Capítulo 85 — Semente Estrangeira em Solo Conhecido
Capítulo 85
Seus punhos cerrados começaram a formar precipitações de gelo, mantendo sua mão tão afiada quanto uma navalha. Tinha sido uma tarefa árdua ter dado um fim naquela criatura, apesar das suas limitações. Mesmo que tivesse plena confiança em ter que lidar com aquela também, sabia que suas chances diminuiriam consideravelmente caso algum daqueles homens acordassem e resolvesse tornar o confronto em dois contra um.
“Eu não quero ter que usar o Corpo Vazio hoje, então vou tentar cadenciar essa luta o máximo possível.”
Tomando impulso em seus tendões esticados, a criatura avançou rapidamente em direção ao emissário, dessa vez não possuindo uma lâmina de osso na mão, mas enormes garras alongadas em seus dedos e uma mandíbula que se estendia até a base do seu pescoço.
“Ok, eu vou começar com uma barreira para bloquear o avanço e criar distância. Ou talvez eu devesse usar a estratégia dos antigos legionários sicilianos, usando um escudo longo junto com uma lança.”
Quando o monstro estava relativamente perto, algo inesperado aconteceu. Um clarão veloz passou por cima da cabeça do emissário, atingindo a criatura diretamente no peito. Quando o brilho diminuiu levemente, conseguiu ver a base de uma flecha. O monstro parou sua investida e começou a ficar desnorteado, à medida que um brilho cintilante intenso começava a sair dos seus orifícios.
Seu corpo começou a tremer e pedaços enormes de carne caíram no chão, enquanto a criatura era desmantelada. Uma fumaça pútrida ascendia aos céus, junto com os gritos de sofrimento. Seu braço se descolou, seguido da sua mandíbula e perna esquerda. Seus olhos enrugaram e encolheram até seu corpo cair no chão imóvel. Então, uma chama prateada começou a se espalhar pelo corpo.
“Que porra foi essa?”
Conjurando um escudo, o emissário se aproximou lentamente do cadáver enquanto seu corpo ainda queimava. Porém, as chamas não emitiam calor. Olhando para o céu, viu que a cor das chamas era tão alva quanto a luz lunar, quase como se tivesse sido invocada por ela. Aquilo não era magia elemental ou primordial, mas sim divina.
Suas mãos conseguiram retirar a flecha do peito do monstro. Seu cabeçote era de aço, porém revestido com prata e grãos de sal. A madeira que compunha a extensão era escura e tinha alguns entalhes na sua extensão.
“Ei! Isso é persa antigo! Então quer dizer que…”
Cautelosamente, o emissário desfez o escudo e ergueu suas mãos, deixando a flecha no chão. Sabia que se fizesse qualquer movimento errado, poderia ser morto com um único disparo de precisão. Seu corpo se virou lentamente, apenas para se deparar com uma pessoa apontando uma flecha em direção à sua cabeça.
— E pensar que você conseguiu me achar duas vezes na mesma noite! — disse uma voz feminina soturna. — Você é esperto demais para o seu próprio bem.
Seu rosto estava parcialmente coberto pelo turbante verde que cobria sua cabeça e pescoço, que deixavam nada mais que alguns dreadlocks escaparem pela lateral. Seu corpo estava protegido por um colete de couro escuro com ombreiras, que contrastava com uma longa veste de seda de manga longa bordada debaixo dela. Seu cinto comportava diversas bolsas e uma bainha, que guardava uma adaga ornamentada dentro dela. Suas botas eram de cano alto, que junto da sua calça larga, forneciam toda a mobilidade necessária.
Seus olhos castanhos claros eram firmes e penetrantes, igual a flecha na ponta do arco que ela segurava de forma tão confiante contra o emissário.
— Escolha ousada usar couro hoje em dia. A maioria opta por malha de aramidas ou escoras de carbono.
— Eu sou mais conservadora em relação à equipamentos. Além disso, não sou do tipo que deixa uma bala atingir o meu corpo.
“É uma resposta válida.”
— Como sabia que eu era persa? — perguntou ela, curiosa.
— Eu não sabia que era você. Sabia que tinha uma pessoa persa espionando meus movimentos. Sabe, eu posso não ser um mago extraordinário, mas eu estudei bastante sobre o assunto, além de testar empiricamente muita coisa. Há algo específico nas magias de adivinhação, que quem está sendo alvejado consegue sentir caso tenha uma sensibilidade fina o bastante. O sol sempre parece queimar demais, a luz da lua é levemente mais intensa onde você está e as estrelas parecem te seguir. Astrologia é a especialidade dos antigos feiticeiros zoroastristas. E só há um lugar no continente de Grandeossa que ainda praticam o zoroastrismo.
A moça ergueu as sobrancelhas.
— Essa foi uma dedução extremamente arriscada e que poderia ter te custado caro caso estivesse errada. Eu vim até aqui para lidar contigo, pois você parecia ter percebido que estava sendo observado. Essas criaturas aos seus pés foi o que te salvou.
“Eu não teria caído tão rápido assim, moça.”
— Pera aí, você achou que eu estava com eles?
Ela deu de ombros, finalmente abaixando o arco.
— Sim. Inclusive, achei que você fosse um dos membros da organização secreta trabalhando com a milícia controlada pelo filho de um dos latifundiários da região.
— Com base no que você tirou essa conclusão? — questionou o emissário, confuso.
A moça foi até um dos homens desmaiados e revirou seus bolsos, até retirar uma das pílulas.
— Eu mantenho a vigília das fronteiras ao norte da Selva de Concreto. Eu costumo saber quem são as poucas pessoas que entram por lá, geralmente para caçar ou usando de rota curta para chegar à região sul do continente. Porém, você saiu de lá junto com uma garota e eu nunca tinha te visto entrar. Vocês estavam com suas roupas rasgadas e sem nada além de uma mochila. Isso era estranho.
— É estranho alguém sair da Selva de Concreto?
Ela ergueu uma sobrancelha, como se fosse uma resposta retórica. Existiam momentos em que Huan Shen esquecia o quão diferente ele era das outras pessoas.
— Não só você saiu da Selva de Concreto, como começou a viver em Santa Marília como se nunca tivesse saído. Nenhuma entrada para registro, nenhuma tentativa de migração para as outras cidades, apenas andando pela cidade e trabalhando, treinando seu corpo durante a noite.
“Ok, agora estou ficando desconfortável.”
— Entendi! Isso já é exposição demais. O que é essa pílula e por que ela transforma as pessoas em monstros mutantes?
— Eu não sei ainda. Eu queria finalmente colocar minhas mãos em uma amostra sem levantar suspeitas, mas não tinha uma janela boa para fazer isso. Agora, você me deu o que eu precisava. Parabéns, ganhou seu direito de viver.
— Então é isso. Eu te ajudo e não ganho porra nenhuma?
A mulher comprimiu os lábios na posição ideal, gerando um assovio tão agudo que chegou até a incomodar Huan Shen.
— Pronto. Estou me retirando agora. Quem sabe não nos encontramos por aí e você me paga uma bebida depois?
— Não sei se é assim que funciona — murmurou o emissário.
— Se eu fosse você, iria embora agora.
O emissário se indagou sobre a causa daquilo, mas quando escutou ao longe o uivo de lobos cinzentos famintos no horizonte, sabia o que estava para acontecer. Dando as costas para o local, correu para o mais longe que dava, sem nem olhar para trás. Independente do que aconteceria, seu tempo em Santa Marília estava chegando ao fim.
Uma hora depois…
Após mais um banho, finalmente Huan Shen estava descansando. Ou tentando, no caso. Sentado em uma poltrona próxima a lareira, seus olhos analisavam a documentação entregue pelo advogado com muito afinco, junto com Lehman.
— Ele está oferecendo um milhão de draconis pelo terreno — disse o agricultor, ajeitando seus óculos cuidadosamente. — Isso é muito mais do que esse lote vale, segundo a prefeitura. Talvez o negócio não seja tão ruim.
Huan Shen colocou os papéis sobre a mesa.
— Sr. Kushinov, ele não está pedindo um milhão apenas pelo terreno, mas com todas as propriedades que tem aqui. Você tem essa casa de dois andares, uma granja, um estábulo, um celeiro e duas carruagens à vapor. Isso sem contar a safra atual que já está para nascer e todo o seu estoque de suprimentos agrícolas. Chutando baixo, isso já colocaria o terreno na faixa dos cinco milhões de draconis. Vamos considerar que a terra também está arada e preparada para o plantio de qualquer coisa que caia no solo.
As mãos do senhor tremeram, indicando sua raiva latente.
— Desgraçados! Como se atrevem a subestimar todo o trabalho que tive com essa terra? Meu pai me contava o quanto meu bisavô arou esse solo bravo, só ele e um touro, debaixo do sol por dias inteiros! E agora eles querem tudo de graça?
Apesar da proposta ruim, o emissário não conseguia deixar de sentir que havia algo propositalmente errada com ela.
— Será que o Velho Cid vendeu por essa mixaria também? — indagou Lehman, tomando um gole de chá verde.
— Suspeito que tenha vendido por menos. O terreno dele era relativamente menor do que o seu, apesar de valer quase tanto quanto.
Lehman olhou para a parede, encarando os quadros que continham as centenas de anos com as histórias da sua família. Ele se lembrou da primeira vez que sua mãe o ensinou sobre o ciclo de plantio, seu pai o ensinou a forma correta de lidar com o gado e as palavras da sua avó sobre o trabalho duro. Seria uma desonra deixar tudo aquilo para trás, apenas por uma pequena soma em dinheiro.
— Eu tomei minha decisão. Amanhã eu irei pessoalmente até o escritório do Dr. Magalhães e irei entregar os papéis para ele, todos em branco. Esse lugar tem um legado que não posso deixar sumir por tão pouco.
O velho colocou as mãos no ombro do emissário, que foi pego de surpresa.
— Huan Shen, eu sei que não nos conhecemos há muito tempo e que você é uma pessoa reservada, mas eu não tenho palavras para dizer o quanto você me ajudou nesse tempo aqui. Confesso que tive meus receios quando resolvi acolhê-lo, mas eu agradeço todo dia aos deuses por estar errado. Você é um bom homem.
O emissário acenou com a cabeça, com um pequeno sorriso no rosto.
“Eu não sei se ele me consideraria um bom homem se visse tudo o que eu fui capaz de fazer…”
Enquanto Lehman se dirigia até a cozinha, uma questão ainda permanecia na mente do emissário: Se os Bakir queriam tanto essa terra tão rapidamente, por que tinham confiança em uma oferta claramente abaixo do valor de mercado? O que está legitimando essa manobra financeira?
Qual era a parte do quebra-cabeça que estava faltando?
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