Capítulo 51 — A Volta da Bruxinha Mais Amada
O sol imperava mais uma vez sobre a Selva de Concreto. Seus raios de luz cortavam através dos espaços da folhagem escura que costumam abrigar as criaturas mais tenebrosas que habitam nas proximidades. Embora Heferus tenha selado seus habitantes para povoar com seus construtos, Kalira, como uma boa devota da natureza, fez questão de desfazer tudo que o druida tinha trabalhado arduamente para conquistar.
É isso, meus amigos. Tinham pensado que continuaríamos a história a partir de Huan Shen? Nada disso, vamos passar mais um tempinho na Selva de Concreto com a Kalira.
Três meses haviam se passado desde que ela se uniu ao emissário para matar Heferus de uma vez por todas. Embora muita coisa tenha acontecido nesse meio-tempo, a bruxa ainda se perguntava ocasionalmente o motivo de ter trabalhado arduamente para restaurar a vida daquele rapaz. Sim, ele a ajudou, mas isso não a obrigava a nada.
As lembranças das suas garras rasgando os tecidos e músculos do druida para arrancar seu coração e colocá-lo abruptamente no corpo em decadência de Huan Shen, o ritual para manter o cadáver em preservação e a surpresa daquilo funcionar em favor dele. Mais uma vez, a Selva de Concreto provando o porquê era um lugar bizarro.
Mas a parte mais estranha foi a Lily. Embora tivesse certeza que a árvore colonizadora tinha devorado cada parte do seu corpo, quando ela devolveu a garota completamente envolta em seiva, sabia que havia algo estranho ali. Seus batimentos tinham voltado ao normal e seus ferimentos fecharam, mas seu dantian, que era tão nulo quanto o de um humano comum, começou a circular uma energia sombria primal dentro de si. Ela desejava ter mais tempo para estudar sobre, mas Huan Shen a retirou tão depressa que nem conseguiu refutar.
“Deixa lá, isso agora é problema dele.”
O som da cachoeira era como o sussurro de um feitiço antigo, derramando-se pela Selva de Concreto com a mesma persistência do tempo escorrendo pelas fendas da existência. Ali Kalira residia, em paz, deitada, apenas sentindo o fluxo da corrente passando pela sua pele. O brilho da água refletia em sua pele alva como prata líquida, traçando linhas em cada curva como se estivesse reverenciando-a.
“Como é bom ter trocado aquela carcaça por esse corpo jovem!”
Despida de tudo, desde suas ferramentas até suas vestes, a bruxa exalava sua presença destoante em meio a um ambiente sombrio. Seu corpo, agora com algumas escarificações e várias marcações esotéricas dos seus encantamentos, pareciam se conectar estranhamente à natureza misteriosa daquele lugar. As gotas caíam que caíam do topo escorriam entre seus ombros, algumas deslizando pelas suas costas arqueadas, outras contornando entre seus seios, como se tivessem permissão de vasculhar o corpo de Kalira.
Momentos depois, ela estava reclinada sobre uma rocha quente. Suas pernas entreabertas como um descuido proposital, seus olhos negros semicerrados, absorvendo a umidade e a solidão. Seus dedos brincavam com a superfície da água, criando redemoinhos enquanto sentia o tédio começar a incomodá-la. O cabelo, pesado e úmido, aderia em seu pescoço e nos ombros, escondendo e revelando sua nudez sutilmente.
— Isso está me deixando entediada — murmurou a bruxa, bocejando.
Removendo os dedos da água, eles percorreram os fios de cabelo que percorriam pelo seu rosto. Então, Kalira os estalou, cuja resposta imediata foi sua própria sombra se expandindo e a envolvendo em uma escuridão densa. Elas se arrastavam pelo seu corpo, como mãos friccionando contra sua pele e a apertando firme. Poderia ser opressiva para alguns, mas a bruxa adorava aquilo. Quando ficou completamente envolta na escuridão, a mesma se desvaneceu pelo ar, como uma chama sendo apagada. A cachoeira ficou mais uma vez vazia.
Quilômetros dali, em uma cabana na parte mais alta da Árvore Colonizadora, seu corpo se reformava através da escuridão natural do ambiente. Dessa vez, não chegou desnudada. Um longo vestido de seda negro a vestia. Suas mangas repousavam em seu ombro, formando um sutil “V” cuja ponta residia no caminho sinuoso que habitava entre seus seios. Kalira adorava bijuterias também. Um anel de turquesa no anelar direito, um anel de prata no indicador esquerdo, pulseiras de vinhas trançadas, platina e tripas de bode seca ornamentadas em seus pulsos, um colar japamala em seu pescoço e seus cabelos volumosos presos por um pano de algodão.
Apenas com sua presença, todas as velas e lamparinas em sua cabana se acenderam. As suas luzes amarelas lutavam pela sua presença em tamanha escuridão, dando um tom vintage e relativamente nostálgico para a bruxa. Aos poucos, era possível enxergar o que habitava naquela simples cabana de madeira. Uma pequena estante com livros velhos, páginas antigas presas nas paredes, uma mesa com lâminas pequenas e pequenos frascos com líquidos das mais diversas cores, uma bancada suspensa, com vários frascos maiores envoltos em tecidos.
— Lar, doce lar — disse Kalira, após respirar fundo.
