Capítulo 64 — Quando tudo se esclarece
Kalira sabia que não conseguiria vencer um confronto direto com alguém com um poder tão explosivo, pelo menos não naquele estado. Mesmo que não tenha consumido muita mana ao lutar contra aqueles mercenários, seu corpo estava dolorido e machucado, o que era uma desvantagem considerável.
As mãos de Sarisa começaram a cintilar com mais intensidade, como se portassem um farol em cada membro. A luz intensa iluminava cada canto daquela cripta sombria, erradicando a presença de qualquer sombra que Kalira poderia usar.
— ESPERA! — gritou Kalira, erguendo as mãos. — Eu não tenho intenção de te fazer mal! Eu só quero saber o que diabos está acontecendo no meu domínio. Eu reivindiquei esse lugar como o meu território e você, junto com esses homens, estão o invadindo sem meu aval.
A garota ergueu uma sobrancelha, enquanto mexia seus dedos da mão de forma impaciente.
— Seu domínio? A Selva Perpétua é grandiosa demais para alguém tão irrelevante quanto uma bruxa imunda. Este lugar foi prometido por Malchi-Zarum aos seus sacerdotes e crentes três mil anos antes da sua morte. É uma pena que ele pareça tão abandonado desde que nosso povo abandonou seu templo, mas isso não ficará assim por muito tempo.
Kalira ergueu uma sobrancelha.
— Três mil anos? Não é assim que funciona! Você não pode dizer que este lugar te pertence só porque um deus morto supostamente disse algo em um tempo onde mal existia uma sociedade. Puta merda, os crentes de Malchi-Zarum nem existem mais!
As mãos da sacerdotisa se mexeram tão rapidamente a ponto de deixar apenas um mero rastro de luz pelo ar. Elas dispararam um raio cintilante de energia intensa, gerando um poderoso estrondo que fez as estruturas da catacumba se agitarem. Kalira só teve tempo de erguer uma fina barreira mística vítrea na sua frente, antes de ser atingida por uma força massiva que a arremessou pelo ar, derrubando-a no chão.
“Desgraça! O que eu fiz para merecer tamanha punição?”
Embora sua barreira tenha sido resiliente o bastante para absorver a maior parte do dano antes de quebrar, a pequena parte que conseguiu atravessar ainda foi capaz de causar queimaduras intensas no corpo de Kalira, deixando parte dos seus braços e abdômen com uma vermelhidão desconfortável de se ver.
— Meça suas palavras imundas antes de falar do meu povo, bruxa! E mesmo que ele tenha se dissipado, eu tenho o poder para trazê-lo de volta. Por isso os sacerdotes me deram a Pílula do Reflorescer Espiritual! Foram cinco gerações dedicadas a criar uma das formas mais puras de poder. E quando eu conseguir libertar todo o seu potencial, nada ficará em meu caminho.
Embora fossem palavras um tanto bregas, Kalira sabia plenamente que ela tinha poder para realizá-las, diferente de Heferus. A quantidade de magia irradiando pelos poros da garota pareciam prestes a se condensar, e isso era grave porque claramente ela não tinha treinamento o bastante para lidar com as consequências disso fisicamente. Ela era um perigo para si mesma, como para qualquer coisa que estivesse ao seu redor.
“Eu só preciso de mais tempo.”
— Você fala essas palavras — disse Kalira, enquanto tentava se levantar com seus braços feridos. —, mas não tem noção do quão grande o mundo é do lado de fora da Selva de Concreto. Eu conheci um cara com os mesmos delírios de grandeza que você e seu fim não foi nada agradável.
A sacerdotisa deu um sorriso. Seus passos a conduziram até Kalira, que tinha dado um jeito de se recostar na parede mais próxima. Sua boca cuspiu o que parecia ser um dente. Para Sarisa, aquilo era o testamento de derrota da sua oponente.
— Nossa! Eu só usei uma pequena fração do meu poder e você ficou desse jeito? Nem me lembro como eu perdi para você em nosso primeiro encontro.
A bruxa tossiu um pouco de sangue. Sua visão estava ficando turva novamente.
— Seja lá quem tenha sido essa pessoa com delírios de grandeza, ela falhou porque não tinha a força e a determinação para conquistar. Eu herdei ambos da minha fé em Malchi-Zarum e irei provar isso. O primeiro passo, será matar você!
Seus punhos cerraram, concentrando tanta energia a ponto de faíscas se manifestarem ao seu redor. Aos olhos da bruxa, aquilo tinha força o bastante para criar uma cratera de uns cinco metros de raio no solo. Em alguns segundos, ela não seria nada além de uma massa disforme de carne e fragmentos de ossos.
Mesmo assim, a bruxa esboçou um sorriso em seu rosto, deixando Sarisa confusa.
— Testemunhar sua morte te entretém?
— Sabe — respondeu Kalira, limpando o sangue do seu nariz. —, aquele homem tinha tanto a força quanto a determinação. O que ele não tinha era a humildade para reconhecer que por mais bem-feitos sejam seus planos, sempre há uma chance, mesmo que tão pequena quanto uma formiga, de que eles possam falhar. E você é igualzinha a ele.
— E qual seria a falha em meu plano? — perguntou Sarisa, com um profundo desdém.
