Capítulo 63 — Nas Profundezas do Templo
A bruxa se recostou na pilastra mais próxima, sentindo seus pulmões queimarem e seus olhos arderem. Embora tivesse reduzido sua respiração, não conseguiu evitar plenamente os efeitos do gás. Enquanto tossia, parte do vapor branco saía pela sua boca e nariz.
— Filhos da puta imprestáveis! — disse Kalira, enquanto enxugava as lágrimas em seus olhos.
Embora tivesse vencido, não foi sem consequências. Seu ombro esquerdo tinha um buraco enorme de bala, que ainda estava sangrando. Sua mão esquerda ainda estava fraturada e machucada, sem contar na dor intensa que sentia em sua costela.
“Odeio admitir, mas se não fosse por sorte, eu não teria passado do dia de hoje.”
Kalira reconheceu que seus oponentes não eram meros soldados perdidos na Selva de Concreto, mas pareciam fazer parte de uma milícia organizada e taticamente eficaz para lidar com ameaças dos mais diversos tipos. Aquele ataque surpresa não foi à toa, eles já sabiam que havia alguém agindo ativamente para atrapalhá-los.
— Tomara que eu não tenha que encontrar o líder deles nesse estado — murmurou a bruxa, enquanto se levantava.
Sua atenção recaiu sobre o templo, onde a luz em direção ao céu chamou a sua atenção mais cedo. No instante que Sarisa desapareceu lá dentro, sua preocupação como que poderia acontecer com a garota se tornou sua prioridade.
A bruxa seguiu em direção a parte interna do templo, enquanto ocultava sua fisionomia verdadeira para sua versão mais humana. Seus chifres afundavam em sua pele, junto com as protuberâncias. Seus olhos negros e profundos formavam uma esclera branca ao redor da íris, suas garras voltavam a ter a forma das suas unhas e sua palidez mortal assumia mais uma vez a tonalidade de um humano saudável. O sangue que manchava seu rosto secou, permitindo que ela o retirasse como um adesivo em sua pele. Porém, não tinha muito o que poderia fazer com sua camisa, que estava bastante encharcada.
— Espero que ela não faça muitas perguntas sobre isso.
Seus pés adentraram a parte interna do templo, que normalmente residia em escuridão profunda. Como uma bruxa das sombras, seus olhos já estavam acostumados com as trevas. Porém, algo chamou sua atenção: um pequeno fio de luz do sol que residia no centro do grande salão. Kalira arqueou os olhos, mantendo sua atenção em qualquer canto onde pudessem estar preparando alguma armadilha.
Pelo seu caminho, ela via o quanto daquele lugar tinha sido devastado pelas escavações constantes. Pás, baldes e martelos por todo o canto, com várias linhas de demarcação e muros antigos com dezenas de histórias guardadas neles completamente destruídos. Aquilo despontava um pequeno sentimento de tristeza na bruxa, pois ver a história antiga sendo perdida daquela forma era sempre um desperdício.
“Espero que eu não esteja muito longe…”
De repente, um som seco surgiu na parte dos andares inferiores do templo. Algo entre passos e destroços remexidos, algo que não conseguia delimitar corretamente. Então, quando Kalira resolveu seguir na direção do som, algo atingiu seus pés. Algo macio, mas familiar. Quando seus olhos pairaram no chão, uma surpresa: um cadáver.
Um homem de aproximadamente quarenta anos, completamente retesado no chão e com um imenso buraco em seu peito. Nem mesmo sangue saía, de tão carbonizado que estava. O corpo se esfriava gradualmente e sua expressão era de terror puro, congelado com o choque de uma morte que nem mesmo poderia ter sido prevista.
— Ele não é um militar, parece mais um arqueólogo…que diabos está acontecendo aqui?
Kalira deixou o cadáver para trás e seguiu na direção das escadas, descendo para os cantos mais profundos do templo. Uma escada em espiral, onde se lembra ter arrastado o cadáver de Huan Shen por elas. Antes que chegasse no último degrau, encontrou mais um corpo.
Este residia deitado entre os degraus, como se estivesse tentando subi-la como se fosse um animal de quatro patas. Seus braços e pernas estirados e retesados contrastavam com seu pescoço quebrado e mole, pendurado sobre seus ombros. Suas costas estavam completamente carbonizadas, com partes da sua caixa torácica rompendo sua pele em uma fratura exposta bizarra.
“Não é possível que a Sarisa fez tudo isso…”
Saltando por cima do corpo, Kalira tinha acabado de chegar no andar em que tinha a câmara de batismo cerimonial. Haviam fitas amarelas, demarcando todo o ambiente, junto com placas com descrições para cada móvel e estrutura naquele lugar. Ainda era possível ver as marcas de giz e as gotas de cera das velas que acendeu naquele dia para realizar seu ritual de ressurreição.
“Aquele ainda foi um dos meus maiores feitos, sempre terei orgulho.”
