Capítulo 70 — Não Existe Meio-Termo
Kalira se sentou sobre a coluna partida, massageando seu ombro fraturado. As marcas das mãos de Samir ainda estavam sobre suas têmporas, onde sentia uma leve dor na região. Já fazia cerca de vinte minutos, desde que Samir entrou e pegou suas coisas, sumindo de uma vez por toda na Selva de Concreto. Em breve, ele estaria entrando na região onde os monstros habitavam livremente, ficando à própria sorte. Seria engraçado se acabasse sucumbindo para um deles, uma ironia do destino interessante.
“Hora de colocar um ponto final em tudo isso. Desde ontem, eu só tive dor de cabeça nesse lugar.”
A bruxa caminhou até os destroços da entrada, removendo o que podia com suas mãos. Sua sorte foi que o mercenário tinha aberto a maior parte, então não teve bastante dificuldade. Quando finalmente conseguiu entrar, deu uma boa olhada ao seu redor. Se já era triste ver o quão bagunçado o lugar tinha se tornado desde o momento em que os arqueólogos tinham entrado, era pior ainda ver tudo aquilo destruído. Os relevos, mosaicos, arquitetura, tudo não passava de destroços no chão.
— Esse é o legado que Malchi-Zarum terá a partir de agora — murmurou Kalira.
A bruxa seguiu para o segundo andar, onde não sofreu alterações com o impacto da explosão. Porém, algo chamou sua atenção: o líquido que ficava na câmara de batismo tinha diminuído consideravelmente. Era possível ver as marcas de fungos e musgo nas paredes, movendo-se erráticamente pela falta de água.
“O que aconteceu aqui?”
Só sobrou as catacumbas. A bruxa desceu a frágil escada de cordas, se deparando mais uma vez com aquele lugar escuro e mórbido. Porém, uma única fonte de luz dispersava a escuridão intensa do lugar: Sarisa.
A garota residia próxima a câmara onde foi despertada, sentada no chão e encarando suas próprias mãos. Mesmo a certa distância, era possível ver o quão exausta e ferida a garota estava. Os arredores também estavam parcialmente destruídos, mas não como se uma força avassaladora tivesse os esmagado, mas sim como se fossem corroídos pela ação do tempo ou algo parecido. Até os outros túmulos estavam devastados.
— Sarisa? — disse a bruxa, tentando chamar sua atenção.
A cabeça da jovem inclinou levemente para a esquerda, detectando sua presença. Com um simples aceno, ela voltou a encarar as próprias mãos. Kalira se aproximou rapidamente, colocando suas mãos em seus ombros.
— Está tudo bem, estou aqui. Você não tem mais que fazer isso.
O olhar cristalino da jovem era carregado de dúvida, confusão e remorso. Embora parecesse que ainda estivesse naquele transe agressivo, sua personalidade parecia estar como tinha sido condicionada para ser, da jovem meiga e pacífica. Era como se tivesse um confronto intenso dentro de sua cabeça sobre quem controlaria suas ações.
“Não posso deixar ela se perder…não desse jeito!”
Seus dedos repousaram nas têmporas de Sarisa, como se fossem agulhas de acupuntura. A bruxa respirou fundo, sincronizando sua respiração com a dela, como se fosse um único organismo conectado. Seu poder obscuro canalizou sua própria consciência dentro da jovem, similar com o que tinha feito com Huan Shen.
Tudo se tornou escuridão, então de repente, não era mais. Kalira residia na frente do templo de Malchi-Zarum mais uma vez, porém, não mais as ruínas que estava acostumada, mas sim a grandeza que constavam nos livros. Dezenas de pessoas, todas completamente abstratas e intangíveis, iam de um lado para o outro em suas atividades rotineiras. Algumas limpavam os arredores, outras proferiram cânticos em louvor ao deus patrono, enquanto algumas realizavam oferendas nos altares, trazendo desde trigo e frutas até cordeiros e lobos. Era possível observar um bom fluxo de visitantes e fiéis que chegavam para prestar suas homenagens.
