Capítulo 53 — A Bruxa Boa
Os olhos marejados de Sarisa se abriram mais uma vez após tanto tempo fechados. O gosto alcalino ainda percorria sua boca, junto com a sensação de ter acordado de um sonho terrível. Embora sua memória ainda estivesse um pouco nublada, tinha a certeza que aquele lugar não era onde estava anteriormente.
A garota retirou o lençol que a cobria e se levantou da cama, ainda tentando manter o equilíbrio. Ao avistar uma janela, pensou em pegar um pouco de ar para espairecer um pouco, mas recuou como um gato assustado ao ver o quão distante estava do solo.
— Que sítio é este que ora me acolhe? — perguntou ela, com um tom baixo.
Então, uma voz profunda e ecoante surgiu por todos os lados da cabana.
— Você está na minha humilde residência. Por favor, chegue mais perto.
O som se misturava com a baixa iluminação do lugar, o que fez Sarisa se estremecer com o que poderia estar habitando nas sombras. Receosa, ela pegou uma das velas e seguiu pela escuridão lentamente, guiada apenas pelos sons dos seus passos. A cada passo, a vela iluminava os cantos mais sombrios daquele ambiente. Os frascos misteriosos nas estantes, as runas misteriosas e letras esotéricas decorando a parede, os sons da madeira rangendo e o vento assoviando pelas frestas criavam paranoias na cabeça da garota, que mal tinha se recuperado da perturbação mental que Kalira a infringiu.
— Em que raios de paraje maldito fui eu lançar meu destino? — murmurou a garota, temerosa.
Sarisa chegou em uma área que poderia ser chamada em algum momento de cozinha. Na sua frente, uma mulher com quase 1,80m de tez pálida e vestido negro aparentava estar cortando alguma coisa. O som do metal se chocando com a madeira, a força do impacto e a frieza com a qual sua mão segurava a faca na hora de cortar causaram um arrepio na jovem, que acidentalmente deixou escapar um som agudo baixinho pela boca.
Então, o movimento parou. A mulher inclinou sua cabeça na direção do som, olhando por cima do ombro. Sarisa congelou completamente, como se estivesse encarando um predador prestes a devorá-la. Antes que conseguisse esboçar qualquer palavra, a mulher cravou a lâmina na mesa, afundando alguns bons centímetros de metal nela.
— Está com fome? — perguntou Kalira, arqueando as sobrancelhas.
A garota conseguiu vê-la plenamente pela primeira vez. Sua pele era pálida e clara, quase anêmica. Seus olhos eram tinham a íris negra, o que era comum para alguém daquela etnia. Seus cabelos lisos balançavam com o fraco fluxo de vento que adentrava a cabana. Tudo que Sarisa conseguiu fazer foi concordar com a cabeça.
— Aqui — disse Kalira, pegando uma maçã do cesto em cima da mesa. — Coma isso até eu servir o jantar, está bem?
Aquela gentileza inesperada atingiu a garota como um martelo. Ela tocou na maçã, girou de um lado para o outro, cheirou e finalmente desferiu uma mordida. O sabor suculento e adstringente reaqueceu um pouco do seu coração.
— Já não me lembro há quanto tempo não degustava manjar de sabor tão divino — murmurou Sarisa.
Kalira pegou alguns dos frascos que estavam sobre a mesa e os levou até a estante. Era importante que realizasse essa tarefa de forma casual, para a garota não perceber o que estava dentro dele.
— Onde tu me achastes? — perguntou a garota, de forma tímida.
“Uai! Mudou a forma de falar agora?”
— Você não se lembra? — respondeu a bruxa, pegando outro frasco.
A garota balançou a cabeça negativamente.
“Falta de memória. Posso trabalhar com isso.”
— Você estava desacordada no meu jardim. Presumi que você fosse uma viajante perdida, mas não usando essa roupinha. Não aqui.
Sarisa olhou novamente para que vestia: um vestido branco sem mangas com um bordado vermelho nas extremidades que iam até o seu pé, acompanhado de um véu vermelho que estava envolto em seu pescoço. Ela tocou sutilmente no tecido, como se aquilo revivesse algumas de suas memórias.
