Capítulo 50 — ACABOU ESSE ARCO GRAÇAS AOS DEUSES (fogos de artifícios)
Um gosto adstringente contraía o céu da sua boca, seguido de uma sensação intensa de enxaqueca. Aos poucos, sua consciência parecia juntar seus fragmentos mais uma vez. Suas pálpebras se contraíam, como se estivessem tentando evitar a penetração da luz em seus olhos. Seus dedos se contraíram, instintivamente tentando entender no que seu corpo estava apoiado. Um tecido, provavelmente linho.
“Então é assim que os Campos Elísios se parecem? Li histórias sobre eles a minha vida toda. Será que Aquiles está por aqui?”
Embora pensasse que poderia ser prepotência acreditar que seu destino após a morte fosse um lugar para os heróis, o fato dele não estar sendo torturado indicava que aparentemente não tinha sido o inferno também. Poderia existir um outro pós-vida feito para pessoas como ele? Talvez Valhalla, já que morreu lutando em combate?
Foi então que algo inesperado aconteceu: um refluxo. Sua garganta começou a se contrair e uma sensação quente começou a subir pelo seu estômago. Imediatamente, abriu os olhos e se levantou com pressa, correndo entre as árvores e se apoiando no galho mais distante que encontrou, quando começou a colocar tudo para fora.
“Merda! Tinha esquecido o quão ruim era sentir uma ressaca!”
Sua cabeça estava latejando e seus olhos sensíveis à claridade, além da sensação das suas terminações nervosas estarem gritando de dor.
— Por que estar vivo é sempre um martírio…pera, o QUÊ?
Foi então que Huan Shen se deu conta do que realmente estava acontecendo. Ao abrir seus olhos mais uma vez, percebeu que parte do que tinha colocado para fora era uma mistura de sopa e álcool com sangue negro. Sua pele não estava mais suja de enxofre ou sequer pálida, mas sim com a tonalidade oliva que sempre possuiu.
— Não é possível…
Sem perder tempo, o emissário correu até onde seus ouvidos localizaram a presença de um riacho. Quando sentiu que estava próximo, parou, respirando fundo e se apoiando nos joelhos. Sentia seu corpo fraco e pesado. Suas mãos penetraram em uma área onde a água residia em baixo fluxo e mergulhou a cabeça, sentindo mais uma vez a sensação de frescor. Quando seus olhos se chocaram com seu reflexo, não conseguia acreditar:
Huan Shen era humano mais uma vez.
Ele tinha perdido uma quantidade considerável de massa corporal e parecia estar mal nutrido, mas isso poderia ser resolvido. Seus olhos tinham retornado ao seu azul cristalino e os vasos sanguíneos em seus olhos estavam vermelhos mais uma vez. Seus pulmões se encheram de ar, como se estivesse abastecendo suas energias. Então, o emissário se lembrou de algo.
Olhando para o seu abdômen, viu algo que não estava lá anteriormente: uma sutil cicatriz do lado esquerdo do peito, com várias marcas de agulha ao seu redor. Ao encostar o dedo indicador levemente, sentiu uma contração intensa na área que o fez se curvar.
“Isso foi operado recentemente. Que diabos a Kalira fez para eu estar vivo agora?”
Com mais perguntas do que resposta, o emissário se dirigiu de volta a região onde tinha acordado. Aparentemente, sua geolocalização continuava tão boa quanto antes. Seu estômago roncava, pois já faziam alguns dias desde que se alimentou apropriadamente. E como tinha um voto místico de não consumir carne, se alimentar por ali parecia bem mais difícil do que o normal.
Andando pela Selva de Concreto, Huan Shen percebeu que aquele lugar não era tão assustador de dia quanto poderia ser a noite. Até mesmo o Salgueiro de Sangue não parecia tão retorcido ou avermelhado como antes. Talvez essa fosse uma forma natural daquele ambiente de atrair pessoas a acreditarem que aquelas terras eram seguras.
De repente, ele sentiu alguma coisa diferente nas redondezas. Seus olhos cravaram na área mais alta de uma árvore, onde um cacho de frutos avermelhados residia pendurado. Embora naturalmente soubesse que não deveria comer qualquer coisa proveniente daquele lugar, sua fome estava o deixando bastante incomodado. Foi então que resolveu tomar uma decisão.