“Não achava que seria possível ver a história antiga de forma tão vívida como essa…muitas das minhas irmãs pagariam caro para conseguir esse tipo de experiência, ainda mais nos dias de hoje.”
— Kalira? — proferiu uma voz familiar.
A bruxa virou para trás, se deparando com Sarisa. Ela era uma garota que estava entre seus quinze e dezesseis anos, com a pele bronzeada por causa dos trópicos e cabelos encaracolados na altura dos ombros. Seus olhos cor de oliva contrastavam com as sutis sardas que seu rosto apresentava. Seu vestido tinha um tom entre o bege e o branco, indo da parte superior do seu tornozelo até o ombro esquerdo, sem mangas. Havia um bordado esverdeado nas extremidades do tecido.
— Oi, Sarisa. Então é aqui que você está se escondendo? — respondeu a bruxa.
— E você está diferente também…por que nunca me contou que era uma bruxa?
Alguns segundos de silêncio pairaram sobre o ar.
— Tive medo que você não confiasse em mim. Minha aparência causa repulsa nas pessoas, meus poderes fazem com que elas sintam medo e me julguem por isso. Eu nunca pedi por nada disso! Eu só queria ter uma vida normal, mas agora não consigo fazer nada além de ser assim! Eu não queria que você me odiasse por sem quem eu sou, então tive que me disfarçar.
— Você não precisava! Eu te aceitaria do jeito que você é! — disse Sarisa, preocupada. — Eu só queria ter sido capaz de demonstrar isso melhor…só que eu vivo presa em meu passado, sem saber qual é o meu propósito correto…
A bruxa colocou as mãos no ombro dela mais uma vez, como se fosse uma irmã mais velha aconselhando sua irmã caçula.
— Sarisa, o destino agora pertence apenas a você. Os sacerdotes te deram um remédio chamado Pílula do Reflorescer Espiritual, uma fonte de poder mágico altíssimo que tem um fragmento do poder de Malchi-Zarum. Eles esperavam que você pudesse ser a esperança dos fiéis em um tempo em que a humanidade abandonaria suas religiões e seguiriam seu próprio destino. Você tem o poder de formar um exército de fiéis e protegê-los de futuras ameaças.
A garota pareceu confusa.
— E por que eles não fizeram isso naquele tempo? Por que colocaram essa responsabilidade em mim?
— Não era algo simples, Sarisa. Os druidas estavam sendo caçados extensivamente. Embora suas crenças não sejam necessariamente as mesmas do druidismo, algumas de suas práticas são. Eles não poderiam resistir a isso! Então, usaram o pílula que provavelmente passaram anos refinando em segredo e te deram, na esperança que quando você acordasse da sua hibernação na câmara, pudesse reconstruir o que havia sido destruído. Seus rituais, orações, cânticos, tudo está contigo agora.
— Mas o que impediria que viessem aqui e matassem todo mundo de novo? Eu não poderia protegê-los, assim do nada!
Kalira passou a mão nos cabelos da jovem, com um sorriso meigo.
— Por isso você pode criar essas pílulas rapidamente, pequena. Você pode compartilhar com seus fiéis um fragmento de Malchi-Zarum e transformá-los em poderosos defensores do templo. Os antigos sacerdotes trabalharam arduamente para garantir que você fosse capaz de revitalizar o templo e trazer uma nova era a Selva Perpétua. Você é a última herdeira de Malchi-Zarum.
Eram informações importantes demais na cabeça de uma pobre adolescente. Quanto mais Kalira enfatizava sua responsabilidade, mais Sarisa queria fugir.
— Eu não pedi por nada disso! Eu só queria viver em paz com minhas irmãs e ter minha vida como sacerdotisa. Agora, eu estou presa em um tempo que não me pertence e com um dever que ninguém me explicou direito! O que eu faço? Eu não sei, eu tô perdida! Me ajuda, por favor?
