Capítulo 79 — Fortalecendo as Raízes
O dia tinha sido longo e problemático, mas finalmente tinha acabado. Da janela do seu quarto emprestado, Huan Shen olhava toda a extensão do sítio através das lamparinas a óleo que instalou ao longo do terreno, garantindo que toda a região ficasse iluminada mesmo com a escuridão noturna.
“Esse silêncio, tranquilidade e paz são tudo que um homem precisa.”
Seu quarto também era bem simples. Uma cama de solteiro ao lado da janela, um armário e uma escrivaninha. Era um quarto de hóspedes, mas para alguém que não tinha intenção de se estabelecer em nenhum lugar, era perfeito. Sua mochila, jogada no canto do armário, estava acumulando teias de aranha. Suas roupas eram emprestadas do Lehman, o que ficava bem explícito no quanto ficavam justas nele.
— Eu bem que poderia comprar uma camisa ou outra de vez em quando.
O emissário saiu do seu quarto, se dirigindo ao cômodo do lado. Gentilmente, bateu na porta.
— Quem é? — respondeu alguém.
— Sou eu. Tá ocupada?
Lily abriu a porta, se deparando com o emissário em todo o seu esplendor de um metro e noventa. Mesmo que estivesse a quatro meses nessa rotina, não tinha se acostumado a se deparar com um gigante toda vez que virava a esquina.
— Ah, você! Pode entrar, quero te mostrar uma coisa.
Surpreso, o emissário adentrou o quarto da jovem. Não era muito diferente do seu, mas a quantidade de livros sob a escrivaninha e na parte de cima do armário eram bastante perceptíveis.
“Onde eles encontram tempo para ler tanto?”
— Eu espero muito que não seja o novo livro da saga “Me Apaixonei Pelo Meu Sequestrador Lobisomem na Montanha dos Incas”. Já disse que esse tipo de coisa não é saudável.
— Relaxe, o sexto livro só vai sair ano que vem. É outra coisa que quero te mostrar.
A garota foi até a janela e pegou um pequeno vaso com terra nas mãos. Ela o trouxe até o emissário.
— Sabe o que é isso? — perguntou.
Huan Shen ergueu uma sobrancelha.
— Uma semente de feijão em um vaso?
A garota concordou com a cabeça. Então, ela fechou os olhos e respirou fundo, enquanto mantinha o recipiente em suas duas mãos. Huan Shen imediatamente percebeu o fluxo de energia primitiva que ela absorvia do ar, conseguindo alcançar até mesmo o solo, mesmo estando no primeiro andar. Pequenas partículas verdes cintilantes se acumulavam no vaso, penetrando o solo ali presente.
“Parece que ela está pegando o jeito.”
A garota abriu os olhos novamente. Seus dedos começaram a mexer na terra, procurando o que tinha plantado. Quando a alcançou, o resultado da sua circulação de mana tinha ficado bem evidente: a semente germinou, gerando uma singela radícula.
— Nossa! Parece que alguém andou treinando essa tarde — disse o emissário, claramente orgulhoso.
— Eu espero chegar ao nível em que eu consiga fazer uma árvore crescer totalmente apenas usando a circulação de mana.
— Detesto quebrar sua vibe, mas isso não será possível. Os melhores usuários de magia primitiva eram os arquidruidas incas, eles conseguiam fazer plantações inteiras atingirem o ponto de maturidade apenas circulando sua energia. Inclusive, os arquidruidas foram os principais responsáveis pela derrota dos ibéricos quando tentaram estabelecer seus assentamentos naquelas terras. Foram os primeiros registros catalogados de um arquidruida.
— Não foi assim que eu aprendi na escola! Quando os ibéricos tentaram estabelecer a civilização naquelas terras, tiveram piedade do povo de lá e da sua selvageria que preferiram deixá-los só com seus estilos de vida.
— Tiveram piedade sim, depois que 50% dos soldados morreram das formas mais desagradáveis já vistas pela humanidade enquanto desbravavam as florestas úmidas daquele continente. Levaram um contingente de dez magos, três morreram de malária. Os ibéricos saíram com o rabo entre as pernas e não se atreveram mais a colocar os pés lá.
— Não é isso que as escolas dizem.
— Quem diria que o Santo Império, cuja linhagem imperial é ibérica, assim como 25% do seu povo, não gosta de contar uma das maiores vergonhas do seu povo? Deixa-me te contar uma coisa, senhorita. Só o Santo Império conta a história dessa forma. No Palácio Congelado, nas nações de Kallantú, Aseriah e nas Ilhas Jujak contam do jeito que acabei de te dizer.
