Capítulo 56 — Ela tem um Plano
A madrugada se estendia pelos céus, dando pequenos indícios de um amanhecer que estava para chegar. Se havia algo que Kalira tinha quase esquecido do que se tratava, era sobre estar acordada naquele horário e o quão insuportável era. Apesar do corpo jovem, o cansaço ainda era algo que não aprendeu a mitigar.
“Eu só quero terminar isso o mais rápido possível para voltar à minha cama.”
Com uma pá, gadanha e a sua bolsinha de sementes, a bruxa tinha investido um tempo considerável na reconstrução do seu jardim. Embora soubesse que demoraria mais de um mês para ele retornar a sua antiga glória, não podia mitigar essa tarefa. Mas seus objetivos naquela madrugada eram bem mais do que mera jardinagem.
— Como aqueles desgraçados chegaram tão longe nesse lugar? — esbravejou a bruxa, enquanto revirava os restos das plantas arrancadas pela batalha mais cedo.
Todo dia, Kalira pensava em colocar mais defesas espalhadas na Selva de Concreto. Porém, sabia muito bem que isso poderia chamar a atenção das pessoas erradas. Bruxas não eram bem aceitas em nenhum lugar. E com razão, devido a sua natureza destrutiva, tóxica e egoísta. Se o Santo Império soubesse que havia uma bruxa formando um domínio tão perto das suas fronteiras, mandariam um grupo de Caçadores Santificados atrás dela, em uma batalha que dificilmente conseguiria sobreviver.
“Pelo menos eu mandaria um deles pra cova, antes de cair.”
Vendo o punhado de sementes que conseguiu juntar, ela decidiu que aquela quantidade seria o suficiente para prosseguir com seus objetivos. Então, a bruxa caminhou na direção onde o templo ficava. Embora não conseguisse escutar o que estavam conversando, sabia muito bem que tinha algo a ver com a garota.
— Eles podem também estarem atrás da Pílula do Reflorescer Espiritual. Eles vão simplesmente matar a garota para conseguir extrair isso de volta! Não vou deixar que consigam o que querem.
Ao atingir a distância desejada, suas mãos escavaram a terra cinza que se encontrava debaixo dos seus pés. Então, ela colocou o punhado de sementes dentro do buraco, junto com um pouco de pó de osso, seiva de Pinheiro Sangrento, folhas de Salgueiro Sanguinário e arsênico em pó, tudo em uma medida bastante específica que era divisível por três. Ao cobrir com terra, ela colocou uma vela de cera de abelha com gordura humana sobre a área que tinha sido plantada.
Suas mãos se juntaram como uma prece, proferindo as seguintes palavras:
— Ouça minhas palavras, Selva de Concreto — conjurou Kalira. — Solicito que seus filhos escutem minhas ordens e destruam meus inimigos! Alimentem-se da sua carne, bebam do seu sangue e profanem os seus ossos.
Alguns segundos se passaram, com apenas o som do vento. De repente, o pavio da vela se acendeu, revelando uma chama esverdeada. Kalira esboçou um sorriso, percebendo que seu trabalho estava feito. Estava na hora de voltar para casa e descansar, enquanto o resultado do seu esforço iria se provar em breve.
Algumas horas depois.
Sarisa abriu os olhos mais uma vez, escutando o som dos pássaros na janela cantando. Usando o laço que estava no seu vestido, ela resolveu prender os cabelos. Havia um pouco de animação dentro de si, embora não soubesse o que iria encontrar após tanto tempo. Embora não soubesse o porquê tinha sido posta em hibernação, sabia que era por um motivo sagrado e tinha obrigação de viver sobre as expectativas.
A jovem sacerdotisa encontrou Kalira sentada em uma cadeira na cozinha, enquanto foleava um livro. Ela continuava tão linda quanto o dia anterior, até mesmo um pouco mais radiante. Sarisa não conseguia acreditar que tinha sido acolhida por alguém tão boa assim.
— Bom dia, flor do dia — disse Kalira, sem sequer tirar os olhos das páginas.
— Bom dia, senhora. Acho que ainda não perguntei o seu nome…
A bruxa fechou o livro e cruzou as pernas, olhando-a com um sorriso.
