Capítulo 72 — O que alimenta Santa Marília
O emissário se agachou e enfiou sua mão enorme no solo macio, tirando um punhado de terra que caia vagarosamente pelos seus dedos. Lehman apertou os olhos, tentando entender o que Huan Shen queria dizer com aquilo.
— O solo está poroso, porém relativamente úmido. Consegue ver alguns buracos de minhoca aqui?
O senhor concordou com a cabeça.
— Isso indica que tem criaturas procurando detritos aqui para consumir, o que indica presença de matéria orgânica abundante por aqui.
Então, o emissário se agachou no solo e pegou uma das sementes em seu bolso, colocando-a dentro do buraco e preenchendo-a com terra.
— E então? — perguntou Lehman, como alguém que não entendeu muito bem onde o emissário queria chegar.
— Sua terra está bastante fértil, Lehman. Eu verifiquei o solo em diversas partes do sítio. Teve algumas variações, mas nada realmente impactante. Se levarmos em consideração o clima, a fase do mês e da lua, como a disposição da Mãe Terra…
— Você acredita em Mãe Terra? — perguntou o velho, curioso.
“Não é crença, é um fato, caralho! Sociedade ateia da porra essa, hein?”
— Seja como for, você terá uma colheita boa nos próximos meses, meu velho. Tomates, pepinos, cebolas, salsa e coentro. Todos irão crescer grandes, saudáveis e com boa qualidade. Até os animais do celeiro poderão comer bem, caso queira.
Embora essas notícias tenham a capacidade de alegrar o coração de qualquer fazendeiro, Lehman não pareceu muito feliz. Sua mente parecia divagar em pensamentos profundos, numa tentativa de colocá-los em ordem.
— Mas você tem certeza? Pode ser apenas uma questão temporária ou você olhou em um dos lugares em que apliquei fertilizante…
Huan Shen fez um pequeno gesto com as mãos. No mesmo lugar onde tinha pego o punhado de terra, um pequeno ramo de trigo começou a romper o solo. Lehman olhou para aquilo abismado, pois não costumava presenciar habilidades mágicas com tamanha proximidade.
“Graças ao coração de Heferus, consegui um bom meridiano para circular magia primitiva. Se alguém estudasse a quantidade de fontes de magia que meu corpo tem neste momento, seria bastante problemático. Ainda não criei nenhuma magia propriamente dita, mas consigo fazer pequenos truques como esse.”
— Tenho certeza sim. Mas porque isso não está te alegrando? Sua colheita está destinada a ser farta. Tá com problemas de demanda?
O senhor permaneceu alguns segundos em silêncio, como se estivesse ponderando algo. Foi então que a mente do emissário começou a trabalhar um pouco mais.
— Te fizeram alguma oferta, Lehman? — questionou Huan Shen, sem rodeios.
O velho respirou fundo, tentando recuperar a compostura.
— Não é nada demais, todo ano alguém me faz esse tipo de proposta. Ano passado, teve até mesmo um Shirokage por aqui interessado nessas terras, mas eles entenderam que esse lugar tem um valor sentimental para mim.
“Não me importo quando alguém esconde algo de mim, mas eu fico muito puto quando não fazem isso direito.”
— Por favor, não se preocupe com isso, jovem. Eram todas boas propostas, mas esse terreno era do meu avô, ficou para o meu pai e espero que um dia minha filha venha para cá e assuma esse lugar. Ou pelo menos, caso ela não queira, possa deixar para alguém que cuidará dessas terras com o tanto de amor que coloquei nos meus sessenta anos.
Aquelas palavras aqueciam o coração do emissário. Mesmo que não expressasse abertamente, sentia alegria em ver um homem tão apaixonado por um trabalho tão gratificante e recompensador. Duro e árduo, sem dúvidas, mas dignificante.
— Posso te pedir um favor? Sei que é hora do seu almoço, mas se pudesse acompanhar o Liam na venda dos produtos frescos, eu ficaria agradecido. Eu mesmo faria isso, mas eu preciso conversar algo importante com a Marilda que não pode esperar.
