Índice de Capítulo

    O sol brilhava com toda a intensidade sobre a Selva de Concreto, tendo sua luz atenuada e distorcida pela folhagem peculiar das enormes árvores retorcidas da vegetação. Os sons fracos e distantes da vida selvagem ecoavam por toda a sua extensão, contribuindo para a sensação constante de vida e perigo. Os pés de Kalira estavam bem mais esbranquiçados que antes, devido ao fato de ter perdido os sapatos enquanto estava no templo.

    “Pelo menos o enxofre da terra ajuda a deixar os ferimentos sanitizados.”

    Ocasionalmente, a bruxa soltava uma tosse ou outra, pensando em tudo o que tinha acabado de acontecer. Sua mente constantemente ponderava se tinha sido a escolha correta ter deixado Sarisa viva, pois sabia muito bem que sua natureza instável não poderia ser mantida sob controle por muito tempo.

    — Kalira… — solicitou Sarisa, olhando para a bruxa.

    Desde o momento em que a garota acordou, ela não soltou mais Kalira. Era quase palpável a sensação de confusão e solidão da menina, que estava completamente fora do seu tempo e dos seus amigos e familiares, sem nenhuma esperança de recuperá-los.

    — Sim?

    — E-eu tento me lembrar do que aconteceu dentro do templo, mas simplesmente não consigo! Uma hora eu estava prestes a entrar lá quando tudo de repente apagou e…eu estava aqui! Não sei se encontrei alguma coisa ou alguém, só sinto essa lacuna enorme na minha mente.

    — Você mencionou isso mais cedo, seja mais específica — respondeu Kalira, friamente. Ela se repreendeu por isso, mas a dor em seu corpo estava afetando seu julgamento.

    — O-o que eu quero dizer é que…você realmente não sabe o que aconteceu comigo? Onde me encontrou?

    Aquelas palavras colocaram a bruxa em uma situação complicada, pois não tinha certeza de quanta informação poderia liberar para a garota. A parte em que ela se transformava em um proto-avatar de uma divindade estava completamente fora de questão, ou a parte em que usou seus poderes para assassinar dois mercenários brutalmente.

    — Eu te encontrei no segundo andar do templo. Você estava desmaiada lá, acredito que por uns dez a quinze minutos — respondeu a bruxa, tentando prever as próximas perguntas e formular as próximas respostas.

    A garota pareceu um pouco pensativa:

    — Achei que você tinha entrado lá dentro comigo…

    A bruxa permaneceu por alguns segundos em silêncio, até que resolveu falar:

    — Esse tipo de coisa parecia pessoal demais para me intrometer. Eu preferi aguardar do lado de fora. Sabe como é, não queria que minha presença atrapalhasse sua profusão de memórias.

    Embora fossem respostas concisas, pareciam vagas demais e não preenchiam nenhuma das suas lacunas em sua cabeça.

    — Entendo…e quem foi que nos atacou? Parece que você sabe se defender muito bem, irmã!

    “Caralho! Essa desgraçada não sabe calar a porra da boca?”

    Kalira finalmente parou e se virou na direção da jovem sacerdotisa, que foi pega de surpresa. Seus olhos pareciam assustados, perguntando-se caso tinha dito algo errado ou ofensivo. A bruxa colocou suas mãos no ombro da garota, olhando-a com ternura.

    — Sarisa, meu bem. Eu estou exausta e sinto como se meus braços fossem cair a qualquer momento. Irei responder todas as suas perguntas depois que enfaixar isso e tomar uma boa xícara de chá, mas poderia me deixar com o silêncio das nossas vozes e o cantar dos pássaros? Quero chegar logo em casa.

    Aquelas palavras reverberaram na jovem, que percebeu sua própria falta de sensibilidade, ou pelo menos como Kalira desejava que ela se sentisse. Como forma de desculpas, a garota se aproximou e a envolveu com seu braço esquerdo.

    — Eu posso usar um pouco de magia para ajudar a fechar alguns ferimentos.

    “VOCÊ VAI É ME MATAR, ISSO SIM! MAGIA DIVINA EM UMA BRUXA? ENLOUQUECEU?”

