Índice de Capítulo

    Santa Marília é conhecida como a Fazenda Mãe do Santo Império. E esse título não é à toa. Suas terras férteis e localização estratégica ao sul e próximo aos trópicos produzem um clima favorável para a agropecuária, o principal setor comercial da cidade. Por dia, cerca de trezentas caravanas levam toneladas de insumos através do território imperial, enquanto outras trezentas se aventuram pelas longas estradas exportando comida para outros reinos.

    Embora não haja uma divisão oficial, popularmente existem dois tipos de pessoas que possuem as grandes terras férteis. O primeiro tipo são as famílias latifundiárias. Elas são conhecidas por possuírem centenas de funcionários, trabalhando dia e noite para manter a segurança, produção e qualidade das suas culturas, normalmente destinadas a outras cidades e reinos. O segundo tipo são os agricultores independentes, cujo trabalho é majoritariamente destinado ao mercado interno de Santa Marília.

    O Santo Império determinou que a divisão das terras férteis fosse metade destinada às quatro grandes famílias e a outra metade dividida entre as centenas de agricultores independentes, onde elas ficariam para seus descendentes e eles continuariam a cultivar o solo, mantendo o equilíbrio econômico da região. Essa era a principal tarefa do regente da cidade, atualmente Jacques Caraveche, da família latifundiária Caraveche. Porém, a realidade nunca era tão simples a ponto de caber em três parágrafos.

    Por algum motivo, as famílias latifundiárias tinham suas terras expandidas consideravelmente a cada ano, enquanto o preço local dos alimentos escalava em uma velocidade nem um pouco natural. E aparentemente, através do regente Jacques, o Santo Império estava completamente favorável a isso, pois era apenas a forma como o mercado naturalmente se ajustava. E não tinha muito o que fazer, pois a palavra do regente era basicamente a “palavra” do imperador.

    E é a partir daqui que nossa história começa. Não com uma explosão, uma batalha ou com um grito de guerra. Mas sim em um pequeno sítio.

    O sol matinal se escondia atrás de um punhado de nuvens solitárias no meio do céu, enquanto dois homens colhiam uma safra de tomate recém-maduros. Os cestos já estavam pela metade e seus rostos pareciam aliviados, pois a cotação diária já estava perto de ser batida. Mesmo que estivesse perto do horário do almoço, um deles pegou um dos tomates e deu uma mordida, provando sua suculência e sabor rico.

    — Sério isso? — questionou Sam, ajeitando o chapéu em sua cabeça.

    — Controle de qualidade, uai! — respondeu Thomas, limpando o canto da boca. — É bom saber se o produto que vamos colocar no mercado está em bom estado. E posso atestar que tá!

    — Você tem sorte que o Sr. Kushinov não liga para esse tipo de coisa. Queria ver se fosse em um dos territórios dos La Vie ou dos Bakir você fazer esse tipo de coisa!

    Thomas riu.

    — Também nem tem como fazer isso lá! Só vendem grãos e gado. Sabe, eu estou aqui há dois anos e nunca comprei sequer uma saca de trigo com os La Vie. Nunca os acho no mercadão ou em qualquer lugar.

    —É porque são caros demais para ter demanda aqui dentro. Ouvi dizer que os trigos de lá são regados com água encantada, por isso crescem mais rápido e são mais saborosos. Todas as sacas são seladas para não sofrerem nenhum tipo de contaminação. Eles até possuem uma autorização especial para não sofrerem vistorias antes de sair de Santa Marília.

    — Gente rica é outro nível. Enquanto isso eu estou tendo que pagar quinze cédulas em um prato feito na rua ateniense. E olha que lá é feito pra ralé como a gente.

    — Dezoito cédulas, meu caro — corrigiu Sam.

    — DEZOITO? Era quinze até o final de semana passado! Estão tentando nos assaltar na cara dura assim?

    — Repasse de preços. O quilo do tomate, esse mesmo que estamos pegando, teve um reajuste de duas cédulas porque a distribuição de água encanada teve reajuste de preço em Santa Marília. Não só isso, mas lembra do Velho Cid?

    — O que tem ele? Faz um tempinho que não vou na casa dele.

    — Vendeu as terras há mais ou menos dois meses. Depois que teve aquele incêndio na colheita de café e cana, teve que pegar empréstimo atrás de empréstimo para conseguir recuperar o prejuízo. Resultado: ficou com inadimplência até o talo e teve que vender tudo. Os Bakir assumiram a dívida, compraram a terra e agora toda aquela área é mais um lindo pasto para mais uns dois centos de gados.

