Capítulo 73 — Um Sabor Agridoce
Huan Shen contou as cédulas recebidas naquele dia. Embora o armazém do mercadão de Santa Marília fosse o principal comprador dos Kushinov, não era o único cliente que tinham. Haviam dois mercados varejistas menores e três restaurantes familiares que compravam com certa frequência. E em todos os casos, ele viu um padrão:
Estavam oferecendo um valor abaixo do preço de costume.
As desculpas eram várias: demanda baixa, orçamento apertado, falta de interesse e estoque cheio. E para piorar, as primeiras ofertas eram pesadamente desagradáveis. Embora tenha conseguido negociar algumas reduções, a sensação ruim de que alguma coisa estava sendo coordenada com os Kushinov persistia como uma voz atrás da sua orelha.
— Cara, que dia cheio! Rodamos basicamente o centro comercial inteiro pra ainda sobrar três caixotes na carruagem.
— O dia hoje não parece bom para vendas — disse Huan Shen, entregando as cédulas arrecadadas naquele dia. — Eu vou ficar por aqui mesmo. Me faz um favor e entrega isso aqui direto na mão dele. Fala que se caso ele tente vender ao pessoal que está na entrada da fronteira da cidade, podemos ter o rendimento total do dia.
— Entendi! A gente se vê, então. Fica esperto aí pelas ruas, os policiais são até tranquilos, mas a milícia tem sido um pé no saco com quem é de fora. Depois que ocorreu uns crimes esquisitos aí há uns dois anos, o regente ficou com protocolo de tolerância zero. Sei que você é um cara tranquilo, mas seu tamanho pode acabar intimidando as pessoas erradas, então fica esperto.
Um sutil aceno com a cabeça foi dado, enquanto o Liam fazia o retorno e seguia com a carruagem em direção à fazenda. Por hora, tinha compromisso de estar em outro lugar.
A Rua de Minerva era um lugar bem peculiar. Bem mais apertado do que o centro comercial normalmente já era, os estabelecimentos basicamente se fundiam um ao outro. O cheiro do vapor e gás preenchia o ar, tornando impossível identificar o que estava sendo preparado nas cantinas. Naquele horário, uma quantidade considerável de trabalhadores do setor comercial estava almoçando e descansando naqueles bancos e redes.
— Ei, grandão! Aqui! — gritou alguém.
Seus olhos imediatamente se moveram na direção da voz familiar, encontrando quem procurava. Thomas, Sam e Lily o aguardavam, na frente de um pequeno restaurante cujas mesas estavam todas ao ar livre.
— Espero não ter chegado muito atrasado — disse ele.
— Que nada, você já nos deixou preparados. Foi bom que deu pra levar a Lily pra dar uma volta por outros lugares — respondeu Sam.
— Que bacana! Encontrou alguma coisa legal por aí, Lily?
Com muito mais orgulho do que deveria, ela abriu uma sacolinha e mostrou o que parecia ser um livro. O emissário o pegou e leu a capa.
“As Aventuras da Maga Lendária que Desafiou Deuses e Demônios…a juventude está completamente perdida.”
— Olha só…parece promissor! Espero que isso não distraia sua atenção em seu treinamento — respondeu, devolvendo o livro para ela.
— Podemos falar disso depois! Que tal irmos comer? Eu te prometi o melhor macarrão que você comeu na sua vida e eu sempre cumpro minhas promessas.
O território do Santo Império e seu povo foi constituído de diversos povos com etnias e culturas diversas. Com o passar do tempo, houve um natural processo de homogeneização e muitos aspectos da cultura comum se tornaram exóticas ou foram se perdendo. Mas aquele não era o caso do restaurante siciliano em que estava, pois um simples olhar nas fundações daquele estabelecimento, indicavam as décadas que passou alimentando os outros.
Uma mesa simples, quatro pessoas e mais um dia da semana. Embora preferisse comer dentro de casa junto com os Kashinov, sair um pouco para ter contato social não fazia mal. Também, era uma boa oportunidade para comer um pouco mais do que o normal.
Isso ficou refletido na hora em que os pratos foram servidos. Uma bandeja trouxe um prato de Pasta alla Norma para cada um dos três, mas um outro funcionário teve que trazer uma tigela de meio quilo para o emissário.