Ao chegar no lugar onde tinha acordado, Huan Shen se deparou com algo que não esperava. Lavignia, que por algum motivo ainda respirava, estava sentada em frente a uma pequena panela que fervia sobre uma fogueira. No instante que o olhar da garota se chocou com o seu, ela imediatamente se levantou.
— V-você já está acordado! — disse ela, surpresa.
O emissário permaneceu em silêncio, olhando seus arredores. Haviam três peças de tecido estirados com cobertores, indicando que eles dois não eram os únicos ali. Kalira não parecia ter o perfil de uma pessoa que dorme em companhia dos outros.
— Quanto tempo eu passei dormindo? — perguntou Huan Shen, com um olhar distante.
A garota fez um pequeno esforço para lembrar.
— Acho que tem dois dias já desde que aquela mulher estranha apareceu com você.
O emissário direcionou seu olhar para Lavignia.
— Apareceu comigo? Ela me resgatou e te resgatou junto? Aquela bruxa?
— Ei! Não fale assim dela! Ela salvou nossas vidas e nos manteve seguras por todo esse tempo.
— Não foi um xingamento, ela é uma autêntica bruxa — respondeu Huan Shen. — E por que tem uma terceira cama aqui?
Lavignia cruzou os braços.
— Você mal acordou e já chega perguntando sobre isso, sobre aquilo, acha isso certo? E o que são essas frutas aí em sua mão? Não vai me dizer que pegou nas árvores por aí?
Huan Shen deu mais uma mordida. A fruta tinha a textura de uma maçã, mas seu exterior era liso como o caju. Seu sabor era suculento, mas ou pouco adstringente.
— Foi. Encontrei em uma dessas árvores por aí. Estava morrendo de fome.
— Até eu sei que você não deve sair pegando frutas desconhecidas por aí! O que deu na sua cabeça de fazer isso? E se for venenoso?
Foi então que um estalo surgiu na cabeça do emissário. Aquela era a Selva de Concreto, não havia nada ali que fosse adequado para o consumo humano.
— Você…tem razão, eu tenho que consultar a bruxa. Presumo que estejamos perto do templo, correto?
— Templo? Ah, você fala das ruínas? Sim, ela deve estar por lá. Verifica a Lily por mim? Já faz algumas horas que ela a levou para as ruínas para continuar com seu tratamento.
Huan Shen ergueu uma sobrancelha. A Lily ainda estava viva? E o que diabos a bruxa queria com ela?
“O que está acontecendo por aqui?”
Huan Shen entrou novamente nas ruínas do templo destruído, mas dessa vez estava consideravelmente diferente desde a última vez que entrou. Haviam marcações feitas com lâminas, símbolos feitos com giz e carvão, alguns filtros dos sonhos pendurados em antigas colunas, alguns ossos de criaturas não-catalogadas formando sinais esquisitos e uma névoa branca suave permeava o ambiente.
— Então isso seria o domínio de uma bruxa? — disse Huan Shen, em um tom anormalmente alto.
Repentinamente, uma mão fria repousou em seus ombros, junto com uma voz sussurrante dizendo:
— Eu ainda nem comecei a reforma.
Seu corpo se inclinou na direção dela, tendo a chance de observá-la plenamente após passarem pela maior prova de suas vidas.
Kalira residia de pé, com as mãos nas suas costas e seus olhos negros encarando os seus. Usando apenas uma toga leve, de linho antigo e desgastado, enrolado em seu corpo com o descuido intencional de quem não tinha nenhum apreço pelas convenções sociais de moralidade. O vento — sutil e agradável — brincava com o tecido como estivesse apostando em todas as possibilidades. A toga se moldava à sua pele branca, revelando contornos e curvas com uma sutileza brutal e expressiva. Uma perna surgia livre entre as fendas do tecido, o ombro nu reluzia à luz da manhã filtrada pela névoa do ambiente.
Seus olhos, negros e profundos, o observavam como se estivessem prestes a devorá-lo. Sua expressão sutil, lábios entreabertos, sobrancelhas arqueadas e o som da sua respiração penetravam a mente do emissário, que sentia seu corpo retomando as suas funções perdidas no breve período que permaneceu morto. O sangue corria aceleradamente pelas veias, seu coração palpitava e seus enormes dedos balançavam continuamente, como se quisessem descobrir o quão resistente era aquela toga.
“Isso é uma armadilha…Amitabha! Amitabha!”