O sentimento de satisfação preenchia o coração negro da bruxa. Após muitos anos caçoada e humilhada, finalmente pôde obter vingança contra o homem que arruinou sua vida. Seu domínio era novo e instável ainda, mas com o passar dos anos, ela iria construir seu nome e aumentar seu poder e influência.
— Vejamos, o que temos aqui?
Sobre sua mesa longa de madeira, residia um homem desorientado em cima dela. Sua testa suava frio e suas pupilas estavam dilatadas. Ele aparentava estar no início dos seus quarenta e usava roupas leves, junto com uma mochila bem pesada. Kalira a investigou mais cedo, encontrando um cantil, um mapa, um diário, roupas para o frio e equipamentos para passar a noite ao ar livre.
Kalira colocou a palma da sua mão na testa do homem, que a encarava como um delírio de verão. Seu corpo estava quente e tremia, mas o mesmo não conseguia se mover.
— Q-q-quem é v-você? — perguntou o rapaz, balbuciando.
A bruxa levou o dedo indicador até os lábios.
— Shhh, não fique agitado — respondeu, com sua voz sussurrante. Três meses foram o bastante para se adaptar ao corpo daquela jovem e poder explorar o máximo possível dos seus dotes femininos. — Você deve ter entrado em contato com uma das minhas mudas de Melancolia Perpétua. Um rapaz crescidinho como você não deveria sair por aí colocando a mão em qualquer plantinha bonitinha por aí.
— G-g-g-garota…G-GAROTA…
Inicialmente, Kalira plantou as mudas de Melancolia Perpétua para sempre ter acesso a um componente anestésico valioso a sua disposição. Porém, percebeu que sempre poderia capturar alguém desavisado deixando em pontos específicos da Selva de Concreto.
— Não sou tão nova a ponto de me chamar dessa forma.
O homem tentou balançar o pescoço em negação, mas Kalira não estava nem um pouco se importando.
— Eu tenho boas e más notícias, senhor. A má notícia é que o tempo seguro para estar em contato com uma Melancolia Perpétua são cerca de doze segundos, mas parece que você esteve mais do que dois minutos. Essa quantidade de exposição epitelial é o bastante para deixar seu sistema motor completamente atrofiado e paralisado por dois meses.
O corpo dele começou a tremer mais ainda. Suas mãos tentavam impulsionar seu corpo, suas pernas tentaram saltar, mas nada o respondia. Ele queria gritar, mas sua boca não estava lá por ele.
— A boa notícia é que seus nociceptores estão entorpecidos, então você não vai sentir mais dor.
Aquilo gerou uma reação de confusão em seu subconsciente, que imediatamente se transformou em terror quando a bruxa ergueu sua mão direita com longas garras negras afiadas e prontas para eviscerá-lo.
— Não se preocupe, lindo! Será como se eu tivesse lhe fazendo cócegas. Juro.
A garra em seu dedo indicador abriu um corte limpo na camisa da sua vítima em um único movimento. Seus olhos negros repousavam pelo abdômen fora de forma dele, imaginando quantos órgãos ela conseguiria retirar antes que seu corpo cedesse.
Quando a ponta da garra alcançou o topo da caixa torácica do homem, um tremor atingiu a árvore onde sua cabana residia. Por alguns segundos, Kalira pareceu confusa com o acontecido, mas imediatamente voltou aos seus sentidos quando o tremor aconteceu novamente. Para sua sorte, nenhum dos seus frascos frágeis quebrou.
— O que está acontecendo?
A bruxa se dirigiu até a porta, olhando do topo da sua cabana. A primeira coisa que chamou sua atenção foi a enorme cratera que residia em seu jardim no solo. Como se um meteoro tivesse o atingido, um buraco com centenas das suas flores e folhas esmagadas causava um estrago horrendo no que levou meses para cultivar. Utilizando um dos vários cipós que iam do topo até a base da Colonizadora, Kalira deslizou por um deles até chegar ao solo.
Imediatamente, as garras em suas mãos começaram a tomar forma. Seus sentidos não apontavam nada anormal nos arredores, nem as suas sentinelas. Mesmo assim, não poderia se dar ao luxo de abaixar a guarda. Ao chegar na base da cratera, o vapor emanava do solo, causando um misto de aromas das suas plantas destruídas.
— Então foi você quem causou toda essa bagunça, hein?
Uma jovem garota inconsciente flutuava no centro da cratera. Seu corpo parecia estar em transe, havia presença de magia sagrada intensa ao seu redor, a ponto de Kalira precisar virar o rosto para não ter sua visão prejudicada.
“Tenho que selar a origem desse poder, ou ela vai ficar desse jeito para sempre!”
A bruxa tentou estender sua mão até a testa da garota, mas em um movimento repentino, ela reagiu e agarrou seu pulso, surpreendendo Kalira.
— Herege! — disse a jovem, com um eco místico em sua voz. — Não se aproxime com sua magia suja de mim, feiticeira!
A outra mão da garota começou a concentrar uma quantidade nada segura de magia divina, a ponto de se tornar revestida por chamas brancas.
— Me solta! — ordenou Kalira.
— PEREÇA, IMUNDA! — bradou a jovem.
Com sua mão energizada, ela desferiu um soco na direção de Kalira, causando uma intensa explosão de luz ao seu redor.
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