Capítulo 74 — Um Vinho Mal-Envelhecido
Algumas ruas ao leste da Rua de Minerva, tinha uma região conhecida como Bairro de Baco. Recebeu esse nome por causa dos primeiros sicilianos que habitaram aquelas terras e a sua dedicação à cultura vinícola. Embora não tenha tantas plantações como antes, sua influência ainda permanecia nas ruas da cidade, através de algumas cantinas, enotecas e casas de “lazer”. Algo típico do deus Baco.
Naquelas ruas, ele começou a ver os primeiros sinais da baixa e alta nobreza pelas ruas. As lojas eram maiores e com um fluxo bem menor de pessoas, que estavam asseadas e bem despreocupadas. Alguns pareciam realizar trabalhos administrativos, outros aparentavam ser comerciantes, enquanto muitos claramente eram compradores. Alguns grupos de jovens rodeavam a praça, jogando conversa e tempo fora, pois eles tinham de sobra.
Embora tudo estivesse dentro do que o emissário esperava, algo fora do comum também acontecia naquele momento. A cerca de cem metros, dois milicianos o seguiam sem nenhum senso de cautela. Eles estavam no seu encalço desde que saiu da Rua de Minerva, mas não agiram porque não tinham base para fazer isso. Embora o Bairro de Baco fosse um pouco mais nobre, ele sabia que aqueles caras ainda não poderiam fazer nenhuma movimentação publicamente.
“Não gosto do quão próximo eles estão. Esses caras podem estragar todo o meu trabalho! Melhor lidar com isso de uma vez por todas.”
Seus olhos caíram direto em uma bancada na calçada. Seus pés imediatamente o guiaram para lá, se deparando com um senhor que estava vendendo bijuterias. Alguns pequenos bustos e mãos esculpidos em gesso, carregando alguns anéis e colares com pedras e gemas brilhantes.
O vendedor imediatamente olhou para o emissário e com as roupas simples que este utilizava. Inicialmente, pensou em rechaçá-lo educadamente, mas quando viu os milicianos se aproximando, percebeu que os mesmos fariam isso naturalmente.
— Senhor? — disse o vendedor, em um tom cordial. — Está perdido? Posso te ajudar com algo?
Huan Shen ficou alguns segundos em silêncio, olhando tudo o que estava no mostruário. Então, seu olhar pairou sobre o vendedor.
“Você tá fodido na minha mão, sacana!”
— Por que está vendendo sumalnita como se fosse rubi naquele conjunto de anéis? — questionou.
Aquelas palavras congelaram a espinha do mercador. Ninguém conseguia detectar a diferença de sumalnita para rubi apenas via olho nu, por isso tinha tanto sucesso com as suas falsificações. Aquilo tinha que ser um blefe.
— Você não sabe se-
— Não tente me enrolar. Rubis são cobiçados porque conseguem concentrar grandes quantidades de mana quando estão em repouso. E essa bijuteria na minha frente não tem um pingo sequer de energia, até porque não pode absorvê-la. É basicamente vidro lapidado.
O homem engoliu a seco.
— Acha que não te vi olhando os milicianos? Que tal fazermos o seguinte: você não ferra comigo e eu não exponho pra todo mundo a fraude que você é? Que tal?
— Por favor, eu só tô tentando-
Dois homens chegaram logo em seguida. Utilizando coletes pretos e com cada um portando um rifle de forma bastante ostensiva, seus olhos pairaram direto no homem grandão em sua frente. Huan Shen já tinha visto o primeiro próximo ao primeiro armazém que esteve. O outro era completamente novo.
— Boa tarde, senhores! — disse um deles. — Você, grandão. Eu não lembro da sua cara por aqui em Santa Marília. E pelos olhinhos puxados, tem cara de ser estrangeiro. Onde estão seus documentos? Passa pra cá que eu quero ver.
Embora os Shirokage não fossem novidade para o povo do Santo Império, eles eram uma das grandes famílias, então dificilmente teria um deles com essas roupas e trabalhando daquela forma em um lugar tão afastado do seu território. A melhor suposição que poderiam fazer era que ele pertencia ao Palácio Congelado ou vinha do Grande Oriente. Nenhuma delas estava correta, por sinal.
Huan Shen tinha documentos que provavam sua ligação com os Kushinov, como também tinha documentos provando que era residente nascido e criado do Santo Império. Mas ouvi desaforo não era algo que alguém do seu tamanho não poderia levar de qualquer um.
— Não — respondeu Huan Shen, calmamente.
— Como é que é? — questionou o miliciano, incrédulo com a resposta.
O vendedor engoliu seco. Ele pensou na possibilidade de tentar acusar aquele homem de alguma coisa para o removerem o mais rápido possível dali, mas seu instinto de preservação estava gritando mais alto para o mesmo permanecer em silêncio.
— Eu não tenho que entregar nenhum documento para vocês. Essa é uma cidade imperial, o que significa que as únicas pessoas que tem autoridade legal para exigir esse tipo de coisa é a Polícia Imperial ou um funcionário com cargo de ordem imperial. Se você não puder me mostrar um distintivo constatando sua ligação direta com o Santo Império, eu não te devo nada.
Algumas palavras foram o suficiente para fazê-lo atingir o limite da sua raiva. Ele pensou em destravar o rifle, porém armas de fogo em cidades tinham uma série de requisitos chatos para serem utilizados.
— Você vive no mundo da lua, imbecil? Nós trabalhamos diretamente para o regente, nós podemos fazer o que quisermos e quando quisermos! A polícia não vai me parar de te dar uma surra do cão por ser um arrombado com a língua solta. Acha que não sabemos o que você anda fazendo por aí? Intimidando os comerciantes, se metendo nos negócios dos outros?
