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    — Você não achou mesmo que eu não percebi o enorme cano que está debaixo das suas pernas, né? — questionou Huan Shen.

    Natalia, indignada, tentou puxar o gatilho mais uma vez. Porém, o gatilho estava desagradavelmente rígido, como se algo estivesse emperrando os mecanismos da arma. Seus olhos pairaram sobre o emissário mais uma vez, incertos sobre como deveria prosseguir naquela situação. Felizmente, seus recursos não se limitavam àquela espingarda.

    — Ah, e não tente usar o revólver que está atrás do seu travesseiro. Você não vai puxar o gatilho tão rápido quanto imagina.

    — Isso é um desafio?

    — É um conselho…escuta! Por que você tá sendo tão resistente assim, hein? Eu vim aqui querendo um conselho profissional e você quase atirou em mim-

    No meio das suas palavras, a senhora mostrou que seus anos na Polícia Imperial não foram à toa. Sua mão direita rapidamente puxou o revólver, moveu a trava de segurança e apertou o gatilho. Tudo em um intervalo de um segundo e meio. Muitos atiradores trinta anos mais jovens não possuíam metade do raciocínio e destreza que ela tinha.

    Para sua infelicidade, Huan Shen tinha bem mais.

    Antes do cano sequer se alinhar na direção do seu rosto, sua mão enorme segurou a dela com firmeza, impedindo que movesse um único centímetro. Então, cristais congelados começaram a se formar em sua pele, rapidamente alcançando o revólver e congelando o tambor e a pólvora interna completamente.

    — Deuses! Você é um mago? — questionou ela, exasperada.

    O emissário removeu a arma da sua mão, não só para desarmá-la, mas sim para evitar que suas mãos fossem afetadas pelo frio extremo.

    — Dá pra dizer que sim. E então, podemos finalmente conversar? Antes mesmo que você pense em gritar ou fazer qualquer outra merda, eu posso também dar meia-volta e sair por aquela porta, é só você pedir — disse Huan Shen, esvaziando o tambor. — Ou forasteiros não tem esse direito?

    Natalia levantou da cadeira, removendo o cobertor do seu colo e o enorme aparato sustentando a espingarda debaixo da cadeira.

    — Não venha com suas lacradas para cima de mim, garoto. Eu estava desmontando operações inteiras de escravidão moderna da mão de obra estrangeira nessa cidade enquanto você ainda andava de fraldas — disse ela, enquanto olhava a quantidade de neve presa na parte interna da sua espingarda. — Você estragou uma bela peça de colecionador, então é bom que tenha trazido algo que preste para mim.

    Huan Shen recostou na cadeira.

    — Há alguns meses, eu estava em uma operação de resgate na Selva de Concreto. Lugarzinho bem ruim, pra ser sincero. Durante minhas atividades, acabei entrando em confronto com alguns associados de uma organização maior.

    A investigadora particular o encarou cuidadosamente.

    — De qual região você é, meu jovem?

    “Não entendi o que isso tem a ver com o que eu disse.”

    — Você costuma sair perguntando aos seus clientes informações pessoais deles? Ainda mais quando isso não tem a menor relevância para a situação?

    — Então — disse ela, ajeitando os óculos —, eu faço isso simplesmente porque estou apodrecendo a cada dia e eu fico entediada. Não preciso do seu dinheiro, garoto. Eu quero entretenimento.

    O arrependimento começava a dar os primeiros sinais para o emissário, mas ele resolveu seguir com a brincadeira.

    — Tudo bem, então. Você não era tão boa assim na sua época? Por que não tenta descobrir?

    Natalia ficou alguns segundos em silêncio enquanto o encarava, até que resolveu começar a falar.

    — Normalmente, eu diria que você é um nativo de Jujak, mas você não possui sotaque do povo Yayoi, nem dos Huaxianos, nem dos Joseonitas ou dos Filhos de Khan. Sua pele é mais clara que o pessoal mais ao sul de Jujak, então presumo que você não seja daquela área também. O que sobra é o Palácio Congelado. Porém, eu já estive lá umas duas vezes na minha vida e eles costumam respeitar os mais velhos, algo que você claramente não sabe nada sobre, então apenas sobra as terras do Santo Império.

    “Não existiu um pingo de evidência empírica no seu método de avaliação além de ‘eu acho’, o que é preocupante.”

    — Você também não parece alguém dos Shirokage ou então um descendente dos colonos de Yayoi…sinceramente, você é uma incógnita para mim. Por que não me responde essa pergunta?

    — Não — respondeu sucintamente. — Mas sabe algo que pode responder a minha pergunta?

    Huan Shen tirou do seu bolso um pedaço de papel, que encontrou no meio das coisas deixadas no acampamento de Hinoka e seus homens, e entregou para Natalia.

    — Alguém já disse que você é chato?

    — Sim, e com muita frequência.

    “Esteja fora da Selva de Concreto no dia 23. Importância extrema! – M”. Isso não diz muita coisa sobre nada. Não tem mais nada que consiga dizer?

    — Deixa eu ver…eles estavam traficando uma quantidade considerável de armas de fogo, equipamentos mágicos, alguns cidadãos imperiais também. Eles não tinham experiência em navegar pela Selva de Concreto, mas tinham uma rota bem definida, que saía de Santa Marília e levava até as terras do sul. Aquelas pessoas não eram combatentes de alto nível, mas eram organizados e com um planejamento claro, com uma liderança “decente”. Ah, e a liderança tinha uma tatuagem na mão, uma pequena palma escura-

    — A MÃO SOMBRIA! — disse Natália, exasperada.

    “Esse foi o melhor que conseguiram pensar?”