    — Podemos ver isso assim que chegarmos, tudo bem?

    Após uma caminhada de aproximadamente trinta minutos com os sons misteriosos da Selva de Concreto, o enorme corredor de Salgueiros Sanguinários aguardava a sua travessia até a Colonizadora, onde sua cabana residia. Aquela visão trazia uma certa tranquilidade à bruxa, percebendo que finalmente teria paz por um momento.

    “Certo. Vou descansar, me recuperar e lidar com qualquer invasor restante eu mesma! Não posso subestimar esses homens.”

    Enquanto caminhava até a sua casa, algo a fez parar. Seus pés encaixaram em uma pegada que tinha pelo menos cinco tamanhos a mais que o seu pé. E não havia apenas uma ali.

    — Por que parou? — questionou Sarisa.

    A bruxa fechou os olhos e respirou fundo, expandindo seus sentidos.

    — Estou com um pressentimento ruim, querida. Acho que não estamos sozinhas nesse lugar — sussurrou Kalira.

    Com seus sentidos ampliados, tudo parecia normal a princípio. Até o cheiro de metal e suor atingirem suas narinas, junto com o som de respirações pesadas. Elas estavam espalhadas por todos os lados, como se aguardassem de prontidão alguém chegar.

    Elas tinham acabado de cair em uma armadilha.

    — O que está acontecendo? — perguntou Sarisa.

    Então, o som de armas sendo engatilhadas começou a ecoar dentro da sua cabeça, indicando que tinha menos tempo do que esperava.

    — Sarisa — disse ela, puxando a garota para sua frente. — Corra o mais rápido que puder! Lembra o caminho que viemos? Vá naquela direção e não pare de jeito nenhum. Se esconda na cachoeira, eles não se atreverão a te seguir lá.

    Aquelas palavras causaram confusão e temor na jovem sacerdotisa, mas não apenas por causa do seu conteúdo.

    — C-como você está falando diretamente na minha mente? — questionou Sarisa, confusa.

    Então, um grupo de homens armados começou a sair de trás das árvores, apontando seus rifles na direção das garotas.

    — Eles não vão atirar em você, agora vá! CORRA! NÃO OLHE PARA TRÁS! EU VOU TE BUSCAR.

    Sem alternativas disponíveis, a garota soltou pesarosamente sua amiga e correu como se não houvesse amanhã, com lágrimas escorrendo do seu rosto. Aquilo chamou a atenção dos mercenários, o que correspondeu perfeitamente com o plano da bruxa.

    Como se estivesse puxando uma enorme corda pesada, Kalira moveu suas mãos de forma agressiva, afetando a sombra de todos os homens ali presentes, que imediatamente perderam o equilíbrio e ficaram atordoados brevemente. Enquanto sua verdadeira aparência tomava forma, ela correu na direção de uma das árvores, tomando cobertura.

    Os homens imediatamente se recuperaram, pegando novamente em suas armas e abrindo fogo na direção de onde a bruxa tinha se movido. As balas agrediram o tronco, criando enormes crateras em uma agressiva e sonora saraivada de balas.

    — Formem o perímetro! — gritou um deles, enquanto se aproximava lentamente e alternava os disparos com seus aliados.

    Coberta de farpas, Kalira não tinha nenhum ângulo que fosse seguro o bastante para lançar sua contraofensiva. E mesmo que conseguisse lançar, tinha a desvantagem de que um projétil era o bastante para incapacitá-la completamente.

    Ao perceber como eles estavam quase se aproximando, Kalira fechou os olhos e retirou da sua bolsa uma vela peculiar. Embora composta de cera, havia indícios de seiva de pinheiro sangrento, terra sulfúrica, fios de cabelo e gordura humana.

    — Espero que não me deixe na mão, filho da puta!

    Com um estalar de dedos, a vela começou a queimar. Não sabia quanto tempo teria que esperar, então ela aproveitou a cavidade na árvore que tomava cobertura e a colocou ali dentro, esperando pelo melhor. A partir daquele momento, teria que contar com a sorte para conseguir escapar. Mesmo pegando um por um, eles começariam a cobrir as costas um dos outros até ficar impossível pegá-los isoladamente.

