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    — Ei, acorda!

    A voz grave e baixa fez Akae retornar aos seus sentidos, enquanto se perguntava sobre quanto tempo já tinha apagado desde que pegou no sono. O seu captor, que residia agachado na sua frente segurando alguma coisa, parecia ter a mesma expressão desde o momento que a capturou. E isso a irritava bastante.

    — O que você quer comigo? — perguntou ela, encolhendo-se no canto da barraca.

    — As pessoas lá estavam morrendo de fome. Comeram um sanduíche de lanchonete como se fosse um banquete de um restaurante cinco estrelas. Por motivos óbvios, eles não concordariam em deixar você comer se eu perguntasse.

    Embora estivesse furiosa com aquelas palavras, seu coração doía um pouco, pois sabia que suas reações eram plenamente compreensíveis, já que ela foi cúmplice por tudo que ocorreu com eles.

    — Está aqui só para me dizer que vou passar a noite com fome?

    — Não — respondeu ele, colocando um pacote embalado em suas mãos. — Não acho que deixar você com fome iria melhorar alguma coisa.

    A estranha compassividade de Huan Shen não pôde evitar de deixá-la desconfiada. Aquele era o mesmo homem que abriu caminho assassinando diversos saqueadores, incluindo sua melhor amiga? Seria aquela uma tentativa de envenená-la? O que não faria sentido, pois se ele a quisesse morta, teria simplesmente a matado.

    Com precaução, ela desenrolou o pacote enquanto o cheiro do sanduíche preenchia a barraca, fazendo sua boca salivar. Uma meia baguete de parmesão, com frango teriyaki, com cogumelos shitake e com pasta de feijão doce. Mesmo sendo uma versão modificada e revisada de um prato comum da família Shirokage, era ironicamente popular tanto entre os mais jovens quanto os mais velhos do clã.

    Quando Akae começou a comer como se não houvesse amanhã, Huan Shen se levantou e tomou seu caminho em direção à saída da barraca. Quando a garota deu uma pausa na sua refeição para dizer:

    — Não pense que isso muda alguma coisa entre nós!

    O emissário respirou fundo, inclinou a cabeça em direção a ela e respondeu:

    — Poupe suas palavras para alguém interessado em ouvi-las, garota. Já possuo o ressentimento de muita gente direcionada a mim, o seu é só uma pena em cima de um rochedo.

    Com essas palavras frias, ele desapareceu na imensidão escura da noite. Akae, mais uma vez sozinha, encolheu-se nos próprios joelhos, mastigando o último pedaço de um sanduíche barato, se perguntando quando aquele pesadelo iria acabar.

    “Hoje a lua maior está minguante.”

    Mais uma vez, Huan Shen se encontrava só naquele acampamento. De onde estava, era possível observar aquelas pessoas se ajeitando para dormir ao redor da fogueira, o que o deixava mais aliviado. Os emissores tomariam conta das criaturas e as chances de ter alguém do lado de fora eram muitíssimo baixas.

    — Acho que eu deveria tirar um cochilo também.

    Sentado em frente ao riacho que cortava por dentro do acampamento, ele retirou sua faca de combate da bainha e a mergulhou junto com sua mão na água fria e límpida, esfregando-a com a ponta de seus dedos para remover todos os vestígios de sangue seco que sobraram. Ele olhou seu reflexo na água parada, percebendo o quanto havia crescido no último ano, formando um pequeno sorriso em seu rosto comumente fechado.

    “Acho que nunca estive tão satisfeito com o meu corpo como estou hoje.”

    — Não é, rapaz? É impressionante o quanto uma mulher pode influenciar na vida de um homem! — disse seu próprio reflexo, flexionando os músculos.

    — PUTA MERDA! — gritou Huan Shen, enquanto rangia os dentes numa tentativa de evitar acordar todo o acampamento.

    Era uma visão bizarra que o emissário estava tendo. Ao mesmo tempo que via uma cópia perfeita de si em uma superfície reflexiva, não tinha domínio sobre seus movimentos. Embora sua experiência com magia não fosse algo que pudesse ser menosprezado, não podia evitar ser surpreendido.

    A voz do seu reflexo era espectral, como um sussurro desconhecido no meio dos seus sonhos.

    — Que belo espetáculo para alguém que acabou de retornar! Parece que fiz a escolha certa em te liberar uma parte dos seus poderes. E adivinha só! Agora eu tenho falas acompanhadas de travessões! Significa que eu serei um personagem de verdade agora e não uma alucinação sua!

    — Que bom pra você! Bem que poderia devolver o que é meu por inteiro! — bufou Huan Shen, sentado na borda do rio.

    — Oh, meu querido Grey! — disse o reflexo, andando de um lado para o outro. — Eu queria muito poder fazer isso, mas eu receio que seu corpo e sua mente não sejam capazes de aguentar o que tenho para você.

    — Minha pica que você queria, isso sim!

    A sombra arregalou seus olhos e boca, fazendo uma expressão que Huan Shen nunca imaginou que seria possível seu corpo fazer.

