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    Mesmo no segundo andar, dava para sentir o cheiro de poeira e alvenaria destruída. O ar estava turvo e pesado, seus pés pisavam em destroços e era possível ver a plena luz do sol penetrando os degraus da escadaria. Seu nariz conseguiu detectar um pequeno fio de pólvora, o que o fez pensar como diabos seus próprios homens conseguiram a proeza de explodir uma bomba na entrada do lugar mais importante da expedição.

    — Que caralhos…?

    Usando sua força, agora exponencialmente aumentada, Samir empurrou enormes pedaços de concreto para fora do seu caminho. Partes inteiras com três ou quatro camadas de tijolo, que provavelmente pesavam aproximadamente quinhentos quilos, eram movidas como se fossem meras sacolas de estopa.

    — JONES! JOHN! ONDE VOCÊS ESTÃO? — bradou Samir, olhando os arredores do templo.

    Então, quando viu onde ocorreu o epicentro da explosão e o que sobrou dos vestígios dos seus soldados, franziu sua testa, questionando-se o que teria acontecido ali. O que sabia, entretanto, era que claramente não tinha sido por vontade dos próprios. Seu dedo residia no gatilho destravado do seu rifle, pronto para abrir um buraco em qualquer ameaça que surgisse em seu campo de visão.

    — Se serve de consolo, não fui eu quem os matou.

    A voz feminina familiar ecoou por todo o templo, forçando Samir a olhar em todas as direções. O mercenário se agachou por instinto e começou a tomar cobertura nos pilares, tentando rastrear a origem do som enquanto mantinha seu perfil baixo.

    — BRUXA! É VOCÊ? O QUE AQUELES IDIOTAS FIZERAM PARA DEIXÁ-LA ESCAPAR?

    Um silêncio surgiu em seguida, deixando Samir impaciente. Embora procurasse a bruxa, sabia que era importante manter o olho na entrada, para garantir que ela não passasse enquanto estivesse distraído.

    — Esse lugar é o meu domínio, mercenário — respondeu a voz. — Eu posso não ser a bruxa mais velha ou experiente entre as minhas irmãs, mas ninguém chega na minha idade sendo tão ingênua. Confesso que caí em seu primeiro truque, mas olha quem está caindo no meu?

    Samir riu, enquanto corria de uma pilastra para outra.

    — VOCÊ AINDA ESTÁ EM MENOR NÚMERO, BRUXA. CHEGAMOS EM DEZOITO, VOCÊ É SÓ UMA.

    — E quanto dos seus ainda resta?

    A princípio, Samir fez a contabilidade dos dois que tinham morrido para o Malavares e o que tinha desaparecido na noite em que encontraram a garota, mas foi quando a realidade bateu nas portas da sua consciência. Dois morreram para o Malavares, um morreu nas mãos da bruxa, mais dois morreram quando ela foi até o templo, os quatro arqueólogos que capturaram a garota também morreram, os cinco homens que ficaram de vigiá-la provavelmente estavam mortos também, isso sem contar os dois que acabaram de morrer. Marcus foi uma obra sua.

    Em dois dias, seu contingente de dezoito homens, estava reduzindo apenas a um sobrevivente. A Selva de Concreto realmente era um lugar amaldiçoado.

    — SE EU AINDA ESTOU VIVO, AINDA TENHO UMA CHANCE. E É APENAS ISSO QUE ME IMPORTA AGORA!

    — Você está apostando o bastante que conseguirá sair daqui vivo, mercenário.

    — SE VOCÊ FOR TUDO QUE ESTÁ ENTRE MIM E A SAÍDA, ENTÃO EU JÁ VENCI. NÓS SABEMOS QUE VOCÊ NÃO É INTELIGENTE O BASTANTE PARA ME DERRUBAR.

    Então, um silêncio no ar. Samir esperava alguma resposta ou sinal de movimentação, mas nada surgiu. Embora tivesse provocado-a, sabia que não ficaria sem resposta por muito tempo. Já tinha conseguido o que veio buscar, era hora de pegar a garota e ir embora.

    O mercenário correu em direção do que sobrou da entrada do templo, prestes a pegar o que era seu e ir embora. Quando estava não mais do que alguns metros, sentiu seu corpo retesar completamente. Era uma sensação similar a ganchos de aço perfurando sua pele, enquanto seus músculos eram puxados e estirados dolorosamente.

    Kalira surgiu alguns metros atrás do mesmo, com seu punho fechado erguido na altura do seu ombro, como se estivesse puxando um fio em sua direção. Como sua concentração nesse feitiço estava intenso, seus passos eram lentos, mas determinados enquanto se movia na direção do mercenário.

    — Finalmente apareceu…bruxa! — disse Samir, rangendo os dentes.