    Fugir também não era uma opção, pois não tinham muitos pontos seguros nas proximidades. Aquelas armas poderiam alcançá-las facilmente. Ela também poderia tentar teleportar através das sombras, mas o sol estava no zênite, atrasando drasticamente o tempo de conjuração da magia. Para piorar, mesmo que optasse por teleportar até seu casebre, as chances de eles simplesmente optarem por subir e pegá-la em cima eram consideravelmente altas.

    — Merda!

    De repente, a chuva incessante de disparos parou, seguida de uma voz grave acompanhando por trás, ordenando o cessar fogo. Aquilo a deixou brevemente confusa.

    — Sabemos que você não tem para onde ir, então que tal sair daí e vir falar conosco? Suas opções estão restritas a ser uma boa garota obediente ou ter seu corpo peneirado.

    A bruxa permaneceu alguns segundos em silêncio, até responder.

    — Eu posso criar minha terceira opção!

    — Não, você não pode. Se pudesse, já teria feito. Que tal assim, eu e meus homens largamos os rifles e nos resolvemos da forma como você quiser?

    A princípio, Kalira achou aquilo ridículo. Mas quando escutou as armas sendo travadas e elas caindo no chão, sendo chutadas para longe dos seus portadores, aquilo gerou uma confusão em sua cabeça.

    “A confiança dos humanos é algo impressionante, mas também é bastante tola.”

    Ela ampliou seus sentidos mais uma vez, certificando-se que não tinha ninguém na tocaia esperando surgir uma oportunidade para atacá-la. Tudo parecia limpo, exatamente como estava sendo dito.

    — Não pode ser! Isso é uma armadilha, não tem como isso parecer tão fácil — murmurou a bruxa.

    — Não tenha medo! Eu sempre quis ter uma conversa franca com uma bruxa. Sua espécie me fascina desde que eu era um guri catarrento. Ouvi dizer que eram feias, com verrugas no nariz e corcundas. Será que é por isso que não quer aparecer? Não se preocupe, não gosto de julgar pela aparência.

    O que era receio na cabeça de Kalira se transformou em incômodo, seguido de raiva. Não que as bruxas fossem modelos em aparência, mas não era necessária tamanha brutalidade nas descrições.

    “Eu vou fazê-lo engolir essas palavras junto com a própria língua!”

    Motivada pela sua determinação e raiva, além da percepção alterada da realidade, Kalira saiu detrás da árvore, com suas mãos completamente enegrecidas. Todos os mercenários ao redor franziram os olhos, ainda incertos do que iria acontecer dali para frente.

    Samir ergueu uma sobrancelha, olhando-a de cima para baixo. Uma jovem mulher, com uma camisa marrom de botões completamente suja de sangue seco, que contrastavam com sua pele mortalmente pálida. Apesar dos chifres, olhos de obsidiana e protuberâncias na base do pescoço, todos aqueles detalhes combinavam em uma aparência mortalmente linda. Tudo que conseguia pensar era como aquilo seria um desperdício.

    — Minha nossa! Acho que agora consigo entender o porquê nossos pais dizem que vocês são feias. Não queriam que vocês nos levassem pelo mau caminho.

    Sem dizer uma palavra, a bruxa ergueu as mãos a as puxou para baixo, aprisionando as sombras de todos os mercenários ali. Aqueles homens imediatamente sentiram seus músculos estirarem e seus corpos ficarem retesados.

    — Não sei porque foram tão idiotas a ponto de largarem suas armas, mas eu não vou correr nenhum risco-

    Antes que a bruxa terminasse seu discurso, Samir tinha encurtado a distância entre os dois, de dez metros para um e meio, com seu braço direito erguido enquanto segurava um machado na direção do pescoço dela.

    — Solte meus homens dos seus feitiços, por favor. Eu fui cortês contigo, retribua o favor.

    A arrogância no rosto da bruxa se transformou em temor imediato. A velocidade com que ele se moveu mal deu para acompanhar com seus olhos, fazendo-a ter uma pequena noção do quão rápida e insignificante sua morte seria naquele momento. Um pequeno filete de sangue escorreu da região onde a lâmina foi pressionada, forçando suas mãos a cair em direção ao solo e rompendo a ligação das sombras, libertando os mercenários.

