda — disse Lilian, balançando os ombros da garota.
Sua consciência voltou ao seu corpo ao escutar aquela voz, junto com o medo e desespero. Seus braços envolveram a garota em um abraço de alívio, percebendo que ela estava bem. Mesmo que as duas tenham se conhecido em um prazo de pouco mais de quatro dias, Lavignia considerava a Lily sua irmã mais nova, do mesmo jeito que ela tinha a mesma ligação fraternal.
— Graças aos deuses você tá viva! — disse Lavignia, aliviada.
Os dedos da jovem mulher se entrelaçaram nos de Lily, como uma forma de declarar que jamais sairia do lado dela.
— Não é incrível como a vida junta as pessoas? — falou Hinoka, aproximando-se calmamente de ambas. — Alguns dias atrás, vocês eram duas desconhecidas prestes a serem vendidas por mim para algum tarado na região sul do continente. Mas agora estão unidas de um jeito que dá até a impressão que saíram do mesmo útero. Podem me chamar de fada madrinha, se quiserem.
Lavignia tomou a frente de Lily, numa tentativa desesperada de protegê-la.
— Você não vai encostar um dedo nela! — disse Lavignia, com um olhar desvairado.
Hinoka era como um pesadelo manifestado. Seus olhos pálidos e mortos, sua pele esbranquiçada com veias douradas e longos cabelos vermelhos que se assemelhavam a raízes de árvores. Como se isso não bastasse, suas mãos pareciam estar sempre emitindo fumaça, como se estivesse prestes a iniciar um incêndio em um estalar de dedos.
— A quem você quer enganar, vadia? Seu corpo tá tremendo, posso escutar seu coração acelerado a um quilômetro de distância.
Em um piscar de olhos, a sulfurizada diminuiu a distância de dois metros entre as duas e a agarrou pelo pescoço, erguendo-a como se fosse tão leve como uma bolsa.
— Não tente parecer alguma merda de valor na minha frente, sua imbecil do caralho. Coloque-se em seu lugar e talvez você possa servir de alguma coisa. Se comporte e quem sabe você tenha mais utilidade que seus amigos, hein?
Em outras circunstâncias, Lavignia já teve as mãos de alguém em volta do seu pescoço. Em todas as vezes, foram montanhas-russas de emoções envolvidas. Porém nenhuma se comparava com as mãos de Hinoka. Aqueles dedos rígidos como mármore pressionando seu pescoço, tão quentes quanto uma panela que acabou de sair do fogo. A cada segundo, Lavignia jurava que não conseguiria sair viva dali, até a sulfurizada soltá-la direto no chão.
— Comece a andar antes que eu te mate aqui mesmo! — ordenou Hinoka.
Lily ajudou sua amiga a se levantar, mas as marcas de queimadura formadas pelos dedos da mulher a deixaram assustada. Era possível ver nitidamente a fumaça da carne queimada subindo.
— Livy, tá doendo muito? — perguntou Lilian, preocupada.
A jovem mulher não pôde deixar de repensar em todas as atitudes que a levaram até aquele ponto. Sabendo que estava apenas a algumas horas de ter um destino horrível, sua mente começou a tentar encontrar onde foi que tudo deu errado. Foi por não ter sido uma adolescente que seus pais queriam? Foi por ter saído da casa dos pais muito cedo? Foi por ter ido trabalhar com aquele homem? Foi pelo que ela fez depois? Era assustador perceber que o desejo de mudar e o arrependimento só surgem quando é tarde demais.
— Eu vou ficar bem, Lily. Vamos andando antes que alguma coisa aconteça.
Sem muitas escolhas, as jovens começaram a atravessar o enorme corredor formado por sulfurizados. Seus passos eram devagar, devido ao medo de algum deles resolver avançar e despedaçá-las como um travesseiro na boca de um cão. Tudo naquele lugar era muito ameaçador, desde as enormes árvores, a noite escura até as criaturas que estavam observando-as.
— Nós vamos morrer, né? — perguntou Lily, com a voz trêmula.
Lavignia tentou permanecer em silêncio, mas sabia que isso apenas deixaria sua amiga mais aflita.
— Não sei, Lily. Eu estou tão confusa e com medo, quanto você. Eu só sei que não quero ficar desse jeito, como essas criaturas.