— Não precisa dessa formalidade, afinal, eu tenho idade para ser sua irmã mais velha. Pode me chamar de Kalira.
A garota apenas concordou com a cabeça, lembrando-se dos bons dias com as suas irmãs sacerdotisas.
— Eu receio que já seja minha hora de partir em direção ao templo. Devo pedir novamente para que me deixe partir sozinha. A Selva Perpétua é um lugar perigoso, não gostaria que você se machucasse durante o caminho.
— Mas seria perigoso deixá-la ir sozinha! — retrucou Kalira, cruzando os braços.
— Eu sou uma sacerdotisa, tenho conhecimento em magia para evitar que qualquer coisa indesejada se aproxime de mim. Não sei se conseguiria mantê-la segura.
“Eu tenho dúvidas sérias sobre isso.”
— Isso não é justo, eu acabei de me arrumar!
Ela trajava um conjunto bem inesperado, distintas das suas roupas escuras e cerimoniais. Uma blusa creme de linho rústico, levemente aberta na área do colarinho, revelando apenas um decote pouco sutil, possivelmente como um gesto de provocação ou descuido proposital. As mangas, dobradas na altura do cotovelo.
Sua calça tinha um tom de verde escuro, alta, marcada na cintura por um cinto de couro preto e robusto. Os bolsos eram largos, ótimos para sacar e guardar coisas com velocidade. Suas botas eram marrom-claro de cano alto, quase atingindo a altura do joelho. Em seu ombro, uma bolsa de tecido áspero e correias de couro, cheia dos “segredos de bruxa”.
— Eu não lembro de ter visto nada parecido com o que você está trajando — disse Sarisa, confusa.
Kalira se aproximou da garota e colocou as mãos em seus ombros, não só como um sinal de conforto, mas sim de posse.
— Já tem bastante tempo que vivo aqui, lindinha. Posso me cuidar. Você não precisa se preocupar comigo, pode ficar tranquila!
Aquelas palavras deixaram a jovem sacerdotisa um pouco balançada. Embora soubesse um pouco de magia para se proteger, também não desejava ter que realizar o trajeto sozinha. Então, sua vontade pessoal falou mais alto.
— Tudo bem, eu deixo você me acompanhar. Mas por favor, me prometa que caso alguma coisa dê errado, você corre. Pode me prometer isso? Quero pelo menos ter uma chance de te proteger.
“Tão fofa e tão inocente.”
— Ok, eu prometo. Agora, que tal partirmos? — respondeu Kalira, com um sorriso.
Do outro lado da Selva de Concreto…
Samir era um homem de sono leve. Foram anos e anos envolvidos em guerrilhas e confrontos pequenos, tanto servindo ao Santo Império ou sendo um mercenário independente. Muitas vezes, nem tempo para dormir direito tinha. Por isso que quando seu colega se aproximou da sua tenda, sua reação imediata foi abrir os olhos e segurar em seu machado.
— Chefe, você tem que ver isso!
Aquelas palavras citadas por Marcus nunca eram um bom sinal. Comunicação clara e direta era uma boa prática entre combatentes, o fato dele nem isso estar conseguindo fazer, indicava que a situação estava séria.
Imediatamente, ele pegou seu rifle e seu machado, pois não removia seu colete nem na hora em que ia dormir. Com seu elmo debaixo do braço, ele correu para o lado de fora para ver o que estava acontecendo. Do lado direito, os arqueólogos estavam com uma expressão de terror absoluto em seus rostos, completamente congelados. Um deles tinha acabado de urinar nas calças.
— Chefe — disse Marcus. — Rodamos todo o perímetro de segurança mínima estabelecida ontem e não tinha nenhum indício dessas criaturas nas proximidades. A vela de prata estava nos mantendo invisíveis aos sentidos dessas criaturas. Alguma coisa a trouxe até nós.
Foi então que Samir percebeu que seu maior inimigo naquele lugar não seria as criaturas ou o tempo. Seria uma criatura bem mais poderosa, astuta e vil.
Nota: Eu resolvi retirar o sotaque “português arcaico” da garota. Não acho que cinquenta anos de diferença teria uma diferença linguística tão gritante. Caso você queira que retorne, deixa aí nos comentários.
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