— Quando você estava lá atrás, a luz dos seus poderes ricocheteava nas paredes próximas, deixando o ambiente ao seu redor totalmente iluminado. Mas agora que você chegou aqui, a luz que você emite ficou difusa, pois não tem lugares bons para refletir. Isso gerou a enorme sombra do seu corpo projetada no lado oposto da sua mão.
“Quanto diálogo expositivo, pelos deuses!”
Sarisa olhou para o seu lado esquerdo, vendo que as palavras da bruxa eram verdade. Antes que pudesse fazer algo, Kalira ergueu seu braço direito e fez um movimento similar a alguém puxando algo para o solo. Imediatamente, a sombra da sacerdotisa ficou escura como a noite profunda, fazendo todos os seus músculos se retesarem e seu corpo paralisar.
— Maldita bruxa-
Kalira pôs sua mão na têmpora da garota, encarando seus olhos com as trevas que a pertencia.
— Olhar do Eclipse — conjurou Kalira.
A expressão de Sarisa se fechou, percebendo que tinha caído na mesma armadilha duas vezes seguidas. Repentinamente, seu raciocínio ficou nublado e sua mente começou a desvanecer-se na escuridão. Então, as vozes começaram a fazer barulhos desagradáveis, o espaço começou a ficar mais comprimido e o frio a se espalhar. Não havia nada na sua frente além da escuridão sem fim.
Do lado de fora, a garota estava completamente amolecida. Mesmo com apenas um braço funcional, ele era o bastante para sustentá-la de pé. Seus olhos estavam completamente enevoados e seu corpo não reagia a nenhum estímulo.
— Se eu te matasse agora, evitaria tantos problemas! — disse Kalira, rangendo os dentes.
Sua mão direita envolveu o pescoço da garota, comprimindo-o com toda a sua força restante. Seus dedos sentiram a frágil traqueia da jovem, que a cada segundo tinha sua respiração dificultada. Em alguns segundos, era possível escutar os sons secos saindo da sua respiração, a um passo da asfixia. Mesmo assim, Sarisa não poderia resistir, pois a garota estava presa em um feitiço.
Então, Kalira cedeu. Sua mão soltou de sua garganta e uma sensação estranha tomou conta de si. Seus olhos estavam erráticos, ponderando o que tinha acabado de fazer. Será que a temível bruxa canibal das sombras tinha amolecido?
Algum tempo depois…
Kalira respirava o ar denso da Selva de Concreto mais uma vez. Após uma fuga apressada das catacumbas do antigo templo, ela tinha certeza que aqueles mercenários poderiam estar à espreita em qualquer lugar, aguardando-a dar um vacilo para atacá-la de surpresa. O único lugar onde poderia erguer suas defesas apropriadamente era na sua cabana.
Ao sentir os primeiros sinais de respiração pesada em seu ombro, a bruxa resolveu dar uma parada para descansar, enquanto colocava a garota que estava em suas costas no chão.
— Sarisa! Sarisa! Acorde, por favor.
Seus olhos enfraquecidos abriram lentamente, dessa vez sem seu brilho mortal. O sol sutil iluminou seu olhar, que se deparou com o rosto gentil da Kalira, que acariciava o seu cabelo.
— Kalira? O-o que aconteceu? — perguntou a jovem, olhando os arredores. — O que aconteceu com sua camisa? Você tá bem?
Desde que entrou no templo, a bruxa esqueceu que tinha cometido algumas travessuras contra seus últimos oponentes.
— Ah, isso? Eu tô bem, não se preocupe. Que bom que você está acordada, consegue se levantar?
Aquela quantidade de informações só criava mais dúvidas na cabeça da jovem.
— Estávamos indo para o templo, eu estava tão perto da entrada…só que eu não lembro nada do que aconteceu depois disso. Onde nós estamos, Kalira?
— Na metade do caminho para minha casa. Não podemos voltar ao templo agora, tinham homens perversos armados, prontos para nos matar. Escapamos por muito pouco.
A sacerdotisa olhou para a bruxa mais uma vez, percebendo o estado deplorável que seu corpo se encontrava. Braço ferido, olho parcialmente roxo, inchaço nos lábios, lacerações por toda parte.
— O que eles fizeram contigo? — questionou Sarisa, temerosa.
— Eles tentaram quebrar meu corpo, mas foram incapazes de quebrar meu espírito — respondeu Kalira. — Eles te apagaram e queriam fazer coisas muito ruins contigo. Eu não podia ficar apenas olhando.
As palavras dela tocaram profundamente Sarisa, que sentia uma culpa esmagadora por deixar uma pessoa normal sofrer tanto para manter sua segurança. Seus olhos começaram a lacrimejar, fazendo-a correr e envolver sua nova amiga em um abraço apertado.
— Calma, Sarisa — disse Kalira, com uma voz acolhedora. — Eu escolhi fazer isso, você não tem que se culpar.
“Adoro mudar a narrativa com mentiras e falsidades, mas essa atuação já está me dando vergonha alheia.”
— Me desculpe! — respondeu Sarisa, enterrando sua cara no ventre da bruxa. — Não vou ser mais um fardo pra você, eu juro!
A bruxa esboçou um sorriso. A cada provação, conseguia penetrar um pouco mais no coração da garota. Embora os riscos fossem grandes, a recompensa por uma conexão profunda com ela poderia ser bem maior. Ainda havia um longo caminho pela frente.
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