Capítulo 80 — Negociando a Colheita (Parte 1)
A sala de estar dos Kushinov era confortavelmente acolhedora. Uma pequena mesa de madeira, sobre um tapete denso bordado próximo a uma lareira de tijolos. As janelas eram grandes, com bordas de madeira e um vidro límpido. Sem nenhuma grade de proteção. O papel de parede bege ressaltava as lâmpadas brancas sobre o teto, causando uma sensação de conforto e tranquilidade. Na parede, dezenas de quadros de todos os tamanhos rastreando a árvore genealógica da família. Algumas tão antigas que chegavam nos ancestrais siberianos de Tzerenmir.
Mesmo quatro meses não sendo muito tempo, Lehman Kushinov tinha Huan Shen em alta estima. Embora tenha sido estranho um homem acompanhado de uma garota solicitar asilo em troca de serviços mágicos, que inclusive costumam ser caros, a determinação e disposição ao trabalho que o estrangeiro demonstrou todo dia o fizeram respeitá-lo profundamente.
Huan Shen, por sua vez, sabia que teria que abandonar aquela vida muito em breve. Se tudo tivesse ocorrido apropriadamente na Selva de Concreto, Lily já estaria com seus pais em quinze dias. Mas como ele teve um contratempo chamado morte e uma árvore centenária resolveu abrir todos os meridianos da garota, não podiam simplesmente viver como se nada tivesse acontecido.
Huan Shen precisava recuperar suas forças e seus meridianos, Lily precisava controlar a mana em seu corpo para que isso não a matasse. Porém, como ambos estavam em condição de prosseguir, não fazia mais sentido continuar se aproveitando da boa vontade do casal.
Os dois chegaram na sala de estar, onde um homem residia sentado em um dos sofás. Ao vê-los, levantou-se e estendeu sua mão, cumprimentando-os. Imediatamente, Huan Shen o olhou de cima a baixo. Roupas sociais, bem-arrumadas e com uma presença sutil. Carregava consigo uma pasta, com vários documentos dentro dele.
— Boa noite, Sr. Kushinov. Agradeço por ter remarcado nosso encontro com brevidade, quanto mais cedo adiantarmos isso, melhor — disse ele, antes de virar sua atenção para o emissário. — E você, quem seria?
Ele olhou de relance para o Lehman, que também não sabia o que dizer direito.
— Huan Shen. Um consultor particular — respondeu o emissário.
— Eu sou o Dr. Cristóvão Magalhães, advogado e consultor jurídico. Eu tenho um pequeno escritório em Elísio, então pode passar lá caso precise de alguma coisa.
“Detesto advogados, eles sabem muito bem fingir que não vão comer seu rabo no instante em que você der uma brecha.”
— Vou lembrar disso, Dr. Magalhães.
Por uns instantes, o advogado pareceu ter sido pego de surpresa com aquela figura no meio da sala, junto com o senhor que tinha visto ver. Então, imediatamente recuperou a compostura e voltou a se sentar, junto com os anfitriões.
— Então, conte-nos o motivo da sua visita? — questionou Lehman, amigavelmente.
Magalhães retirou alguns papéis da sua pasta.
— Eu venho aqui representando os Bakir, Sr. Kushinov. Nos últimos meses tivemos reuniões com alguns pequenos agricultores sobre a situação de Santa Marília e como isso está afetando a economia do Santo Império como um todo. Há uma tendência enorme de desvalorização das terras de Santa Marília, o que consequentemente afeta o preço dos produtos em geral. A terra desvalorizada gera um aumento em todos os produtos, o que gera uma escassez na compra por todas as partes, seja dos mercados para os agricultores, ou dos consumidores para os mercados.
“Isso é estranho, Santa Marília é o segundo maior produtor de alimentos do Santo Império e as terras de Grandeossa são férteis e espaçosas o bastante para não precisarmos comprar de fora. O Santo Império nunca deixaria essas terras desvalorizarem, pois isso causaria fome generalizada!”
Infelizmente, a desvalorização da terra gerava uma cadeia de eventos extremamente prejudiciais para os agricultores pequenos. Lehman enfrentou três quedas de ofertas de preço apenas no tempo em que Huan Shen esteve presente em Santa Marília. Não apenas isso, mas no último ano, houve um imposto sobre as taxas de transporte e insumos agrícolas, com a desculpa de que eram necessários para investir em uma infraestrutura melhor para os transportes de alimentos.