    Então, seus braços começaram a tremer de volta, como se tentassem recuperar sua movimentação.

    — Tem algo errado…não era para você resistir tanto assim a minha magia — murmurou Kalira.

    Samir fechou os olhos e canalizou sua energia recém obtida através do seu corpo. Uma quantidade de poder avassaladora tomou conta da sua musculatura, queimando todos os efeitos da magia obscura em si. Externamente, uma onda de energia invisível saiu dos seus poros, causando uma pequena onda de choque ao seu redor e purificando as suas sombras, que era por onde a bruxa exercia seus poderes.

    No instante em que se viu livre, ele virou seu corpo e começou a atirar como se não houvesse amanhã. Mesmo sendo pega de surpresa, a bruxa não deixou isso tomar conta da sua mente.

    — Forma das Trevas! — conjurou, mais uma vez.

    A escuridão simbiótica tomou conta do seu corpo, envolvendo-a em uma viscosidade defensiva, que anulava os efeitos dos tiros disparados contra si. Mesmo vendo isso, Samir continuou usando o fogo contínuo para se aproximar da bruxa, cuja tensão aumentava ao perceber que caso movesse um único centímetro voluntariamente, perderia a única coisa que a mantinha viva.

    — Acha que esse truque vai te salvar? — disse Samir.

    Ao ter distância o suficiente, o mercenário parou de atirar e ergueu o rifle, prestes a dar uma coronhada violenta. Imediatamente, a bruxa removeu sua proteção e saltou para trás, estendendo suas longas e letais garras nas suas mãos. Vendo a movimentação dela, ele girou mais uma vez com a arma em mãos, para voltar a atirar com a mesma. Porém, Kalira aguardava isso.

    Suas unhas longas de obsidiana começaram a se fundir, se desprendendo das suas mãos e aumentando em extensão, formando um longo e farpado chicote. Aproveitando a pequena abertura, a bruxa balançou sua arma e atacou diretamente o rifle, envolvendo-o e reduzindo o controle de Samir sobre a mesma.

    Mas o mercenário não era bobo. Enquanto a maioria tentaria contestar força com ela, e mesmo sabendo que ele provavelmente venceria, não seria sem consequências. Em uma olhada rápida, percebeu que as farpas negras do chicote estavam danificando o cano da arma, tornando-a completamente instável. Samir imediatamente soltou o rifle e puxou sua Beretta, dando três tiros consecutivos em direção a cabeça de Kalira.

    “Ele é rápido e esperto! Que droga!”

    Sem muitas opções, a bruxa inclinou seu corpo para a esquerda, esquivando dos disparos por uma breve fração de segundos. Quando seu corpo caiu no chão, ela rolou pelo espaço e pegou um punhado de terra sulfurizado em suas mãos.

    — Corrente de Chamas Negras! — conjurou, enquanto jogava o punhado de solo na sua frente.

    Aqueles grãos de solo brancos imediatamente se escureceram, enquanto acendiam um enorme fogaréu entre os dois inimigos. As chamas laranjas imediatamente ficaram tão escuras quanto a profunda noite, levantando um imenso véu de escuridão entre ambas as partes. Apenas por estar próximo, Samir percebeu que a fumaça produzida era altamente tóxica.

    “Isso vai me comprar um pouco de tempo…”

    — Eu não vou deixar você comprar tempo, bruxa! — disse Samir.

    A coluna de mármore ao seu lado pesava aproximadamente duas toneladas. E nem era uma das maiores ou mais grossas. O mercenário olhou para suas mãos, respirou fundo e a envolveu em seus braços. No início, sofreu um pouco de resistência, mas então as bases da pilastra começaram a se romper, até quebrarem completamente.

    O mercenário posicionou o cilindro de mármore no chão, rente a enorme barreira de fogo. Seu pé direito a empurrou com a força de dez homens. Enquanto ela se movia, o mesmo ia seguindo o ritmo logo atrás. Nos breves segundos que as chamas foram interrompidas pela enorme coluna. Samir usou a abertura para saltar por cima dela, parando do outro lado do fogo.

    O mercenário apontou sua arma para todos os lados, mas não conseguiu achar nenhum vestígio da bruxa. Era improvável que a mesma tivesse fugido, porém era estranho como tinha conseguido desaparecer tão fácil.

    De repente, algo chamou sua atenção: a sombra embaixo de si tinha ficado maior de repente. Quando se deu conta, Kalira tinha surgido da sua própria sombra, saltando em suas costas e travando suas pernas em sua cintura. Ambas as suas mãos formaram longas garras que se moveram rapidamente para perfurar seu pescoço.

    — Não vai ser tão fácil assim, bruxa! — disse Samir.

