Capítulo 59 — A Paz da Sacerdotisa
Se havia algo que Kalira era boa em fazer, era persuadir os outros. Aproveitando o sol matinal e como a Selva de Concreto poderia ser linda se não houvesse uma ameaça por metro quadrado, a bruxa guiou a garota pelos seus caminhos através da mata e das trilhas. Algumas flores esquisitas no caminho, coelhos correndo mata adentro, vistas topológicas charmosas e uma cachoeira de tirar o fôlego foram mais do que o suficiente para a garota ter um pequeno vislumbre da vida que perdeu enquanto estava adormecida.
Sentadas sobre uma rocha, a luz do sol formava pequenos arco-íris na queda perene e poderosa das torrentes de água. O som da água se chocando com as rochas, o vento matinal na pele, o canto das árvores soprando suas folhas, o som dos pássaros que não eram devorados pela natureza perversa dos salgueiros de sangue formava uma paz que parecia impossível de alcançar na Selva de Concreto.
— E-eu não fazia ideia de que este lugar era tão lindo — disse Sarisa, olhando para a queda serena das águas na cachoeira.
Até mesmo Kalira não se cansava de observar aquela vista.
— Minha mãe me trazia aqui quando eu era pequena. Eu ficava competindo com meus irmãos para ver quem conseguia pular da parte mais alta sem se estabanar todo. O mais velho ficou com algumas fraturas, mas todos nós nos divertimos à beça.
Aquelas palavras despertavam um sentimento estranho na garota. Por toda a sua vida foi criada para ser uma sacerdotisa, dedicada aos mandamentos de um deus morto e seguir seus rituais até envelhecer e morrer no mesmo lugar que nasceu. Embora tivesse plena convicção de que aquilo era o correto, por um breve momento, suas crenças se abalaram com a possibilidade das coisas serem diferentes.
— É…parece bem legal isso — respondeu Sarisa, olhando para o chão.
Kalira colocou sua mão no ombro da garota, puxando-a para perto de si enquanto a envolvia em seus braços, abraçando-a calorosamente.
— Pobrezinha…eu imagino o quão difícil deve ter sido para você ter passado por todo esse tempo sozinha e na escuridão. Saiba que você não está mais sozinha, eu estarei aqui para te ajudar sempre que você quiser.
As mãos quentes dela se entrelaçaram em seu cabelo, acariciando-a gentilmente. Sua mente vacilou por alguns segundos, recebendo tamanho conforto. Sua respiração ficou pesada, como se desejasse ficar naquele momento para sempre. Era um crime ser apreciada daquele jeito?
Porém, sabia que tinha um dever para cumprir. Algo que era maior do que suas vontades pessoais ou desejo de mudança, pois a palavra de um deus era absoluta. Utilizando toda sua força de vontade, ela se desprendeu de Kalira, que ainda mantinha o seu olhar terno na sua direção.
— Obrigado por ter me mostrado isso, mas eu preciso chegar até o templo o mais cedo possível. Vamos? — disse a sacerdotisa, desviando o olhar.
Kalira apenas concordou com a cabeça, enquanto ambas iam deixando a cachoeira para trás. Ela puxou um relógio de bolso em sua mochila, olhando o horário.
“Já deve ter dado tempo o suficiente.”
Embora gostasse de realizar um desvio para apreciar o ambiente onde morava, aquelas paradas não tinham sido por acaso. Desde que convocou o Malavares para destruir os humanos que tinham chegado no templo, sabia que o trabalho não seria tão rápido. Era um perseguidor implacável, feroz e brutal, não demoraria para aquele lugar se transformar em uma oferenda imensa.
“Mesmo com tudo tão planejado, porque ainda sinto que tem algo errado?”
Do outro lado…
Uma destruição tão massiva quanto aquela eram rastros claros para um perseguidor tão feroz quanto Samir. Árvores quebradas, com suas bases pulverizadas e crateras espalhadas por toda a região indicavam que surtos de poder massivo tinham sido utilizados ali recentemente. Coisas que não eram comuns nem mesmo em lugares como a Selva de Concreto.
— Que cenário lamentável! — disse Marcus, com seu rifle em mãos. — Quem fez isso não tem a menor consideração pelo que esse lugar significa.
Ignorando todas as bobagens ambientalistas do colega, Samir sabia exatamente o que procurar. Toda marca de destruição costuma ter um ponto de origem. A parte mais fina de um cone indicava o ponto do lançador, a quantidade de árvores destruídas indicava o alcance, o estado da superfície mostrava a potência. Pequenos indicativos, que costumavam ser ignorados, mas que para um rastreador experiente era tudo.
— Vinte e duas horas, a leste. Acho que estamos perto — disse o capitão.
Os outros mercenários o seguiram sem questionar sua lógica, mas havia algo que não fazia sentido para Marcus.
— Como você chegou a essa conclusão? Isso aqui apenas indica que houve conflito, mas nada além disso.
Samir respirou fundo, enquanto mantinha os olhos aos arredores.
— É só seguir a trilha de destruição, Marcus. A bruxa é dona deste domínio, danificar o que está em sua propriedade é uma grave ofensa à mesma. Se isso tiver sido causado pela garota que estamos procurando e ela estiver com a bruxa, é nesse caminho que vamos encontrar algum esconderijo ou até mesmo sua moradia.
O mercenário concordou com a cabeça.
— E o que faremos quando chegarmos? Ouvi dizer que as bruxas tem armadilhas perversas por todo o seu domínio.
— A própria Selva de Concreto é uma armadilha por si só. Enquanto mantivermos o foco e vocês me seguirem, conseguiremos chegar lá.
Eles caminharam por mais uma hora, até chegarem em uma região onde as árvores menores formavam um corredor até a maior árvore naquela selva. Tronco denso, antigo e que parecia prestes a romper os céus. Apenas a sua existência era o bastante para inspirar receio em todos que estavam ali.
— E agora? — questionou Marcus, sem tirar os olhos do casarão que habitava no topo daquela árvore.
Chutando algumas pedras que estavam em seu caminho, Samir pegou seu machado e abriu um talho em uma das árvores.
— Agora montamos um perímetro — respondeu ele. — Alguma hora ela terá que voltar para sua casa. Como está o grupo de apoio?
— Estão de prontidão — disse Marcus. — Irão saber como reagir caso algo aconteça.
Aquelas palavras formaram um sorriso no rosto do Samir, que já conseguia vislumbrar tudo o que estava para acontecer. Enquanto tivesse homens e equipamento, a vitória sempre estaria ao alcance.
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