    — Cara, não sabia disso! Ele deve ter ido morar com a filha em Bela Vista, né?

    — Sim, mas ele era um cara da roça que ganhava o próprio sustento e tinha os próprios empregados. Não vai se adaptar tão fácil na cidade. E pra piorar, ele era o único produtor de café e cana daqui. Os mercados estão tendo que comprar de outras cidades. A saca do grão tá quase dez cédulas mais cara que antes. Infelizmente, eles só estão tendo que repassar os preços.

    — É, meu amigo. Talvez não seja uma boa ideia permanecermos aqui por muito tempo. Podemos tentar achar alguma coisa em outra cidade, ou sei lá!

    — Nem, eu gosto do campo. Já tentou conseguir algum trabalho em uma das cidades controladas pelos Bladebourne ou os Hecathia? Exigem experiência até para varrer a rua. Sem contar que pisar no calo de um deles é pedir para sumir misteriosamente sem deixar nenhum vestígio no meio da noite. Eu tô em paz aqui.

    Thomas deu de ombros. Aquela conversa tinha sido tão densa que nem tinha percebido que seu cesto já estava cheio, finalizando sua cota diária de tomate. O relógio na parede do celeiro já indicava o meio-dia, finalizando seus tempos de trabalho para os Kushinov. No outro dia, às quatro da manhã, ambos estariam de pé prontos para começar novamente.

    — Mas e aí, o que achou do cara novo? — perguntou Thomas.

    — Meio caladão ele, não é? Pela cara parece um imigrante daquelas áreas lá do Palácio Congelado. Não vou mentir, aquelas tatuagens o fazem parecer alguém perigoso. Talvez um criminoso fugido?

    — Não acho que seja tudo isso, Sam. Ainda mais que ele tá acompanhado daquela garota que não sai da cola dele. Acho meio estranho, mas ela só parece esquisita mesmo. Não parece uma refém ou algo do tipo. Eles já estão conosco há cinco meses, mas a gente nem mesmo foi trocar algumas palavras.

    — Ele meio que me dá medo, sempre com aquela cara fechada. Até mesmo os milicianos o olham meio atravessado quando passam na rua.

    — Os milicianos olham atravessado para todo mundo, Sam. Vamos lá falar com ele, talvez ele seja gente boa!

    Do outro lado da fazenda…

    Lily estava tendo um dia intenso. Seus braços naturalmente claros já estavam com uma vermelhidão enorme. Só nos últimos cinco minutos, quatro formigas já morderam seus dedos. Sua pressão despencava a cada segundo e todo o seu torso tremia. Seu rosto avermelhado derramava gotas de suor no chão e a vontade de ceder era grande, mas sabia que seria bem pior caso fizesse.

    — Odeio…odeio esse treinamento estúpido! — disse ela, com certa dificuldade.

    Seu mentor, residia parado na sua frente, encarando-a com total impassividade e sem apresentar qualquer grau de distração. Aqueles olhos azuis pareciam penetrar na sua alma, como se fossem capazes de saber exatamente o que ela pensava.

    “Eu também odiava quando comecei a treinar dessa forma, não te julgo.”

    — Preciso te explicar o porquê isso é importante mais uma vez? — questionou Huan Shen.

    — Eu vou… poder sair dessa posição?

    Ele concordou com um simples aceno. Seus braços cederam, derrubando-a no chão. Embora fosse um treinamento árduo, escondia um pequeno orgulho em relação ao seu desempenho. Quando começou, não conseguia ficar de ponta-cabeça por mais do que dez segundos, mas conseguiu progredir a ponto de ficar até cinco minutos.

    — Você teve uma abertura tardia e inesperada dos seus meridianos. Toda vez que você canaliza a mana através do seu corpo, acaba causando dor. E isso acontece involuntariamente, pois a sua função é produzir e absorver a mana do ambiente. Quando se é criança, o fluxo de mana é baixo e você consegue se adaptar rapidamente, mas como você é quase uma adulta, o fluxo é bem maior e intenso, por isso seu corpo precisa estar devidamente em forma para atenuar os efeitos até você se adaptar.

    Embora quisesse protestar, sabia que não poderia competir com ele quando o assunto era magia.

    — Achei que os magos eram todos nerds que ficavam o dia todo lendo livros e usando cajados e varinhas para ficar soltando bolas de fogo ou fogos de artifício. Eu mesmo quando era criança, sonhava em ser uma feiticeira sexy que sai voando por aí em cima de uma vassoura com um gato preto falando comigo e usando aquele chapéu enorme pontudo.