    Seu braço esquerdo realizou uma cotovelada poderosa no rosto da bruxa, que perdeu o raciocínio por alguns instantes, mas não o soltou. Todo o lado esquerdo do seu rosto ficou avermelhado. Como se não bastasse, Samir ergueu suas mãos e segurou na cabeça dela, usando sua força excessivamente superior para removê-la das suas costas e jogá-la em sua frente, deixando-a caída no chão.

    — Morra, imunda!

    Samir pegou sua Beretta e puxou o gatilho, prestes a explodir a cabeça da sua oponente. Porém, a infelicidade surgiu naquele momento. O pente estava vazio. Quando Kalira, que estava recuperando o foco, percebeu isso, ela tentou rolar para o mais longe possível, mas Samir não deixou isso acontecer. Usando sua velocidade, também superior, prendeu o braço dela usando seu pé.

    — Você é uma dor de cabeça insuportável! — disse ele, retirando o machado de sua cintura. — Isso aqui não vai precisar ser recarregado.

    Mesmo que Samir não estivesse colocando muita força, Kalira gritou com a dor de ter seu ombro sendo esmagado por tamanha força. Como que seu nível de magia tinha aumentado tão drasticamente em tão pouco tempo? Sua mão esquerda atacou o pé do mercenário, perfurando a base do seu joelho com uma das suas garras.

    — Merda! — esbravejou o mercenário, recuando alguns passos.

    Kalira se levantou, completamente dolorida e com o braço direito parcialmente inútil. Essa luta teria acabado a muito tempo caso ela ainda estivesse com o corpo ferido.

    — Como? Como você ficou tão forte em tão pouco tempo? Você já tinha suas vantagens, mas eu sinto…eu sinto a mana que seu corpo acumula, está muito maior do que estava antes.

    — Parece mesmo que você não sabia de nada, no final das contas. Quer saber? Foda-se, eu vou falar mesmo. Apenas um de nós irá sair daqui. Aquela mulher tem o poder da Pílula do Reflorescer Espiritual e sua especialidade é criar pílulas instantâneas para aumentar o poder de quem as consumir.

    Kalira franziu os olhos, ponderando se aquela última parte da informação era verdadeira ou falsa. Samir continuou a falar:

    — Você deve ter achado que conseguia controlar ela, né? Ha! Quando ela conseguisse reunir, nem que fosse um punhado de seguidores ralés perdidos nesse fim de mundo, com uma pílula daquelas, a pessoa seria alguém forte o bastante para derrubar essas árvores com um soco bem-dado. Ela é a ferramenta perfeita para formar um exército de guerreiros.

    Foi então que a iluminação atingiu a cabeça de Kalira. Tudo fazia sentido naquele momento.

    “Por isso ela não se lembra de ter necessariamente consumido a pílula ou o seu destino. Sarisa é a Pílula do Reflorescer Espiritual! Esse é o grande plano de Malchi-Zarum, no final: encontrar uma era favorável para que seu culto volte a ativa com força total rapidamente para destruir qualquer um que o desafie.”

    — Só com o que ela fez até agora, eu poderia tomar uma pequena cidade se tivesse um bando. Ela é o sonho dos alquimistas, a máquina de dinheiro perfeita para as Grandes Famílias e eu seria muito burro se abrisse mão disso. Eu perdi todos os meus homens, mas isso vai me render bem mais!

    Kalira estava bastante pensativa. Embora achasse que era a única vendo o quadro geral, percebeu o quão profundo as coisas poderiam ser. No final, isso estava muito além do seu domínio, mas sim dentro das muralhas imperiais também. E não era uma boa ideia uma pobre e solitária bruxa estar no caminho desse confronto.

    — Que tal fazermos um acordo? Eu pego minhas pílulas e vou embora daqui. Fique com a garota, ela ainda tem saúde e um longo tempo de vida. Você não lucra com minha morte, eu não lucro com a sua. Se continuarmos a lutar, ninguém vai sair sem sequelas.

    Kalira balançou os dedos, ponderando suas possibilidades. Ele tinha vantagem tanto a distância quanto em conflito de curta distância. Embora tivesse suas magias, elas criavam enormes aberturas para os contra-ataques letais do mercenário. Por outro lado, se conseguisse combinar seus feitiços rápidos apropriadamente e forçar um ponto fraco, levaria a vitória, mas dependendo de onde acertasse, ele poderia revidar brutalmente e prejudicar de forma perpétua o seu corpo. Seria trabalhoso conseguir um novo em um lugar tão isolado quanto esse.

    A bruxa respirou fundo e encolheu suas garras.

    — Você tem três minutos. Se eu te encontrar novamente, irei te matar.

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