    — Ho ho ho! Olha a língua, rapaz! Você pode até ser mais velho nos padrões humanos, mas eu sou seu sênior por pelo menos uns cinco mil anos, então quero respeito!

    — Respeito de cu é rola! Por que você não pode me dar meus poderes totais de volta?

    Seu reflexo esboçou um sorriso e cruzou os braços, como uma dondoca após te explicar algo que você tem pleno conhecimento.

    — Bobinho, lembra o que ocorreu há um ano e a sua falta de controle? Então quando você, inadvertido por todos, resolveu fazer o pacto comigo, eu ficaria responsável por selar qualquer presença do Primordial no seu corpo. Como vocês chamam isso aqui mesmo?

    Huan Shen coçou a cabeça.

    — Depende. No Palácio Congelado, era chamado popularmente de chi, mas nas terras do Santo Império, devido a sua origem bem mista, muita gente atribui suas próprias nomenclaturas. Independentemente do que chamem, o resultado é um só: magia. Todos que manipulam as forças obscuras do mundo são usuários de magia.

    — Quem diria que haveria tanta inteligência nesse rostinho bonito! — disse o reflexo, batendo palmas e criando ondulações na água.

    — Isso não é inteligência, é senso comum.

    — Chame do que quiser. A magia que peguei do seu corpo acabou se misturando com o meu Éter das Fadas, o que o tornou naturalmente incompatível contigo. Se eu simplesmente te devolver, irá sangrar por todos os buracos do seu corpo até morrer.

    Seu semblante decaiu. Por incrível que pareça, Huan Shen não estava surpreso. Apenas decepcionado.

    — Eu só me fodo, chega a ser até mesmo impressionante! — sussurrou.

    — Mas calma! Nada está perdido! Pelo contrário, tudo que você treinou e aperfeiçoou ao longo da vida, está comigo. O Sangue Herético, o Corpo Vazio, a Aura das Profundezas e a Criomancia. Todos eles bonitinhos e arquivados como uma biblioteca. Agora que parei para pensar, a sua existência é potencialmente uma ameaça a toda ordem vigente desse mundo, ainda mais depois que os usuários de magia desse mundo entraram em declínio em troca das suas inovações tecnológicas.

    — Você sabe que não é sobre poder e sim como usá-lo — respondeu.

    — Meu querido, até um lápis em sua mão é uma arma!

    — Eu só quero recuperar o que perdi, apenas isso. Não quero ficar me envolvendo nos problemas daqui. Sabe o quanto uma família com recursos pode ferrar sua vida? Eu quero é paz, isso sim!

    — Se quisesse paz, não deveria ter pedido seus poderes de volta. Você naturalmente é uma luz na escuridão chamando todas as mariposas ao seu redor. De qualquer forma, tirando a Aura das Profundezas, eu recuperei uma pequena porção de todos os poderes que você tinha. Eles não são a mesma coisa, já que foram influenciados pelo meu Éter. Mas confio que você vai dar um jeito.

    Huan Shen ergueu uma sobrancelha.

    — Tantos presentes e nenhuma pegadinha? Acha que eu nasci ontem, fada?

    Um silêncio se estabeleceu entre ambos. Até que o reflexo começou a falar novamente.

    — Um deus morreu aqui tem mais de vinte mil anos, modificando sua fauna e sua flora. Se você conseguir absorver uma fração do poder desta terra, será o suficiente para mim.

    — Eu não tenho tempo para ficar brincando nesse lugar. Assim que amanhecer, vou pegar todo mundo sair daqui o mais rápido possível.

    De repente, a água começou a vibrar.

    — Claro, Grey. Acredite sim que você tem escolha e livre-arbítrio. Há um limite sobre o quanto as pessoas podem se enganar, mas parece que você ainda não conhece o seu. Como você acreditando que ela poderia te amar. Aproveite a noite.

    As vibrações na água se acalmaram, revelando seu verdadeiro reflexo mais uma vez. Seu rosto estava atônito, com uma mistura estranha de confusão e decepção. Ele olhou em seu relógio, percebendo que nada além de um segundo tinha se passado, mesmo após todo aquele tempo.

    — O que ele quis dizer com aquela última frase? Fada desgraçada…

    Huan Shen tocou mais uma vez na superfície da água gélida da Selva de Concreto, mas dessa vez mal conseguia sentir incômodo do quão frio ela estava. Sua mão apresentava um leve brilho azulado, permitindo os vasos sanguíneos que a compõem.

    — Bizarro, não importa o quanto eu observe.

    Ajeitando a própria mochila, o emissário retirou sua camisa e deitou sua cabeça no travesseiro improvisado. Dava para sentir a brisa fria da Selva de Concreto e o som contínuo do riacho próximo aos seus ouvidos. O que para muita gente seria uma tortura inigualável, para Huan Shen era a verdadeira paz. Porém, uma coisa não saía da sua cabeça:

    “Que merda era aquela que eu senti quando ativei os emissores?”

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