Capítulo 86 — Safra de Alta Qualidade
Capítulo 86
As Terras Independentes de Kul’Tacan ficavam a milhares de quilômetros da fronteira de Santa Marília, mas não costumava ser um ambiente desconhecido para Leonard. Quando era mais jovem, tinha o costume de acompanhar os empregados do seu pai quando iam realizar acordos comerciais lícitos e ilícitos em lugares onde a lei imperial não poderia alcançar.
Enquanto o Santo Império era conhecido por seus climas e terrenos variados por conta da sua enorme extensão, Kul’Tacan era uma região completamente litorânea. Na sua frente, residia o enorme Mar Primordial, que com suas ondas colossais e criaturas inomináveis nas profundezas, poderia levar a glória ou a perdição a qualquer um que se aventurasse por ele. Se conseguisse forçar um pouco a visão, conseguiria enxergar o Palácio Congelado.
A sirene ensurdecedora do navio ecoou pelo porto, mas deu para ser escutada em um singelo restaurante que estava a quase quinhentos metros de distância. Em uma das mesas, duas pessoas residiam.
A primeira era uma mulher, com um vestido bege floral sem mangas, acompanhado de um sombreiro longo em sua cabeça. Um par de óculos escuros contrastavam com seus cabelos loiros longos que caíam sobre o seu ombro. Ela aparentava estar na casa dos vinte e sua pele bem cuidada indicava que se tratava de alguém que desconhecia a ideia de trabalho duro.
Do outro lado, um homem bronzeado e com cabelos curtos asseados e recém cortados lia com passividade o jornal em sua mão. Um short na altura dos joelhos, uma regata que destacava seu peitoral trabalhado e os calos nos nós dos dedos chamavam a atenção de qualquer um que o olhasse de relance.
— Leonard, não era hoje que você me levaria para ver aqueles livros novos que chegaram ontem no continente?
O homem passou mais uma página do jornal.
— Denise, hoje eu tenho compromisso — respondeu passivamente. — Lembre-se que eu estou aqui a trabalho.
A garota tomou mais um gole do seu milkshake, que já estava pela metade. Então, olhou mais uma vez para o anel em sua mão: uma bela peça de ferro frio com um rubi autêntico na extremidade.
— Eu sei, mas é que tudo isso é tão chato! Não poderia mandar alguns dos seus homens resolverem? Só veio a gente e mais uma meia-dúzia de gato pingado.
Leonard guardou o jornal e tirou os óculos do seu rosto, revelando seus olhos castanhos, que continham uma pequena auréola dourada nas bordas das írises.
— Eu já te expliquei isso, querida. Quando você está nesse ramo a um certo tempo, você precisa mostrar que pode resolver as coisas por conta própria. Ele vacilou comigo feio, se eu mandar um mensageiro para ir lá e negociar, ele vai achar que sua atitude não significa muita coisa para mim e não irá me levar a sério. Porém, a história muda caso seja a minha pessoa. Quem sabe ele até não aprende alguma coisa com isso?
A garota cruzou as pernas, ainda não convencida nas palavras do seu amante.
— Ainda não estou convencida, mas se você diz que é importante, eu apoio.
Leonard não conseguiu evitar esboçar um sorriso alegre em seu rosto. Desde que conheceu a Denise, parecia que o peso das suas responsabilidades poderia ser aliviado no final do dia. Uma garota de uma boa família e aprendiz de feitiçaria com uma mentora da Família Hecathia poderia facilitar bastante suas conexões com nobres de outras regiões, elevando o status da família Bakir em novos níveis.
Não poderia pedir um par mais perfeito que aquele.
O sol estava se pondo, jogando sua enorme luz alaranjada pelo horizonte, contrastando com as gaivotas que sobrevoavam os céus.
— Já está escurecendo, melhor eu ir. Está com a chave do hotel? — perguntou ele.
A garota balançou a chave entre seus dedos.
— E ficar olhando para as paredes até você voltar? Eu passo. Posso ir com você? — questionou ela, com aqueles olhos meigos difíceis de rejeitar.
Leonard ergueu uma sobrancelha, como se tentasse, em vão, resistir aos pedidos dela. Porém, inevitavelmente foi superado pelo poder da paixão.
— Pode sim, mas se comporte!
— Yay! — comemorou ela, batendo palmas curtas.
O casal caminhou pela costa de Kul’Tacan tranquilamente, apreciando a paisagem intacta e caótica que constituía aquela região. Embora fosse bastante atraente, toda Kul’Tacan vivia em uma aliança frágil e sinuosa entre piratas, chefes de comunidades independentes e um governo oficial de fachada que ninguém sabia exatamente quem estava comandando.
O que impediu a região de ser conquistada pelo Santo Império ou qualquer outra nação moderna foi o fato dela estar bastante próxima da Selva de Concreto e os mares serem dominados por piratas fortemente armados. Todos chegaram à conclusão de que era mais vantajoso cuidar do próprio território do que mexer naquele vespeiro.