— E-eu sou uma sacerdotisa de Malchi-Zarum, o deus tirano da força e soberano da Selva Perpétua. Mesmo após sua queda, seu sangue e seu poder sustentam a vida que aqui viceja.
Kalira ergueu uma sobrancelha.
— Estava eu em companhia de minhas irmãs sacerdotisas, dando seguimento aos ritos diários, quando o grão-sacerdote… ele… — A garota parecia com dificuldade para se lembrar dos detalhes. — Perdoa-me… não consigo rememorar com clareza. A última imagem que me assoma é a de meu corpo sendo deitado sobre uma lápide cerimonial, por razões que me escapam.
— Isso parece muita coisa para processar.
— Rogai-me perdão, mas há algo de curioso — quiçá jocoso — no modo como expressais vossas palavras. Seríeis capaz de estimar, ainda que por alto, quanto tempo estive cativa? Dois anos, talvez três? Poderíeis guiar-me de volta ao templo sagrado de nossa ordem?
“Oh, então aquelas ruínas eram…acho que tô começando a entender um pouco.”
Kalira fez um sutil gesto de concordância com a cabeça.
— Podemos sim, querida. Mas antes, que tal comermos? Você deve estar morrendo de fome.
As duas se sentaram na mesa, que residia limpa após Kalira ter passado um tempo considerável desinfetando-a. Embora a refeição consistisse apenas de uma tigela de salada com frutas e vegetais diversos fatiados e cozidos, junto com um ensopado de lebre, uma espécie relativamente comum pela Selva de Concreto.
— Então, você vive a quanto tempo aqui? — perguntou Sarisa, enquanto comia como se fosse hibernar nos próximos minutos.
Kalira, que mal tinha tocado em sua refeição, respondeu:
— Acho que tem uns dois anos já — mentiu. — Meus irmãos construíram essa casa para ter um lugar seguro nessa área quando acampassem. Como eles sempre vêm aqui para caçar e eu queria um pouco de espaço pessoal, resolvi vim para cá.
— Mas não há neste lugar monstros e assombrações? Recordo-me de que as sacerdotisas mais antigas devotavam-se a rituais constantes, a fim de manter o templo resguardado das forças obscuras.
“Ok, ela quase me pegou nessa.”
— Não há o que se preocupar. Algumas regiões foram pacificadas pelo Santo Império, como esse lugar onde estamos. Essas criaturas não aparecem por aqui. Você pode ficar tranquila, pequenina.
Sarisa sorriu. Fazia bastante tempo em que não via alguém tão disposta a ser gentil como aquela mulher.
“Os monstros na região me reconhecem como mestra desse território. Eles não ousariam tentar me fazer mal.”
— Coma bem! Amanhã, eu vejo se consigo levar você até o templo. Como não sei onde é, preciso que você me ajude com o caminho, pode ser?
— Rogo-te, não vos aflijais por isso! — disse Sarisa, tomando um gole de água. — Não desejo que vos exponhais a perigo por minha causa. Posso trilhar o caminho por meus próprios passos! Não quero ser-vos empecilho.
A bruxa estendeu sua mão e passou suas mãos macias pelos cabelos encaracolados da garota, fazendo seu corpo se arrepiar levemente. Fazia tempo que não sentia um toque tão carinhoso em sua pele.
— Pequena, não vou deixar você ir sozinha — respondeu Kalira, com sua voz aveludada. — Por que não descansa um pouco?
A garota sentiu seu corpo oscilar. Embora estivesse bem desperta na hora do jantar, suas pálpebras começaram a ficar pesadas e sua atenção se desfazia em imagens da sua própria mente.
— É… creio que tendes razão… — respondeu Sarisa, coçando a cabeça. — Boa noite, senhorita.
Kalira a retribuiu com um sorriso, enquanto a acompanhava até sua cama. Ela até mesmo estendeu o cobertor pelo corpo da jovem, que estava tão confortável quanto um gato sonolento.
“Coitada, nem faz ideia do que realmente está acontecendo.”
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