“Que porra de infraestrutura é essa? As estradas permanecem a mesma por anos e todas as carruagens à vapor são privadas.”
— Entendo…inclusive, meu limite de crédito diminuiu bastante no último ano. Eu sempre quis saber o motivo, pois eu tenho todas as notas fiscais comprovando que paguei tudo certinho.
O advogado cruzou os braços.
— Infelizmente não é só o senhor que está passando isso. Vários agricultores estão reclamando da mesma coisa, Sr. Kushinov. Parece que a desvalorização das terras está gerando menos renda para a cidade, o que afeta a capacidade do Santo Império em fornecer investimento para os agricultores. E eu nem toquei no tema dos crimes violentos.
“O que os crimes têm a ver com a linha de crédito dos agricultores? Quem decide isso é o escritório do regente!”
Lehman estava bastante frustrado.
— Eu entendo. Perdi metade do meu pessoal desde o ano passado para cá. Isso é uma lástima.
— Parece que nem todos os imigrantes são confiáveis. Depois do incêndio nas colheitas dos La Vie ano passado, o regente não teve escolha a não ser tomar uma medida mais ostensiva contra possíveis criminosos. Felizmente, a milícia está aqui, dando suporte a nossa polícia local.
“Ele bem que podia usar essa verba para comprar armamentos para a polícia local, hein? A faca de cozinha desgastada da Dona Marilda é mais confiável do que aqueles revólveres velhos.”
— Perdoe-me se estou sendo um pouco direto, Dr. Magalhães, mas o que os Bakir querem com um simples agricultor como eu?
“Não há nada de simples em seu terreno, Sr. Kushinov.”
— Não há nada de simples em seu terreno, Sr. Kushinov — disse o advogado, estranhando a forma como Huan Shen semicerrou os olhos em sua direção. — Minhas fontes dentro do escritório imperial de Santa Marília já me informaram que em breve, a nossa linha de crédito precisará ser fechada devido a problemas de balanceamento fiscal com a capital. O senhor vai ficar sem recursos para investir no sítio e perderá funcionários. E com essa idade, não sei se o senhor vai conseguir dar conta de manter o rendimento da colheita. Não preciso te lembrar da taxa de produção, certo?
Naquele ponto, Lehman já estava ficando desesperado. Sem crédito, sem funcionários, sem produção e endividado. Ele sabia que as coisas estavam ficando apertadas, porém ver uma previsão de falência em um prazo tão curto assim era de cortar o coração.
— Não é possível…eu tenho que ir procurar o prefeito! Ou então a associação dos agricultores! Não é justo que a terra da minha família, que cultivou bem aqui por trezentos anos, esteja à beira de ser tomada em questão de meses!
— Infelizmente, não adianta tentar procurá-los. O prefeito está bem firme em sua posição, pois a dívida de Santa Marília está consideravelmente alta em relação ao Santo Império e ele precisa de toda a fonte de renda possível para assegurar o bem-estar dos seus moradores. E não soube? O líder da associação foi preso semana retrasada por estar em conluio com alguns criminosos estrangeiros. Ele perdeu todo o direito de propriedade.
“É… agora fodeu.”
Lehman colocou as mãos no rosto, completamente tenso. O emissário olhou para trás, para garantir que as mulheres ainda estivessem tranquilas na cozinha. Porém, ele conseguia sentir a presença delas atrás da parede, escutando toda a conversa.
— Olha, o senhor não precisa sair dessa em prejuízo, Sr. Kushinov. É exatamente por isso que estou aqui. Essa é uma proposta feita pelos Bakir, em parceria com a regência atual de Santa Marília. É um fundo de Suporte e Apoio de Transição de Propriedade, que irá garantir que o senhor possua uma renda consolidada por seis meses enquanto se ergue.
O advogado entregou uma série de papéis para Lehman, que os segurou com as mãos trêmulas. Sua mente era um turbilhão de pensamentos acontecendo simultaneamente, envolvendo seus empregados, suas terras e tudo que construiu ao longo dos anos.
— Se puder me dar uma resposta ainda hoje, eu ficaria agradecido-
De repente, o emissário pegou o documento das mãos do Sr. Kushinov, olhou entre as páginas brevemente e colocou de volta na mesa.
— Não. Você não terá a resposta hoje. Se acabou, pode ir embora.
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