A garota frisou os olhos e cruzou os braços, se questionando duramente se poderia confiar na palavra do emissário.
— Seja como for, os arquidruidas não existem no continente de Grandeossa. Nem druidas, fizeram questão de exterminar todos. Mas eles eram capazes de movimentar mana o suficiente para dobrar a natureza as suas vontades. Isso sem nem conjurar uma magia. Esse é o poder da energia primitiva.
— Então como eu vou saber o quão boa é a minha circulação de mana?
O emissário pensou um pouco.
— Deixa eu ver…já sei! Quando cheguei hoje, vi que a Sra. Kushinov estava realizando alguns enxertos na pequena horta na frente da casa. Acho que eram tomates-cereja. Se você conseguir me dizer quantos tem lá, eu posso dar uma opinião profissional.
Animada, Lily fechou os olhos para se concentrar. Estava na hora de colocar tudo que aprendeu em prática.
— O que você tá fazendo? — questionou Huan Shen, com os braços cruzados.
— Ué, você não pediu pra ver quantos enxertos tem na frente de casa?
— Lily, entendo que fechar os olhos te ajuda a concentrar a circular a mana, mas para você atingir seu verdadeiro potencial como uma maga, esse tipo de atividade deve ser realizada em seu subconsciente e de forma passiva. A mana agora é uma parte integral do seu corpo e deve ser tão natural quanto respirar. Você fecha os olhos e se concentra para respirar?
— Não.
— É o mesmo princípio para a circulação de mana. Apenas tente sentir o fluxo dela em você, compreenda como parte fundamental do seu “eu” e o resto acontecerá.
Lily estava um pouco indecisa, mas ainda assim resolveu acreditar nas palavras do seu mentor. A garota respirou fundo, enquanto permitia a mana fluir em seu corpo. Era uma sensação diferente, pois era similar ao momento em que ela fechava os olhos para se concentrar, mas não tomava conta de toda sua consciência, existia apenas lá no fundo, como uma memória atrás dos seus olhos.
— Há vinte enxertos de tomate-cereja plantados — disse ela, com confiança.
— Vinte e dois, sendo exato — respondeu o emissário, com um sorriso.
— Affs! — suspirou a jovem, desanimada. — Como eu posso estar tão atrasada tendo treinado tanto?
Huan Shen ergueu uma sobrancelha.
— Quem disse que você está atrasada?
— Ué — respondeu, confusa. — Eu errei na quantidade final, não foi?
— Lily, quando nossos meridianos são abertos na infância, mais ou menos na faixa dos dois ou três anos de idade, só aprendemos a circular mana corretamente na faixa dos oito anos de idade. E precisamos de mais uns três a quatro anos para estabilizá-lo corretamente para sermos capazes de conjurar uma magia apropriadamente. Quanto mais demoramos para sermos iniciados na magia, maior é o tempo em que precisamos aprender todas essas etapas, pois os órgãos que ficam nossos meridianos já acumularam impurezas.
— E-eu não tô entendendo…
— Você encurtou uma etapa de quatro anos em quatro meses, Lily. Seja lá o que a Colonizadora tenha feito, abriu todos os seus meridianos, os purificou e os amplificou. Seu crescimento está fora do normal, por isso eu não posso mais ensinar nada a você. Tudo que eu poderia te ensinar, você já aprendeu. Você é uma boa aluna.
Aquelas informações pareciam complexas demais para a Lily compreender. Embora jurasse que toda vez que seu mentor a fazia ficar de cabeça para baixo era uma forma punição, ou criticava seus livros parecia um jeito de humilhá-la, no final ele se orgulhava dela como uma aluna.
— E-eu não sei o que dizer!
— Não precisa dizer nada, apenas desça e-
Mesmo que possuísse reflexos muito acima do limite humano, não conseguiu evitar ser pego de surpresa pela garota quando a mesma o envolveu em seus braços. Aquilo era estranho para ele, pois ela estava genuinamente feliz com o que tinha aprendido. Desde que perdeu a Xue Lan há quase dois anos, passou todo o seu tempo dedicado ao frio congelante que habitava o seu corpo, esquecendo completamente do calor de outra pessoa.
“É legal, ter um pouco disso de vez em quando…”
— Tem torta de chocolate lá embaixo, sua favorita. Porque não chama a Srta. Kushinov e comem juntas? Eu desço daqui a pouco.
A garota acenou e foi em direção às escadas. A sensação de dever cumprido preenchia seu peito, como não sentia fazia bastante tempo. Infelizmente, essa sensação não durou muito. Lehman chegou na entrada do quarto com um sorriso, mas um claro semblante tenso.
— Com licença, Sr. Shen! Você está muito ocupado?
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