Huan Shen deu um sorriso e pôs a mão no ombro do velho, aceitando a tarefa silenciosamente. Estava realmente na hora de voltar a andar pela cidade.
Algum tempo depois…
Viajar com a carruagem a vapor era sempre uma experiência única. Um veículo largo com seis rodas, com quatro menores na parte frontal e duas maiores na parte de trás, por causa do peso. Abastecido com óleo de alcatrão e lenha, ele conseguia se mover tão rápido quanto uma carroça com dois cavalos jovens. Liam conduzia o veículo, através de um enorme e rígido volante. Na parte de trás, um enorme compartimento carregava dezenas de caixotes com frutas e leguminosas frescas.
Nos dois bancos frontais, Huan Shen olhava as ruas de Santa Marília como um falcão estuda o seu campo de caça. As casas não possuíam andar, costumavam ter apenas um telhado. Embora a maioria da população não fosse agricultora, cada residência tinha pelo menos um quintal com uma ou duas plantas. O fluxo de pessoas estava na direção da zona de habitação para o centro comercial, que era o seu destino.
Diferente das estradas de terra batida, o centro comercial era composto por paralelepípedos e cimento. As construções eram mais apertadas entre si, algumas com até dois andares. Corredores, becos e vielas eram bastante similares aos que costumavam ser encontradas em cidades maiores e mais urbanizadas. E como era por volta de meio-dia, estava cheio de gente. Pessoas saindo para o horário de almoço, crianças voltando dos centros educacionais gerais para suas casas.
Após uns trinta minutos, a carruagem parou atrás de um grande armazém, junto com vários outros agricultores com suas mercadorias. Alguns já negociavam com funcionários do armazém e tudo parecia ocorrer rapidamente, afinal esse tipo de transição era um procedimento constante e seguro.
“Tem alguma coisa estranha…”
Enquanto para a maioria das pessoas seria apenas um dia normal, o emissário conseguia detectar detalhes que normalmente passavam despercebidos. Alguns agricultores pareciam estar contendo o estresse, enquanto os funcionários do armazém tinham um semblante de preocupação. Era comum seus olhos captarem pessoas recontando cédulas uma ou duas vezes, além da presença de dois ou três policiais imperiais nas proximidades.
Como se isso não bastasse, alguns funcionários ocasionalmente olhavam para sua carruagem, alguns até mesmo diretamente para ele. Embora tentassem disfarçar, faziam um péssimo trabalho com isso. Liam parou o veículo.
— Normalmente eu só pego a grana e deixo eles pegarem o que tem aí atrás. Sempre pegam tudo mesmo — disse Liam.
Huan Shen ergueu uma sobrancelha.
— Acho que entendo o porquê nunca deixarem você fazer isso sozinho. Vai abrindo a traseira, vou ver se consigo desenrolar isso pra gente sair logo daqui.
O emissário abriu a porta do veículo e se ajeitou novamente, após passar trinta minutos sentado. Seu tamanho e físico chamavam a atenção das pessoas nas proximidades que não conseguiam deixar de dedicar um ou dois olhares para ele. Imediatamente, se aproximou de uma moça que não conseguia esconder o quão intimidada estava por aquela figura.
— Boa tarde. Você trabalha no armazém, certo? — perguntou ele, enquanto conferia casualmente os arredores.
— S-sim! C-como eu posso ajudá-lo, senhor? — respondeu, mantendo seu pescoço inclinado.
— Eu venho em nome dos Kushinov para negociar a colheita fresca. Temos tomates, cebolas, pepinos, o de costume. Quer dar uma olhada?
— B-bem…e-eu…n-não…
A sua dificuldade em falar era bastante suspeita, pois até alguns minutos atrás, ela parecia estar negociando tranquilamente com outros clientes. Então, um homem se aproximou dela e colocou sua mão em seu ombro.
— Eu assumo daqui, Maria. Vai lá ajudar as meninas na organização. Eu dou um jeito nesse daqui — disse, se referindo a Huan Shen.