    Huan Shen pensou um pouco, ponderando sobre a possibilidade.

    — Tem muita mentirada nos livros. A maioria dos magos precisam ter um condicionamento físico minimamente decente, senão a mana acaba te envenenando em vez de te ajudar. Claro que existem diversas formas de magia e do uso delas, como também suas disciplinas e métodos de aprendizado, mas o princípio geral costuma ser esse.

    — Entendi. E você disse que meu tipo é magia primitiva, correto? — questionou Lily.

    — Sim. A mana que você absorve e tem uma maior sintonização vem da natureza em si. Não da floresta ou de árvores, mas natureza selvagem em geral. Desertos, mares, nevascas, todos esses lugares são ricos em magia primitiva. Aqui, por exemplo, você consegue ter uma boa quantidade à sua disposição. Por isso resolvi parar aqui por um tempo, para garantir que você conseguisse entender e praticar os fundamentos.

    — E quando você vai me ensinar a conjurar feitiços? Quais você conhece?

    — Eu não posso te ensinar isso, Lily — respondeu assertivamente. — Eu não possuo conhecimento profundo em magia primitiva. Quando você estiver com seus pais novamente, não terá dificuldades de encontrar um tutor apropriado.

    — Affs! Queria que você me ensinasse! Nem mesmo uma magiazinha?

    — Se você conseguir realizar um ciclo de mana completo usando o que te ensinei e ainda conseguir manifestar, eu posso pensar em alguma coisa.

    Percebendo a oportunidade, a jovem sentou no chão e cruzou as pernas, fechando os olhos. Então, respirou profundamente, até encher os pulmões de ar e então o soltou devagar, expirando. Naquele momento, uma sensação familiar, mas estrangeira, começou a crescer em seu corpo. Causava um pouco de desconforto, porém não doía quando fez pela primeira vez. Coração, pulmão, fígado, espinha, cérebro, o centro das suas mãos, seus calcanhares. A sensação preenchia cada uma das partes do corpo, como a água preenche um vaso. Foi então que seus sentidos finalmente se expandiram pela primeira vez.

    Com os olhos fechados, ela conseguiu sentir a energia vital presente nas galinhas na granja ao sul do sítio, a presença e quantidade de sementes enterradas na parte norte, os peixes presentes no lago da fazenda ao lado e quais eram os cinco tipos de grãos guardados no bolso de Huan Shen.

    — Trigo, chia, arroz, quinoa e cevada! — disse a garota, orgulhosa.

    “Na verdade, eram sete. Você esqueceu do milho e centeio.”

    — Você está aprendendo rápido! Estou orgulhoso de você, Lily. Quando realizamos um ciclo completo de mana em nosso corpo, nos conectamos a parte invisível do nosso mundo e as forças que o regem. Quando compreendemos isso, podemos finalmente expressar através da magia.

    — Então você vai me ensinar uma magia agora? — perguntou Lily, curiosa.

    — Não. Antes disso, tenho que te perguntar: o que é magia?

    A garota franziu os olhos.

    — Pirlimpimpim? Não sei, aquela coisa que você faz com as mãos e brilha, ou balança o cajado e faz bolas de fogo cair. Pelo menos era assim que os livros descrevem os magos.

    “Esses livros de fantasia são um desperdício para a história da humanidade. Bom, mas considerando que fazem pouco mais de cem anos que a estrutura social decidiu que a tecnologia seria o maior foco de desenvolvimento, faz sentido que as novas gerações não saibam muito sobre isso.”

    — Magia é o produto final da mana quando você cria uma combinação específica: Mana, intenção, fórmula e ativação. Claro que existem dezenas de variáveis e nem toda magia precisa desses três elementos, mas a maioria delas sim. Você pensa no que quer fazer e canaliza a mana em seu corpo para isso. Então, você conjuga a fórmula para fazê-la se moldar e usa algo para ativá-la. Geralmente, é uma palavra.

    — Fórmula? Como uma fórmula matemática?

    — Mais ou menos, essas fórmulas podem ser escritas, mas só podem ser compreendidas e utilizadas usando nossos meridianos em um nível de consciência que alguém que está em nível espiritual do nosso ser. Entende?

    A garota gesticulou um perceptivo “não” com a sua cabeça.

    — É coisa demais para um dia só. Continue treinando a circulação de mana pelos meridianos, até se tornar algo tão natural como respirar.