Huan Shen fechou os olhos e respirou fundo, recuperando o equilíbrio e domínio das suas faculdades mentais. Seu olhar, frio e determinado, retornaram ao seu semblante.
— Preciso fazer algumas perguntas, Kalira.
A bruxa fechou o semblante.
— Você não é nada divertido, sabia? — retrucou ela, com as mãos na cintura.
— Eu me esforço ativamente para isso, obrigado. Então, como conseguiu? Por que meu coração está batendo?
A bruxa fez um gesto com a cabeça, como sinal para acompanhá-lo.
— Antes de responder essa pergunta, o que é isso que está comendo?
— Isso aqui? — disse Huan Shen, apontando para a fruta. — Eu achei por aí. Tava com fome, então resolvi comer.
A bruxa tomou a fruta de sua mão.
— Isso é uma Caxias de Sangue. Isso tem toxina o suficiente para matar dez elefantes em cinco minutos, sabia?
Huan Shen parou de mastigar.
“E POR QUE CARALHOS EU TÔ COMENDO ISSO? POR QUE MEU INSTINTO DE SOBREVIVÊNCIA IGNOROU O BÁSICO?”
— Acho que não vai adiantar se eu cuspir agora, né?
— Não. Mas eu acho que você não vai morrer.
— O que te faz ter tanta certeza?
Kalira deu um sorriso.
— Porque não é seu coração batendo aí. É o de Heferus.
Aquilo o deixou em silêncio por alguns segundos. Embora achasse estranho, era um destino bem irônico para alguém tão megalomaníaco e calculista. Huan Shen tocou em seu peito mais uma vez, sentindo a mesma dor de antes.
— Seu corpo ainda está adaptando a presença desse corpo estranho, mas logo ele será familiar. Seu dantian deve se naturalizar em algum momento, retornando ao seu fluxo de magia. Além disso, seu novo coração deve ter sido infundido por bastante tempo com magia primitiva, quem sabe o efeito que isso pode ter em suas habilidades?
Huan Shen cruzou os braços.
— Isso simplesmente não deveria ser possível. Um transplante de coração de uma pessoa completamente diferente em um lugar como esse? Isso nem faz sentido.
— Eu achava a mesma coisa, até começar a funcionar. Seu Sangue Herético pode ter algo a ver com isso. Inclusive, como você tem Sangue Herético? Quem é você de verdade?
“Ok, está na hora de partir.”
Huan Shen se aproximou da bruxa e colocou suas mãos em seus ombros pequenos.
— Agradeço por ter sido fiel a sua promessa e ter me trazido de volta a vida, ao mesmo tempo tendo protegido as duas garotas, que você não tinha obrigação nenhuma de fazer. Eu estou em dívida com você. Agora, eu vou pegar a Lily e iremos em direção ao Santo Império.
Aquelas palavras repentinas fizeram Kalira erguer uma sobrancelha. Embora estivesse enfraquecido, quando retomasse a sua condição padrão estaria mais forte do que nunca. Depois de todo o trabalho para trazê-lo de volta a vida, seria um desperdício causar desconfianças em seu experimento.
Huan Shen passou por Kalira, indo em direção a garota.
— Espero que se lembre das suas palavras. Eu vou cobrar a sua dívida depois.
O emissário a olhou sobre o ombro.
— Se os deuses quiserem, você me esquece em alguns dias e passamos o resto das nossas vidas sem nos encontrarmos novamente.
Kalira lembrou que toda a desgraça que ocorreu no dia anterior tinha sido causada pela sua interferência em um grupo de pessoas que só queriam sair daquele lugar. Tudo que Huan Shen passou, foi culpa sua. Mas ela levaria esse segredo para os Nove Infernos.
— Nossos destinos já estão entrelaçados, Huan Shen. Vamos nos encontrar um dia desses.
Como uma pessoa determinista, o emissário sabia muito bem que não deveria duvidar do destino e das linhas prescritas da vida. Tudo que conseguiu fazer foi um breve aceno com a cabeça, torcendo para que as palavras da bruxa fossem mentiras.
“Hora de deixar esses dois dias infernais para trás e seguir para o que o futuro me aguarda.”
O emissário colocou a caxias de sangue sobre uma rocha e se dirigiu em direção a Lily. Ele tinha errado bastante com ela, estava na hora de consertar as coisas.

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