    Samir deu um sorriso, enquanto abaixava o machado.

    — Ótimo! Que tal resolvermos isso pacificamente?

    A bruxa ergueu uma sobrancelha, com desconfiança.

    — Você quer resolver isso pacificamente? Após eu ter matado quatro dos seus homens?

    — E você quer que eu faça o quê? Os vingue? Não, eles sabiam no que estavam se metendo. E pelo que parece, você também sabe, não é? Desde o momento que a garota fugiu do templo e se meteu aqui na sua casa, provavelmente já deve ter sentido que existe algo de especial nela.

    “Se eu enrolar eles por tempo o bastante, posso conseguir receber ajuda. No pior dos casos, eu consigo fazê-los se perder nesse lugar.”

    — Sim, eu senti. E por esse lugar ser o meu domínio, ele automaticamente me pertence. Vocês sabem que estão invadindo.

    Samir deu de ombros.

    — É porque esse é o nosso trabalho. Por isso andamos tão armados até os dentes. Inclusive, se está contando com a ideia de nos distrair até a garota se perder na Selva, pode desistir. Meu melhor rastreador já está no encalço dela.

    Aquelas palavras jogaram todos os planos da bruxa por terra. Se a garota não estivesse em sua posse, recuperar a Pílula do Florescer Espiritual seria impossível. E para piorar, ela não havia mais nada que a pusesse em terreno alto. Todo aquele espetáculo de jogar as armas no chão, eram apenas uma forma de mantê-la sobre seu alcance. Se havia um momento para explorar a vulnerabilidade era aqueles instantes, mas seu ego acabou provocando isso.

    — Então era esse seu plano o tempo todo…me manter aqui, enquanto seu batedor captura a garota!

    — E foi muito mais fácil do que eu pensava. Só em ver seu estado, posso ver que meus homens te deram trabalho. Eu sinceramente esperava mais da dona desse lugar, mas confesso que estou decepcionado. O bom é que quando eu terminar com você, poderei inventar qualquer história sobre como acabei com uma bruxa.

    Kalira semicerrou os olhos. Embora sua velocidade não se comparasse ao do mercenário, talvez o elemento surpresa pudesse ser um diferencial no confronto. Aproveitando aquele tempo onde Samir estava completamente convicto da sua arrogância, a bruxa tentou acertá-lo com um gancho surpresa, porém no lugar dos seus punhos, um par de garras sombrias emergiram em uma velocidade altíssima, sendo capaz de surpreender os mais rápidos guerreiros.

    Porém, Samir já esperava um ataque traiçoeiro. Seu pé direito o empurrou levemente para trás, dando-o tempo o suficiente para se agachar contra o golpe cruzado realizado pela mesma.

    — Vejo que é determinada! — provocou Samir.

    Vendo que errou tão drasticamente, a bruxa saltou para trás, tentando ganhar distância. Porém, o mercenário não ia deixá-la ir muito longe. Usando seu machado, ele arremessou em sua direção, mirando em sua cabeça. Kalira teve tempo apenas de defleti-lo usando suas garras, mas a sua falta de experiência em combate corpo-a-corpo gritava, pois gerou abertura o bastante para o mercenário encurtar a distância mais uma vez, conectando um chute espartano direto em seu abdômen, arremessando-a contra uma árvore.

    “Merda! Merda! Merdaaaaaaa! Onde está ele quando eu preciso de ajuda?”

    Samir se aproximou calmamente, enquanto todos os músculos do corpo de Kalira estavam vibrando em dor. Sua visão estava turva e sangue escorria pela sua boca. Possivelmente, um dos seus pulmões estava lacerado.

    — Você…não- Antes que conseguisse formar sua sentença, o pé direito do mercenário acertou o seu rosto com tamanha força contra a árvore que foi possível escutar um estalo que ecoou por aquela região. A sola daquela bota foi tudo que a bruxa enxergou antes de cair inconsciente no solo.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota