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    Capítulo 82

    Embora estivesse relativamente longe da Rua de Atenas, lá não era o único lugar onde poderia conseguir uma boa dose de álcool. Após uma caminhada de dez minutos, um casebre de madeira no meio da estrada chamou sua atenção. As luzes internas eram baixas e apenas um pequeno poste velho na entrada fazia questão de iluminar onde seus pés estavam pisando.

    “Esse parece ser o lugar.”

    Desde o dia em que chegou em Santa Marília, uma sensação ocasional de vigilância o incomodava. A princípio, era apenas durante o dia e mantinha distância, mas conforme o tempo foi passando, ela ficou mais intensa e começou até mesmo a se manifestar perto da Lily.

    O emissário não sabia o que poderia encontrar ali dentro. Poderia ser uma pessoa, um conjunto, ou poderia nem ser alguém, mas sim algo. Porém, tinha que ficar preparado para um possível confronto. Se pudesse forçar um combate do lado de fora, seria melhor ainda para evitar possíveis causalidades.

    Suas mãos abriram a porta, tocando uma pequena campainha na parte superior da parede. Imediatamente, todos os olhos no ambiente se direcionaram a ele. Haviam dois senhores com cerca de sessenta anos na mesa mais ao sul, três quarentões na mesa do centro e um casal composto por uma siciliana e um danês na mesa leste.

    O estabelecimento cheirava a álcool e madeira molhada. Além da bebida, parecia que serviam algumas porções de ovos cozidos, batatas cozidas, batatas fritas, batatas fatiadas, batatas gratinadas e purê de batata. Talvez isso tivesse algo a ver com o nome do estabelecimento se chamar “Batata Assando”, mas Huan Shen não tinha certeza.

    Sentando-se no balcão, um velho yoruba se aproximou dele, com uma toalha no ombro e um olhar frio. Metade dos fios em seus bigodes já estavam brancos, algo que não dava para ser refletido na calvície avançada em sua cabeça.

    — Não peça cardápio, eu coloco algo em seu copo e você decide se bebe ou não. Independentemente, você paga — disse o velho.

    O emissário olhou para a prateleira. Haviam três garrafas de marcas conhecidas, o resto era licor, cachaça caseira e claras tentativas de homicídio engarrafadas. Garrafas de vidro com aguardente e várias frutinhas misturadas com outros sucos para formar sabores que não são apropriados para o consumo humano.

    — Eu tenho quase certeza que não é assim que um bar funciona — questionou o emissário.

    O homem ergueu uma sobrancelha, enquanto arrastava um copo de shot pela mesa até onde o emissário estava. Debaixo da mesa, ele retirou uma cabaça velha. Quando a abriu, o cheiro de álcool destilado atingiu seu nariz com força, fazendo-o lacrimejar levemente.

    Quando o líquido cristalino atingiu o copo, o contato com o ar imediatamente o fez escurecer, tornando sua cor bronzeada e translúcida. Relutante, o emissário pegou o copo e o aproximou do nariz, apenas para ser atingido em peso pela força do álcool.

    “Se eu morrer, eu transformo esse lugar em uma cabana mal-assombrada.”

    Segurando a respiração, o emissário bebeu a cachaça em um único gole. Foi como ter experienciado uma passagem intensa pelo inferno. A bebida queimava cada canto da sua garganta, a ponto de ele ter que usar a mana do seu corpo para aliviar a sensação. Seus olhos lacrimejaram e sua respiração ficou pesada.

    “Com a quantidade de álcool que essa dose aqui tem, eu posso incendiar uma fazenda.”

    — Achei fácil — respondeu o emissário, com a voz rouca.

    O velho guardou sua cabaça, com um autêntico sorriso no rosto.

    — Então quer dizer que o protegido dos Kushinov tem bolas de aço, hein? Sinta-se orgulhoso, não são muitos que conseguem tomar o “Gozo do Diabo” e não sair por aquela porta rezando aos deuses.

    — Com um nome ingrato desses, eu nem imagino o porquê. Você não teria algo mais normal, como uma vodca com gelo ou pelo menos um vinho de arroz guardado em algum lugar?

    — Vejo que não fez o dever de casa, jovem. Aqui é uma terra siciliana, o único vinho que você vai tomar é o original, que é feito da uva.

    Huan Shen ergueu uma sobrancelha.

    — Sai pra lá! Já existia vinho de arroz em Lu Xiang muito antes San Ciro sequer ser uma cidade.

    — Vocês fermentam qualquer verdura por aí e chamam de vinho! Caso não saiba, garoto, vinho vem do latim de “videira”. Videira! O pé da uva! Ele nasceu aqui, nesta terra. Os sicilianos sempre serão os criadores do vinho autêntico.

    Huan Shen deu de ombros.

    — Semânticas, meu velho. Semânticas.

    — Semântica é a minha bola esquerda. Mas então, o que fez você ter vindo nesse bar abandonado pelos deuses no meio da estrada, meu garoto?

    O emissário coçou a pequena barba em seu rosto.

    — Tomar uma boa vodca de batata não é o bastante? — ponderou.

    O velho balançou a cabeça negativamente.

    — Para de enrolar, senão você teria vindo aqui muito antes. Cá entre nós, a minha deixa a de muitos siberianos no chinelo. Hoje em dia eles querem misturar com tudo, colocando suco, café, aguardente, água com gás, soda e o que acharem no meio do caminho. Uma boa bebida é pura e é servida in natura.

    “Que os deuses me protejam de tomar qualquer uísque com esse cara.”

    — Eu tô procurando uma pessoa. Não sei exatamente dizer quem é, mas sei que é persa. Ela estava pelas redondezas recentemente, acho até que ela tem estado por aqui a mais tempo.

    O velho ficou em silêncio. Ele claramente parecia apreensivo, como se estivesse na mira de alguma coisa. Huan Shen olhou para trás e o silêncio se perpetuava pelo ambiente.

    — Alguém viu alguma coisa? — perguntou, em voz alta.

    A sensação de apreensão era palpável no ar. Todos pareciam estar com o olhar distantes, ignorando a presença do homem que estava bem ali no balcão.

    — Existem muitos persas que entram e saem de Santa Marília todos os dias, rapaz. Ou você esqueceu que cinco das cidades que compõem o Santo Império foram dos persas?

    — Essa pessoa não é do Santo Império.

    O emissário o encarou diretamente nos olhos.

    — Então você não viu nenhum persa estrangeiro nos últimos dias e nem hoje por aqui, certo? — Questionou ele.

    Imediatamente, o velho desviou o olhar. Falar alto e abertamente não tinha sido um ato descuidado, mas sim uma forma de forçar o seu alvo a sair da toca. Mesmo que ninguém falasse, dariam indicativos da origem da ameaça. Claro que isso nem sempre funcionava, mas cada caso era um caso.

    E naquele em específico, o emissário notou que antes de virar para o lado oposto. O velho olhou de canto para a área mais escura do bar. Não apenas uma, mas duas vezes. Aquilo já era resposta o bastante.

    — Esquece o que perguntei — disse ele.

    Huan Shen pegou a garrafa de vinho que estava sobre a mesa. Um belo espécime de vinho tinto seco, envelhecido por quarenta anos. O velho olhou com aquilo com receio, pois o emissário segurava a garrafa pela parte superior, como se fosse um martelo.

    — Ei! Não crie problemas no meu bar! — gritou ele.

    As pessoas que estavam na mesa do centro começaram a sair do caminho, à medida que o homem enorme cruzava o salão. A cada passo, a luz parecia recuar e a escuridão tomava conta. Mesmo assim, ele não iria parar contra o que tivesse ali do outro lado.

    “Agora peguei você, miserável!”

    De repente, o som da campainha na porta toca. Não apenas uma vez. Imediatamente, o emissário colocou o vinho sobre a mesa, para evitar qualquer tipo de mal-entendido. Quer dizer, ele estava sim prestes a agredir alguém com aquilo, mas não queria aterrorizar os outros por causa daquilo.

    Ao olhar de canto de ombro, viu algo desagradável. Cinco homens armados entraram pela porta, bastante confiantes, usando seus coletes pretos com um colar que carregava uma miniatura do crânio de um leão.

    “O que a milícia está fazendo aqui tão tarde?”

    Seus olhares caíram direto no emissário, que residia de pé no meio do estabelecimento.

    — Recebemos uma denúncia de perturbação da paz aqui — disse um deles, dando um passo à frente.

    O velho balançou a cabeça em negativo.

    — Desculpe, senhor, mas aqui não tá acontecendo nenhuma paz perturbada não.

    Porém, o olhar do miliciano já tinha caído sobre Huan Shen, como um gavião olha sua presa.

    — Eu não te perguntei nada, coroa. Fique aí no seu lugar, senão você vai ver o que faremos com esse lugar — respondeu ele. — Ei, grandão! Vamos bater um papo.

    Huan Shen massageou as têmporas. Possivelmente, o Lucca abriu o bico para se proteger. Sua permanência naquela cidade já estava ficando insustentável.

    — Existem zero motivos para eu conversar com você — respondeu o emissário.

    O miliciano soltou um riso, junto com seus colegas. Então, um movimento rápido e a pistola em seu coldre estava em suas mãos. Todas as pessoas dali imediatamente recuaram, amedrontadas pelas suas vidas.

    — É engraçado você achar que eu estou pedindo. Pro lado de fora, agora! — ordenou ele.

    “Armas de fogo são incríveis! Qualquer puto que saiba puxar um gatilho acha que pode enfrentar o mundo.”

    O emissário ergueu as mãos levemente, indicando que não iria resistir. Os milicianos abriram caminho, com suas armas em mãos. Sem escolha, ele caminhou entre seus inimigos até o lado de fora do estabelecimento.

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