— Sarisa, você sabe sim o que fazer, mas o fato de estar tão presa no passado, impede que seu potencial seja plenamente revelado. Sua mente, no momento, está dividida em três instâncias: a sua personalidade antes de ser posta para hibernar, a natureza bruta e violenta da pílula, que parece um avalanche que destrói tudo pelo caminho e por último: o seu dever como sacerdotisa, que tem todo o conhecimento e sabedoria para você restaurar sua antiga glória. Você precisa acreditar em si mesma, unificando todos os três aspectos e se agarrando ao seu propósito. Senão, você vai ficar presa nesse ciclo eternamente.
Então, Sarisa se viu mais uma vez sozinha. Ela olhou para os lados, mas não encontrava Kalira em lugar nenhum. Apenas os fantasmas da época onde o templo era um lugar vivo. Sua jornada, a partir de agora, seria sozinha e estaria em seus ombros. Todas aquelas pessoas transitando, aquelas árvores vivas, a glória do templo, tudo aquilo era falso. Um construto da sua mente para mantê-la presa a um passado que não queria largar.
E o motivo de tudo isso? Medo. Medo do desconhecido, se entregar ao seu novo propósito, enfrentar suas próprias responsabilidades e ter que tomar decisões nada agradáveis. Ela era só uma garota de quinze anos, que não sabia nada sobre o mundo. E agora ela precisava se posicionar sobre ele.
Porém, ela sabia que não teria aquela idade para sempre e que fugir agora seria apenas adiar o inevitável. Teria que viver para sempre na sombra de Kalira? Conseguiria viver a fantasia de uma simples garota podendo ter surtos agressivos de poder? Desapontaria o legado dos seus irmãos e irmãs? Era muita coisa a se perder, tudo isso por um desejo egoísta pessoal.
Já estava na hora de acordar. Aos poucos, todo aquele cenário, relembrando os dias de ouro do templo, começou a desaparecer. Apenas o vazio permaneceu na sua mente, sem nada no horizonte. Nada além de duas versões de si mesma, encarando-a. Uma flutuava como uma figura divina, a outra segurava um vaso cheio de água pura. Ambas estavam transbordando em poder, como se exigissem um posicionamento da sua parte.
— Eu preciso ser mais do que isso — disse Sarisa. — Eu sou uma herança do amor das minhas irmãs, dos deveres do meu sacerdócio e do poder de Malchi-Zarum. Não posso abandonar tudo isso por um mero desejo. Eu irei caminhar esse percurso tortuoso, não ao lado de vocês, mas como uma pessoa só. Eu aceito a minha responsabilidade.
Então, as três Sarisas se unificaram em uma única persona, inundando a mente dela como uma enchente de conhecimento e revelação. Seus olhos se abriram no mundo real e seu corpo levitou, emitindo uma aura brilhante como um ser celestial. Kalira observava aquilo atentamente, percebendo que finalmente a Pílula do Reflorescer Espiritual tinha se unificado perfeitamente ao corpo da garota, atingindo seu poder máximo.
— Eu não estou mais sozinha, minhas irmãs. Eu encontrei uma pessoa que gosta de mim do jeito que eu sou! Podem descansar em paz, um novo dia nascerá para a glória de Malchi-Zarum! — disse Sarisa, com a consciência aliviada.
Pela primeira vez, a jovem sacerdotisa teve a sensação de ter seu corpo transbordando em poder. Era como se o mundo pela primeira vez estivesse totalmente ao seu alcance. E com as informações em sua mente sobre como gerir o templo e reformá-lo, não demoraria para erguê-lo novamente.
— Kalira! Eu consegui! Eu lembro de tudo! Eu posso finalmente alcançar o meu propósito!
A bruxa deu um sorriso terno.
— Fico feliz por você, de verdade — respondeu.