— Nem fodendo que você vai comer tudo isso! — disse Lily, horrorizada.
— Tem certeza que essa não é a reposição para caso queiramos repetir? — questionou Sam.
Uma tigela de macarrão rigatoni cozido ao molho de tomate, manjericão e beringelas fritas, acompanhado de um fio de azeite e ricota polvilhada. A única resposta que tiveram foi quando o emissário pegou o garfo e começou a devorar como se não houvesse amanhã.
— Acha que é fácil manter essa massa corporal? — respondeu, enquanto descia um copo de água garganta abaixo.
— Espera pelo menos o peixe chegar… — murmurou Thomas.
— Não se preocupem com isso, eu não como carne.
Todos os três piscaram incrédulos a tamanha afirmação. Lily, que estava a seis meses com ele, nem mesmo tinha achado estranho como ele parecia estar comendo uma barra de cereais a cada duas horas.
— Não come carne? — questionou Thomas, exasperado. — Nunca conheci uma pessoa na vida que resistisse a um bom filé em uma grelha em um final de semana.
— Agora você conhece — respondeu, enquanto reduzia o conteúdo da tigela pela metade.
Quando uma travessa de peixe assado regado ao suco de limão e acompanhado de batatas finalmente repousou sobre a mesa, todos da mesa finalmente começaram a comer. Huan Shen não era muito participativo nas conversas, que falavam especificamente sobre como outras cidades eram diferentes e sobre a vida privada de outras pessoas. Parecia que o ser-humano era naturalmente inclinado a fofocas.
Porém, sua mente não conseguia focar naqueles assuntos. Enquanto prestava atenção no fluxo de pessoas, podia sempre notar um policial ou dois realizando uma patrulha de rotina nas ruas. Eles eram facilmente identificados, por estar usando um conjunto composto por uma camisa de manga longa e calça azuis. A camisa tinha bordas prateadas e portava um emblema no peito, um escudo com a face de um leão, símbolo do Santo Império. Em sua cintura, havia uma pistola em um coldre e um cassetete do outro. Já tinham uns cem anos que espadas tinham sido retiradas do arsenal da polícia imperial.
O que era estranho para Huan Shen, era o fato de que havia outro grupo se comportando como policiais. Sim, ele já sabia que o regente tinha contratado um serviço privado paramilitar para dar suporte a polícia em situações extremas, como ataques estrangeiros de bandidos e saqueadores. A milícia, por sua vez, tinha permissão de andar portando um arsenal mais ostensivo. Usavam coletes resistentes, portavam rifles e muitos carregavam espadas, lanças e alguns até mesmo machados. No mínimo, uma faca de combate na cintura. Mas para uma força designada para casos especiais, eles pareciam estar presentes até demais na vivência cotidiana.
— Alô! Terra para Huan Shen! — provocou Lily.
O emissário piscou duas vezes e voltou sua atenção para a mesa.
— Desculpe…Sam, me tira uma dúvida — disse Huan Shen, abaixando um pouco o tom. — Esses milicianos andam por aí armados até os dentes, isso não causa nenhum problema com a polícia?
De repente, o clima ficou meio pesado na mesa.
— Até onde eu sei — disse Sam —, eles podem agir de forma independente para dar suporte aos policiais, devido a problemas de infraestrutura na delegacia daqui. Esse foi um acordo feito com os homens de Leonard Bakir.
— O filho dos Bakir? — perguntou Huan Shen, incrédulo.
Sam concordou com um aceno.
“Então em vez do regente destinar parte da renda arrecadada para modernizar a Polícia Imperial, ele prefere gastar dinheiro com uma fonte de poder militar paralelo e particular, que possivelmente só responde a ele…”
— Eu sei que os Caraveche e os Bakir são famílias importantes de Santa Marília tem bastante tempo, inclusive vivem fazendo negócios juntos. A lei imperial permite que esse tipo de acordo seja firmado?
“É claro que a porra da lei imperial não permite uma coisa dessas em cidades designadas do Santo Império. Apenas as cidades comandadas por uma das três grandes famílias juramentadas podem ter suas próprias forças privadas para conduzir seu território! Não é possível que os ministérios imperiais estão tranquilos deixando isso acontecer.”