A voz ecoante e agressiva de Hinoka respondeu:
— Depois que você renascer como uma de nós, verá o quão idiota foram essas palavras. O poder do nosso mestre é absoluto e devemos preservá-los a qualquer custo.
— Se ele concede poderes para alguém tão desprezível quanto você, então boa pessoa ele não deve ser — respondeu Lavignia.
Aquelas palavras acenderam o fogo da ira dentro de Hinoka. Era inconcebível que um ser inferior como ela estivesse falando daquela forma. Seus punhos cerraram e se ergueram, numa intenção de fazer uma bagunça com o corpo daquela mulher. No instante que ele se ergueu acima do seu ombro, uma voz ecoou através daquela área.
— Hinoka, traga-me nossas convidadas em perfeito estado!
A voz era grave e sobrenatural, fazendo com que todas as três estremecessem até a ponta dos pés. De repente, Hinoka surgiu no meio das duas, as agarrou pelo pescoço e as arrastou violentamente até o final do corredor, jogando-as no chão.
— Perdoe meu exagero, mestre. Aqui estão as convidadas que você solicitou.
Lavignia se levantou mais uma vez, cansada de ser jogada de um lado para o outro. Ao olhar para frente, uma figura familiar residia sentado sobre o toco de uma árvore recém derrubada.
— E-era você! O homem que nos atacou no acampamento! — disse Lavignia, assustada.
Heferus se levantou e as olhou do alto. Era uma imagem até peculiar, pois o druida não tinha uma altura imponente, mas apenas sua presença era o suficiente para deixar todos que possuíam consciência completamente apreensivos.
— Atacar? Que forma reducionista de falar que eu os salvei! Sem a minha presença, vocês seriam condenados a serem exterminados pelo modelo de vida civilizado e vazio. Agora, vocês serão parte do meu coletivo.
Por alguns instantes, o medo deu espaço para a curiosidade da Lily.
— Então você quer destruir o sistema moderno da civilização para implantar sua visão aos humanos?
O druida soltou um leve ar do nariz, enquanto esboçava um sorriso.
— Implantar aos humanos? Não, minha cara. Eu não preciso implantar nada para eles. Eu e meu exército vamos invadir as cidades e exterminar tudo que habita lá. Homens, mulheres e suas proles. A única utilidade que eles possuem é serem adubo para as plantas.
As duas garotas deram um passo para trás, percebendo que o homem na sua frente era alguém completamente fora da razão.
— Por que estão se afastando? Vocês querem ter o mesmo destino dos seus amigos? Melhor se comportar, antes que eu comece a ficar chateado.
Lavignia cerrou os punhos.
— Seu desgraçado! O que você fez com a Melissa e o Rodrich! Onde eles estão?
Levada pelas emoções, seu punho direito voou direto na direção do rosto do druida, que tomou um susto pela reação da mulher. Para sua sorte, Hinoka tinha reflexos o bastante para segurar a mão de Lavignia e contra-atacar com uma rasteira em pé, derrubando-a de cara no solo.
— Que garota levada você é! — disse Heferus, ainda se recuperando do susto. — Vou ter que te deixar em silêncio até o ritual começar.
Com seu cajado em mãos, ele se preparou para acertá-la, mas algo inesperado aconteceu. Lily, com toda sua força de dezesseis anos, tomou a frente da amiga e empurrou o druida no chão. A reação dela foi tão imediata que Hinoka nem se deu conta do que tinha acabado de acontecer.
— Lavy, temos que fugir daqui depressa! — disse ela, erguendo a mão para sua amiga.
A mulher imediatamente tentou se levantar. Não havia salvação, não havia o menor pingo de razão naquele lugar amaldiçoado. Apenas a morte. Essa poderia ser a única chance que tinham de tentar correr.
— Vamos! — disse Lavignia, segurando na mão de Lily.
Então, o pior aconteceu.
— SUA PIRRALHA DESGRAÇADA! — esbravejou Heferus.
Quando Lavignia se virou, tudo aconteceu em uma velocidade aterradora. O homem já estava de pé, balançando o cajado que se apoiava como se fosse um porrete. Lilian nem teve tempo de perceber antes da ponta maciça acertar com toda força a cabeça dela.
A consciência da garota ia para o oblívio, enquanto os respingos de sangue se agarravam no corpo de Lavignia, que observava o tudo em choque.
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