Tudo que aconteceu a seguir foi como um apagão na mente de Sarisa. A luz da sua magia se apagou brevemente e uma dor repentina a atingiu. Em um instante, Kalira estava a recebendo de braços abertos, no outro, a sua mão esquerda estava sobre seu ombro, enquanto sua mão direita atravessava seu peito, rompendo seus ossos e músculos.
A esperança se tornou horror.
O olhar compassivo da bruxa não existia mais, apenas um olhar seco e indiferente, como o de uma criatura que só almeja a sua recompensa. As mãos sutis da jovem tentaram tocar no braço dela, mas Kalira simplesmente aproximou seu rosto ao dela.
— Desculpe, pequena. Mas eu menti para você o tempo todo. A única coisa que me interessava era o seu poder…e eu acabei de consegui-lo.
Sem nenhum pingo de compaixão, a bruxa puxou seu braço do peito da jovem, arrancando o seu coração como se fosse uma peça na estante. O corpo sem vida da jovem começou a tremer e o fluxo de mana em seu corpo a ficar instável.
— Tenho que ser rápida ou senão tudo será em vão!
A bruxa arrastou o corpo de Sarisa e colocou dentro da câmara de hibernação, que era devidamente selada para não ter perdas de poder mágico. Usando a própria força, ela fechou a câmara e colocou as mãos ensanguentadas sobre a superfície.
O princípio para a criação de uma pílula era a união dos cinco elementos através de itens materiais mundanos na natureza. Como Sarisa tinha absorvido a pílula, ela já estava completamente dissolvida em seu corpo. Naturalmente, seria impossível recuperá-la em seu estado original. Porém, como sua energia estava em estado bruto no corpo da jovem, ela iria forjar uma outra pílula: uma que preservaria a maior parte do poder e usaria apenas o que estava ali dentro da câmara como fundação para ser construída.
Além da água ancestral, Kalira usaria o corpo da garota como ingrediente principal para obter seu poder. Canalizando sua magia obscura e seu conhecimento em alquimia, ela começou a infundir a câmara com seu poder, aumentando a temperatura da água e aumentando seu nível de acidez. Não era possível ver o que estava acontecendo ali dentro, mas isso não a impediria de continuar o seu trabalho.
Kalira arrancou um pedaço do coração em suas mãos, mastigando-o. Seria um dia longo, era ideal que comesse alguma coisa. Ela se sentou sobre a câmara e manteve suas mãos grudadas nela, canalizando sua magia e realizando alquimia em uma escala que nunca tinha feito antes.
Horas passaram. Seu corpo estava exausto e suado, sua quantidade de mana estava atingindo o ponto crítico e sua consciência oscilava. Então, não havia mais reação acontecendo. A câmara parecia estar vazia. Imediatamente, ela se levantou e empurrou, com dificuldade, a tampa da câmara. No meio de uma cama de pedra, um pequeno orbe translúcido flutuante residia, trazendo um pouco de luz dentro daquela catacumba escura.
“Ah, minha preciosa…”
A bruxa tomou a pílula em suas mãos, admirada com o quão linda e refinada ela era. Embora não tivesse a mesma potência da original, tinha conseguido preservar ao menos dois terços do seu poder. Essa quantidade já era boa o bastante para colocá-la frente às Arqui-Bruxas e as Mestras de Conventículo.
— Não posso dar chance ao azar…
Usando sua varinha, ela canalizou sua energia obscura através do seu corpo e apontou para a entrada da catacumba. As paredes no andar superior começaram a tremer, quebrando suas fundações e derrubando destroços por todo lado. Uma enorme parede despencou na única saída que tinha na zona das catacumbas, soterrada por outras centenas de quilogramas de tijolos e pedras. A partir daquele momento, Kalira estava sepultada.
“Ou eu cultivo e absorvo todo esse poder, ou então posso morrer na miséria aqui mesmo! Não existe meio termo. Não para mim.”
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