“Espero que o bom senso atinja esse cara antes do meu punho.”
— Então, Kushinov está mandando seus servos agora para fazer seu serviço, pelo que parece? Bem! Ele já está meio velho mesmo, talvez isso aqui já esteja sendo demais para o coitado. Me diga o porquê dele não está aqui hoje?
Era uma prepotência tão grande para alguém tão pequeno.
— Talvez não seja da sua conta. Mas olha só! — respondeu Huan Shen, mostrando um cartão de papel com o carimbo de Lehman Kushinov. — Pense em mim como se fosse ele, só que maior em tudo, menos na paciência.
O homem também precisava inclinar seu pescoço consideravelmente para falar com Huan Shen. Embora fosse uns quinze anos mais velho que o mesmo, não tinha nem um pingo de postura para conversar de igual para igual com o mesmo.
— Você é bem ousado para um estrangeiro nessas terras, hein? Eu só preciso de um sinal e te chutam das portas de Santa Marília.
— Chama lá, vai! Então da prisão, eu chamo o arquivista para ele puxar os registros dos cidadãos imperiais. E quando acharem meu nome lá e tiverem que me libertar, eu venho atrás de você e faço uma incrível demonstração de como um homem de um e sessenta e cinco pode caber perfeitamente em um caixote de trinta por trinta — respondeu o emissário, calmamente. — Agora, me diga. Você quer fazer negócio ou não? Porque eu posso tentar a sorte direto nos seus clientes.
O homem deu um passo para trás. Claramente aquele não era um mero brutamontes, mas sim alguém perigoso. Porém, nem tudo ainda estava perdido.
— Tudo bem, vamos fazer negócios. Vou te pagar trinta por cada caixote, então sai do meu caminho que eu não tenho o dia todo.
— Você claramente não está me levando a sério. Há uma semana, o preço era cinquenta. Entendo uma flutuação de cinco para mais ou para menos, mas vinte? Isso é algum tipo de piada!
— E-escuta! Nós já temos estoque, tá bem? — respondeu, exasperado. — Eu tô te fazendo um favor pegando esses caixotes da sua mão! Deveria estar mais agradecido.
Huan Shen respirou fundo, enquanto circulava mana primitiva em seu corpo. Seus olhos azuis tiveram uma breve cintilação nas bordas da íris em um tom esverdeado.
— Não, vocês não têm. Não há um fazendeiro nas proximidades que vendam essas culturas nesse nível comercial que os Kushinov. Vocês não seriam malucos em importar esse tipo de insumo, levando em consideração as taxas de compra e frete que fariam o custo basicamente dobrar, então não me sacaneia.
Quando o emissário percebeu, todas as pessoas ao redor estavam prestando atenção naquela pequena discussão. Os policiais também já estavam interessados, com as mãos próximas dos seus coldres. Huan Shen recuou um passo e deu um sorriso cordial.
— Já que está insistindo tanto, eu faço quarenta e cinco para você — disse em voz alta, com intenção de fazer com que todos percebessem o que está acontecendo. — Somos parceiros comerciais a bastante tempo, tenho certeza que o Sr. Kushinov vai aceitar esse valor hoje, já que vocês não apresentariam propostas abaixo do preço de mercado.
O pobre funcionário estava encurralado. Seu plano era conseguir causar um prejuízo financeiro e moral forte ao Sr. Kushinov, devido a sua personalidade mais calma e razoável, mas por algum motivo, mandou um grandalhão pouco paciente para negociar. Por causa disso, a imagem do armazém poderia ficar bastante prejudicada com os outros agricultores locais.
— E-eu aceito por quarenta e cinco.
“Por que ele simplesmente fez esse absurdo financeiro do nada? Não faz sentido.”
Enquanto recebia as cédulas e o Liam ajudava na descarga, o emissário olhou seus arredores. Embora seus olhos não tivessem captado, a sensação familiar em suas costas permanecia.
Ele estava sendo observado.
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