    — Eu já não faço rápido o bastante? Consegui detectar bastante coisa nesse minuto que passei aqui.

    Huan Shen tirou duas sementes do bolso e colocou na palma da mão dela. Aquilo foi o suficiente para Lily perceber o quanto precisava se aprimorar.

    — Mas você pode sempre fazer melhor, não se esqueça. Inclusive, temos companhia.

    Lily franziu a testa, se perguntando quem poderia estar ali com eles. Quando inclinou sua cabeça, viu três pessoas indo até onde estavam. Eles estavam a quase cem metros, porém Huan Shen os detectou sem nem mesmo parecer ter usado mana. O nível de conhecimento e prática dos dois era imensurável.

    — Como você sabe tanto sobre isso? Acho que nunca te vi conjurando uma magia direito. E você nem parece tão velho, mesmo tendo vinte e três.

    “É porque eu não sou velho, pirralha!”

    — Vivência, eu acho. Já fiz um pouco disso, um pouco daquilo…

    — Será que finalmente vou poder conhecer o passado do homem misterioso que estou viajando a quase seis meses?

    Huan Shen riu.

    — Não.

    Antes que pudesse argumentar, os dois já estavam acompanhados por três figuras familiares. Dois homens na casa dos seus trinta, com feições duras por conta do esforço físico constante e um senhor na casa dos sessenta anos.

    — Pode chover, pode fazer sol, mas vocês dois sempre estarão debaixo da castanheira! — disse Lehman Kushinov, sorridente.

    O emissário acenou positivamente com a cabeça.

    — Sim, Sr. Kushinov.  Se eu não ficar no pé dessa garota, ela passa o dia inteiro em seus livros. Estou praticando um pouco das antigas Artes Místicas da Natureza com ela.

    — Vocês são magos? — questionou Thomas.

    — Sim — respondeu Huan Shen, assertivamente. — Muita gente por aí é também.

    — É que não vemos muito deles, Sr. Shen. Geralmente são pessoas com o tipo de vida agitadas demais para gente como a gente. Acredito que nunca fomos apresentados formalmente, eu sou Samuel e esse é o Thomas.

    Um cumprimento foi feito entre os dois. Mesmo que fosse alguém grande e forte, as mãos enormes do estrangeiro pareciam firmes, mas não opressivas.

    — Eu sou Huan Shen e essa é a minha “pupila”, Lilian. Prazer em conhecê-los formalmente, mesmo que já estejamos trabalhando juntos a quase seis meses.

    — Eu e o Thomas costumamos almoçar na Rua de Minerva quando terminamos o dia de trabalho aqui e, como você não deve conhecer muito os arredores, pensamos que poderia vir conosco. Podemos mostrar um pouco de Santa Marília, caso queira.

    “Ousado da sua parte admitir que não conheço esse lugar.”

    Huan Shen olhou para Lily, cujo olhos estavam implorando para ir conhecer um pouco a cidade. Embora não fosse seu pai ou responsável legal, ela sempre teve em alta estima as suas palavras.

    — Por que não? A gente se encontra na entrada do sítio em vinte minutos.

    — Certo então, marcado! — respondeu Thomas, com um sorriso. — Vou te mostrar onde vende o melhor macarrão daqui. Você não vai se arrepender.

    Os dois começaram a descer em direção a saída do sítio. Lily também se dirigiu em direção a casa principal, pois não queria ir para a rua toda suja de terra. Apenas Huan Shen e o dono do sítio permaneceram debaixo da árvore.

    — Então, Sr. Kushinov. Do que você precisa?

    — Já disse que pode me chamar de Lehman, filho. Você e a Lily são da casa para a gente. No mínimo, você me poupou bastante dinheiro com as reformas que fez aqui no sítio.

    O emissário esboçou um sorriso modesto.

    — Eu que agradeço por ter nos deixado ficar em sua casa. Sei que não são tempos fáceis, então espero que tenha conseguido retribuir uma parte da gentileza.

    — Você fez muito mais do que isso! Eu fiquei de coração partido quando você nos disse essa semana que iria nos deixar em breve, mas entendemos sua decisão — disse Lehman, com um pouco de tristeza na voz.

    “Lilian é uma garota jovem e com bastante potencial. Mesmo que essa vida pacífica seja algo que eu goste, não posso limitá-la a isso. Eu também tenho a obrigação de entregá-la aos seus pais.”

    — Então, mudando de assunto, você conseguiu dar uma conferida no que te pedi?

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