— Trabalhar para o regente só diz que você é um cão treinado do regente, não um funcionário imperial. Legalmente, eu posso mandar você ir se foder, sair com meu pau na mão e você não poderia fazer nada em relação a isso. O único papel que vocês têm é de dar suporte a um policial ou agir em denúncia direta de algum civil, sendo que ambas as circunstâncias não são realidades aqui e agora.
O miliciano fechou o punho, prestes a desferir o primeiro golpe contra o emissário. Porém, seu colega segurou seu braço.
— Ei, você! — disse ele, se referindo ao vendedor. — Esse homem está te perturbando? É só falar que damos um jeito.
O vendedor olhou para os dois. Os milicianos que viviam para cima e para baixo agindo como rufiões na cidade ou um brutamontes que poderia parti-lo no meio com uma das mãos. Mesmo que eles conseguissem lidar com aquele cara e levá-lo para prisão, seu segredo seria exposto e danificaria sua reputação. Os riscos eram bem maiores.
— N-não. Ele não está me perturbando, senhor.
O miliciano olhou diretamente nos olhos do emissário, que o encaravam com uma frieza mortal. Vendo que não conseguiriam mais nada por ali, começaram a recuar.
— Não fique achando que acabou, espertão. Eu ficaria de olho nas ruas se fosse você.
Optando por não responder, o emissário acompanhou os dois homens se afastando aos poucos e sumindo pelas ruas de Santa Marília. Então, seus olhos pairaram novamente nas mercadorias do vendedor, especificamente no colar sobre o busto.
— Isso é alumínio banhado em ouro?
— Chega! Você vai comprar alguma coisa ou não? Já te ajudei, cara. Não atrapalha o meu negócio. Eu também tô tentando ganhar a vida.
“Enganando os outros? Bom, se bem que é a nobreza de Santa Marília, eles que se fodam.”
— Eu te dou cem cédulas nesse colar de “ouro” com um pingente de “rubi”.
— Custa seiscentos, senhor.
— Não testa minha paciência.
Os dois se encararam por alguns segundos em silêncio, até o vendedor ceder e estender sua mão. Era melhor um único negócio ruim do que nenhum negócio no final. No final, ele saiu com cem cédulas e Huan Shen saiu com um belo presente para a Lily.
Foram mais quinze minutos caminhando pelas ruas do Bairro do Baco, até chegar no que parecia ser uma loja de souvenires. Ao entrar, o cheiro imediato de madeira envernizada e desinfetante atingiram seu nariz. As prateleiras estavam cheias de decorações típicas da cidade, como pequenas estátuas entalhadas de madeira, garrafas de vinho transparentes preenchidas com solos de diversas cores, formando desenhos únicos, pinturas em vasos, pratos e canecas, bijuterias trançadas com cordas de milho e panos de prato.
Uma senhorinha, com seus sessenta anos e usando óculos de grau elevado residia sentada em uma cadeira de balanço próxima do balcão. Ao ver aquele homem adentrar seu estabelecimento, ela tentou se levantar para atendê-lo.
— Não precisa — interrompeu o emissário. — Eu não vim pelas suas mercadorias e sim pelos seus conselhos.
A mulher ergueu uma sobrancelha, questionando-se o que ele realmente queria dizer com aquilo. Huan Shen mudou a placa de “Aberto” para “Fechado” e passou a fechadura atrás da porta.
Debaixo da sua cadeira de balanço, entre as almofadas decorativas, tinha uma escopeta carregada e pronta para ser disparada com um simples gesto da sua mão. Em todos os vinte anos que gerenciou aquela loja, precisou utilizá-la quatro vezes. Não hesitaria em usar uma quinta vez.
O emissário pegou uma cadeira e sentou na frente da senhora, encarando-a em silêncio por uns bons segundos.
— Eu vim por informação, espero que possamos negociar alguma coisa.
Suas mãos, que estavam por baixo do cobertor em seu colo, alcançava o gatilho preso ao cano que mirava direto no peito do homem dentro da sua casa. Adicionalmente, ela tinha um apito em seu bolso que era alto o bastante para chamar a atenção de qualquer um a trezentos metros ao redor.
— Não sei que tipo de informação você possa conseguir comigo, jovem.
Huan Shen coçou a cabeça.
— Senhora, eu não vim aqui porque eu achei sua loja bonita, embora ela seja. Sabe como é difícil conseguir informações por aqui quando você não tem contatos? Foram seis meses, captando informações soltas, formando padrões e realizando um mapeamento estratégico, até chegar aqui. Natalia Volkov, ex-investigadora imperial de Santa Marília.
A senhora deu de ombros.
— Você acertou na parte do “ex”, meu jovem. Como pode ver, a única que investigo atualmente é a quantidade de clientes que posso estar perdendo com a minha loja fechada.
— Você é uma ex-funcionária imperial, ainda por cima da esfera militar. O que você ganha de pensão já deve ser o bastante para você passar o fim dos seus dias em paz.
A senhora respirou fundo. Seu dedo estava prestes a puxar o gatilho.
— Algo me diz que a senhora ainda é alguém que tem acesso a um grande fluxo de informações. E nem é por causa dos policiais que sempre estão passando ocasionalmente por aqui, ou por ter um ditado popular nas ruas dizendo que a “Mama Volkov tem o comprovante de residência de onde Judas perdeu as botas”, ou por ter um quadro seu junto aos regentes das gestões anteriores no prédio administrativo imperial, mas sim porque você não concorda até hoje em como foi forçada a entrar na aposentadoria.
— Já chega!
Natalia puxou o gatilho.
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