Mesmo sendo uma região de ladrões, a maioria deles tinha um ótimo senso de preservação. Embora Leonard e Denise serem claramente nobres, o fato deles estarem caminhando por ali sem nenhuma preocupação e o rapaz ter uma espada longa embainhada em sua cintura era um indicativo do quão perigosos eles poderiam ser.
Não era apenas pela espada, mas sim o que ele poderia fazer com ela.
Os dois saíram da região costeira e adentraram a vila de pescadores, que ficava na zona sudeste de Kul’Tacan. Diferente da região costeira que era bem mais trabalhada, a maioria das casas ali eram feitas de madeira e apoiada por uma série de estacas propositalmente posicionadas para evitar que a água em marés altas inunde suas residências. A maioria das estradas eram compostas por pontes conectadas.
— Não é fantástico? Conhecer lugares novos, ver como as pessoas sobrevivem em condições tão difíceis e árduas, entender um pouco do seu sofrimento? Já imaginou ter que pescar todo dia para ter que sobreviver? Eu poderia ser uma boa pescadora, já fiz isso antes.
— No lago particular do seu tio não conta, meu bem.
Diferente de Denise, que achava pobreza algo fascinante e digno de estudo, Leonard tinha nojo de estar naquele ambiente. Sempre teve nojo da ideia de pessoas claramente inferiores estarem o incomodando em vez de estarem gerando riqueza. Se não fosse pelo trabalho constante do seu pai em fazê-lo se tornar tolerante a ambientes mais humildes, sua vida teria sido bem mais difícil.
— Estamos muito longe? Já andamos um bocado e não aguento mais esse cheiro — disse ela, bocejando.
O olhar afiado do jovem nobre percorreu pela região, se deparando com as expressões curiosas e confusas das pessoas em ver duas pessoas fora do padrão local na área. Alguns barcos presos perto das casas, redes de pesca no varal e um cheiro pesado de salitre e peixe fresco no ar.
O que realmente chamou sua atenção foi uma casa de dois andares, que estava firmada no solo e não sobre a região lamacenta como as outras casas. Não apenas isso, mas tinham três homens na entrada da casa, que embora aparentassem casualidade, estavam consideravelmente atentos.
— Acho que já estamos perto, querida — respondeu Leonard.
Seus passos os guiaram até a residência, que ao olhar mais de perto, apresentava a sua decadência. O primeiro andar estava completamente esburacado e não tinha qualquer fonte decente de iluminação. Os outros andares não aparentavam ser muito diferentes. Claramente ninguém vivia ali, era apenas um lugar temporário.
Ao ver aquelas duas pessoas estranhas se aproximando, os homens imediatamente ficaram na defensiva. Eles não usavam coletes, botas ou qualquer tipo de equipamento de proteção especializado. Porém, não estavam nem um pouco desarmados. Alguns estavam equipados com pistolas semiautomáticas, outros tinham fuzis pendurados em seus ombros.
— Ei, aqui não é lugar para você estar andando, playboy — disse um deles, tomando a frente enquanto os outros apenas observavam o que acontecia.
Leonard não recuou um único passo, mesmo vendo a pistola destravada. Seus olhos fitaram diretamente o homem na sua frente.
— Eu estou bem onde quero estar. Tenho negócios para tratar com o homem que está no segundo andar dessa casa que você diz estar protegendo — respondeu Leonard, friamente.
Os três homens começaram a rir. Não era todo dia que um playboy e uma patricinha apareciam na sua frente e os desafiavam.
— Você deve tá maluco, né? — disse o homem, ainda rindo. Então, sua mão deu três tapas leves no rosto de Leonard, em um claro sinal de desprezo. — Pega a sua vadia e saia daqui enquanto ainda estou de bom humor.
Leonard calmamente alcançou seu bolso e pegou um lenço umedecido, passando na região onde a mão daquele bandido de quinta categoria o ousou tocar. Sua paciência estava tão fina quanto aquele lenço.
— Você poderia aproveitar esse bom humor para comprar um enxaguante bucal — disse ela, abanando o nariz. — Acho que seria mais agradável estar dormindo em uma peixaria do que tolerar essa sua boca.
O homem virou sua atenção para Denise, nem um pouco satisfeito com aquelas palavras.
— Você tem a boca bem aberta, hein? — disse ele, colocando as mãos em seus ombros delicados. — Que tal eu e meus colegas ali te mostrar o que você pode fazer com essa boquinha de veludo.
Leonard deu dois passos para a sua esquerda, se afastando da sua namorada. Então, ela gentilmente colocou sua mão no rosto do homem que estava tentando intimidá-la, formando um gentil sorriso cínico em sua face.
— Ordem Sulfúrica: Lago de Fogo e Enxofre! — conjurou.
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