Curiosa, a bruxa se aproximou da água e se ajoelhou em sua borda. Ela ainda continuava escura e parada, como se estivesse intocada desde sempre. Seu dedo indicador tocou levemente na superfície, perturbando a calmaria da piscina. Embora só tivesse usado-a duas vezes, ainda tinha vontade de experimentar todo o seu potencial.
Porém, algo inesperado aconteceu. No meio de toda aquela grossa camada de musgo, um rosto surgiu no meio da água. Apesar de estar acostumada com coisas horrendas, a surpresa a fez dar dois passos para trás. Alguns segundos depois, o corpo se revelou completamente flutuando na piscina.
Com uma expressão rígida, o homem boiava com o seu corpo completamente inchado, devido aos gases da decomposição dentro de si. Embora sua morte aparentava ser bastante recente, aquela água e a energia dentro dela não eram particularmente naturais. Suas pernas aparentavam estar quebradas e sua cintura estava horrivelmente deslocada, indicando que foi apenas largado para se afogar sem a mínima chance de resgate.
— É horrível, mas eu poderia aprender uma coisa ou duas sobre isso — murmurou a bruxa.
Então, ela viu a região do seu abdômen estufado aumentar levemente. Seus braços já estavam completamente pálidos e bastante arredondados, como se o menor toque fosse o suficiente para fazê-lo colapsar.
“Se esse é o último nível, para onde eles foram parar?”
Kalira olhou ao seu redor mais uma vez, até ver o que parecia ser um buraco no canto da sala. Havia uma escada de cordas amarradas no teto daquele andar, indo até as áreas mais profundas do templo. Um lugar que a bruxa nem tinha noção que poderia existir. Um lugar onde ela poderia obter mais respostas sobre tudo aquilo que estava acontecendo.
Imediatamente, Kalira correu até as cordas e começou a descer através delas, tentando alcançar o solo o mais rápido possível. Enquanto descia, a escuridão era tão intensa que nem seus olhos conseguiam atravessá-la. De repente, o som de uma explosão veio do andar que estava a alguns segundos atrás, fazendo com que algumas gotas de água pingassem sobre sua cabeça.
“Que morte horrível!”
Após uma breve janela de tempo, seus pés alcançaram o solo. Não era ladrilhado em mármore como os andares superiores do templo, mas sim de terra batida. Haviam velas apagadas pelo caminho que se encontrava na frente, como uma mancha de sangue no solo. Não havia nenhum outro lugar onde poderiam estar além daquele. Kalira comediu seus passos, pronta para reagir a qualquer tipo de ataque.
Então, um brilho surgiu em seu horizonte. Os olhos da bruxa se semicerraram, como se estivesse se antecipando para o que estava prestes a acontecer. Quando finalmente conseguiu observar com clareza, encontrou o que estava procurando.
“Então ela saiu do meu transe mental…”
A garota tinha sua mão direita segurando firmemente a mandíbula de Jamal, que estava sem uma de suas pernas. Seu rosto estava inchado, a ponto de um dos seus olhos estar completamente fechado com o tamanho das suas pálpebras. Seu corpo se debatia, enquanto o mesmo tentava contestar força com a menina que tinha metade do seu tamanho.
Sarisa estava completamente desperta, com os símbolos religiosos cintilando ardentemente pela extensão do seu corpo. Seus olhos, completamente brancos e revestidos com a energia sagrada pulsante, observavam o rosto do homem torcido em agonia com uma estranha impersonalidade e curiosidade.
— P-por f-favor! Eu n-não ia te machucar! — disse Jamal, enfrentando toda a dificuldade de conseguir falar com sua mandíbula presa.
A garota ergueu lentamente sua mão esquerda, movendo-a como se fosse um inseto pelo ar. Os olhos aterrorizados do homem acompanhavam seu movimento, até os dedos pousarem em sua testa. Então, as veias e artérias no corpo da jovem começaram a brilhar, canalizando a energia até a ponta de seus dedos. Então, Jamal começou a gritar como nunca antes em sua vida.
Seus olhos foram os primeiros a serem vaporizados, emitindo um brilho oco em suas cavidades. Seu nariz, boca e consequentemente cada orifício em seu corpo. Cada parte do seu corpo se aqueceu em uma velocidade tão inacreditável que eram vaporizados em questões de segundos. Não demorou para sua pele colapsar, causando um clarão laranja que se embranqueceu em uma fração de segundos. Antes que percebesse, o que sobrou de Jamal era apenas uma lembrança de alguns instantes atrás e uma pequena fração de cinzas pelo ar.
Kalira observou tudo aquilo com o mais profundo horror. Ali, a bruxa não tinha mais certeza quem era o oponente mais perigoso.
— Você veio até este lugar, bruxa? É bruxa, não é? Eu me lembro das suas palavras antes de me atingir com sua bruxaria imunda! — disse Sarisa, com seus olhos travados em Kalira. — Eu vou te mostrar o que acontece com quem desrespeita uma sacerdotisa de Malchi-Zarum.
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