— Eu não sei, não entendo de leis imperiais — respondeu Sam. — E cá entre nós, os milicianos são muito arrombados, isso sim. A maioria dos policiais são pessoas que nasceram e cresceram em Santa Marília, conhecem os problemas internos daqui. Só que os milicianos chegam de todo lugar, são em sua maioria mercenários tanto de dentro quanto de fora do Santo Império. Eles agem como se fossem seu dono, exigindo respostas que só existem em suas cabeças e tratando todo mundo feito merda.
— Gente, que papo deprê! — interrompeu Tom, trazendo quatro canecas cheias em sua mão. — Estamos com trabalho, estamos com dinheiro e estamos com pouco, mas estamos felizes. Isso é o que realmente importa!
— Exatamente! Vocês se preocupam demais! Gastar nossas energias com coisas negativas só vai nos fazer mal — complementou Lily.
Embora não estivesse familiarizado com esse conceito, Huan Shen resolveu relaxar um pouco e deixar todos terem um bom almoço. Foram quase duas horas de assuntos avulsos e fofocas, que não geraram o menor pingo de interesse no emissário. A partir de um momento, Tom já não conseguia formar uma sentença decente e Sam concordou que seria melhor levá-lo para casa antes que houvesse algum problema com os guardas.
— Para alguém tão sisudo como você, foi uma surpresa ter me deixado tomar umas taças de vinho mesmo ainda não tendo atingido a maioridade.
— Eu teria te deixado tomar cerveja, mas você só precisou de dois goles para quase vomitar.
— Não entendo como você bebe algo tão amargo e desagradável….ugh! Acho que tô tonta…e como você está bem mesmo bebendo cinco canecas cheias daquela?
O emissário deu um sorriso.
— Lembra da aula de hoje? Circule a mana em seu corpo.
A princípio, ela achou aquilo estranho, mas se sentou novamente no banco e fechou os olhos, usando o que aprendeu para absorver a mana do ambiente. Uma sensação fresca começou a invadir o seu corpo, aliviando a sua tontura e trazendo clareza em seus pensamentos não muito apropriados. Quando abriu os olhos novamente, Huan Shen já tinha acabado de limpar a mesa.
— E aí, se sente melhor? — perguntou.
A garota passou a mão na testa, sentindo o cheiro do suor misturado com álcool que saiu do seu corpo.
— Sim! Eu não sabia que era tão fácil assim se livrar dos efeitos do álcool. Deve ser ótimo poder beber tanto e não ficar bêbado.
“Ninguém bebe tanto para ficar sóbrio, garota.”
— De certa forma. Lilly, preciso que me escute. Eu vou ter que ir em alguns lugares aqui e resolver uns assuntos, coisas meio chatas. Consegue ir pra casa sozinha?
— Affs! Você nunca me leva pra conhecer essas “coisas meio chatas”. Eu não tenho treze anos, sabia? Você não sabe se eu vou achar isso chato. Vai que é divertido para mim?
— Eu ficaria bastante preocupado se você achasse divertido. Inclusive, você não estava ajudando a Sra. Kushinov com as atividades dela?
— É, mas eu faço isso todo dia!
— E ela está contando com isso, de certa forma. Nós não pagamos aluguel e nem somos funcionários, como o Sam e o Thomas. Estamos lá simplesmente pela bondade deles. Essa é nossa forma de demonstrar gratidão.
A garota ponderou naquelas palavras. Durante toda a sua vida, Lily cresceu com empregados e não tinha que se preocupar com nada além de ser uma simples garota da baixa nobreza da cidade de Vila Crux. Porém, nos últimos seis meses, a vida dela virou de cabeça para baixo. Quando se olhava no espelho, percebia que sem as futilidades e riquezas, não era nem um pouco diferente de uma garota da classe trabalhadora em qualquer cidade.
— Eu vou indo, então. Mas vê se traz alguma coisa boa quando chegar. Sei que você anda cheio da grana por aí.
— Quem anda te enchendo com mentiras? — questionou o emissário. — Vou pensar no seu caso.
Aos poucos, Sarisa começava a desaparecer no horizonte enquanto seguia seu rumo de casa. Ele ficava tranquilo em saber que, enquanto ela não se envolvesse em nenhuma confusão, poderia facilmente se passar por uma neta dos Kushinov e não ter problemas com os policiais.
“Hora de cuidar dos problemas maiores…”
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