    — Isso já é um norte. Agora, você não espera que eu saia perguntando por aí quem conhece uma tal de “Mão Sombria”, né?

    A mulher semicerrou os olhos.

    — O que aconteceu com aquelas pessoas que você encontrou na Selva de Concreto? Entrou em conflito com elas? As observou nas sombras?

    — Então, eles eram a minha tarefa. E eu estou bem aqui, na sua frente.

    Natalia soltou um soturno “ah”, entendendo o significado daquelas palavras. Aquele homem parecia ser perigoso. E talvez fosse exatamente isso do que ela precisava.

    A mulher se dirigiu para trás do balcão. O emissário manteve-se atento, caso ela resolvesse sacar outra arma. Felizmente, ela abriu o assoalho e retirou algumas pastas velhas de lá.

    — Os deuses devem ter te mandado direto para mim! Venha, tenho algo pra te mostrar.

    “Eu só queria comprar algumas informações, mas se ela está nesse ponto de confiar em mim, deve realmente estar desesperada.”

    O emissário se dirigiu ao balcão, que estava repleto de papéis por cima. Alguns deles tinham retratos falados e desgastados, alguns tinham vários carimbos imperiais e outros pareciam ser registros comerciais. Era o tipo de coisa que poderia ser problemático ao ser encontrado na casa de um civil.

    — Isso foi há dois anos atrás. Uma procuração oficial de Primeira Estrela, relatando o desaparecimento de três empregados da família Silmar. Todos com boa conduta e nenhum registro judicial. Seis meses depois, mais um caso de desaparecimento misterioso, só que na província de Casa Grande. Uma mulher recém-divorciada, vinte e sete anos de idade. O ex-marido foi o principal suspeito, mas não houve nenhuma prova contra o mesmo. Isso se repete em mais de dez casos ao longo dos últimos seis anos. E isso é o que foi registrado!

    — Ok, é suspeito, mas teoricamente ainda são casos isolados. Em cidades diferentes, inclusive.

    — Esse não é o único problema, jovem. Não houve solicitação de resgate, nem corpos encontrados. E depois de dois meses, todas as solicitações de procura são removidas e os documentos arquivados. Esse padrão se repete em todas as províncias! Alguém está agindo ativamente para fazer com que esses desaparecimentos permaneçam ocultos.

    — Quais seriam os registros mais recentes?

    — Um ex-detetive imperial, como eu. Teve também uma mulher, esposa de uma família nobre de baixo escalão em Vila Crux. Me lembro de uma jovem de Casa Grande, que sumiu na mesma época. Essas foram as últimas denúncias realizadas, mas todas já saíram de circulação.

    “Parece que o avô da Lily não prestou uma denúncia formal. Inclusive, foi bom ter deixado a Lavignia de tocaia, a Mão Sombria parece ter bem mais poder e influência do que eu esperava.”

    — Tem que ter algum padrão entre essas pessoas, não é possível que o critério seja meramente aleatório. Nenhuma dessas pessoas é uma das grandes famílias, correto?

    — Impossível. Mesmo a Mão Sombria tendo costas quentes, não teria força para suportar alguma delas os perseguindo. E se elas estiverem envolvidas de alguma forma? Como uma forma de eliminar rivais e figuras que considerem desagradáveis?

    O emissário começou a ponderar.

    — Se um Bladebourne não gosta de alguém, ele vai até a casa da pessoa e enfia uma espada em seu abdômen. Quem vai questionar um daqueles bárbaros? Se quiserem ser cruéis, aumentam as tarifas e a estrangulam financeiramente e moralmente até a pessoa sair sem nenhum tostão. O poder deles já beira ao absoluto, o que a Mão Sombria tem é um poder flexível. Outro tipo de violência.

    — Eu queria estar em campo investigando isso, até pensei em passar isso para minha filha, mas não sei se quero ela envolvida em algo tão perigoso.

    — E não precisa estar. Eu só quero um norte, alguém que posso começar a perguntar ou investigar.

    Natália fechou uma das pastas e encarou o emissário diretamente em seus olhos azuis cristalinos.

    — O que move você a ir atrás da Mão Sombria? Por que não entregou esse caso a Polícia Imperial?

    O emissário colocou suas enormes mãos em cima do balcão, olhando cada um dos papéis em cima da mesa.

    — Eu encontrei essas três pessoas que sumiram recentemente. Todas estavam em condições muito ruins, tratados feito animais desprezados e aguardando por um destino horrendo. Mesmo tento as resgatado, não consegui evitar que morressem. Elas não tinham que estar em um lugar tão ruim, não fizeram nada para merecer algo assim. Só a ideia de ter outra pessoa passando por algo assim, me deixa com raiva. Não vou deixar essa gente escapar só por causa do poder que exercem. Vou chutar as suas portas e fazê-las encontrarem seus destinos.

    Aquelas palavras causaram um alívio no coração de Natália. Pelos últimos cinco anos, desejou fortemente alguém que escutasse seus apelos e fizessem alguma coisa para agirem em relação a isso. O chefe de polícia a desprezou, enquanto o regente ria dizendo que era um devaneio de uma velha. Mas ela sabia, desde o dia em que sua aposentadoria foi submetida contra sua vontade, que havia uma força maligna atuando ativamente nas estruturas sociais do Santo Império e que se esforçariam para calá-la.

    Mas então esse jovem surgiu pela sua porta. Olhar decidido, fala comedida, tendo a força de dez homens e um coração bem-intencionado. Talvez ele pudesse ser a chama acesa da justiça pelos que não poderiam se defender, ou melhor, o frio que apaga o incêndio que destrói a esperança.

    — Eu acho que sei por onde você pode começar.

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