Capítulo 9 — Algo Perverso
A hora mais escura da noite tinha chegado na Selva de Concreto. As estrelas imperavam sobre um céu límpido e sem nuvens, enquanto seu solo era coberto por uma neblina fraca, mas misteriosa. A luz amarela dos emissores parecia mil tochas iluminando um único lugar, mas ironicamente era a única região que era invisível para todas as outras criaturas que ali habitavam.
Huan Shen residia dormindo próximo ao riacho. Ele não usava cobertor, saco de dormir ou qualquer tipo de fonte de calor para aquele frio cruel. Quem não o conhecesse, poderia até pensar que o mesmo estava morto. Ocasionalmente, ele se virava de um lado para o outro, tentando achar a melhor posição para dormir.
Próximo a fogueira, não era muito diferente. Lavignia dormia profundamente em conchinha com Lilian, para garantir que a garota não sentisse o frio daquele lugar. Melissa estava encolhida, agarrando as cobertas com uma tremenda intensidade. E embora Rodrich tenha passado algumas horas em vigília, não pôde evitar de acabar caindo no sono. Apesar de não estar mais no pico da sua juventude, era um homem rígido, forjado pelo tempo e pelas dificuldades.
Porém, ninguém ali desconfiava da possibilidade de estarem sendo observados. Em um canto escuro, algo se desenterrou do solo. Era pequeno, não maior que um coelho, mas seu corpo estava completamente envolto em escuridão, que emanava do seu corpo como se fosse fumaça. Era impossível dizer a sua forma, de tão bizarra que a criatura aparentava ser.
Como se sua estranheza não fosse o bastante, aquele pequeno diabo era um ser rápido. Seu corpo se movia como uma aranha gigante e voraz. O que pareciam ser as várias pernas daquela criatura se organizavam de forma coordenada, eficaz e sem nenhuma contradição, permitindo que ela conseguisse subir até em superfícies planas verticais sem nenhum impedimento. A cada passo que dava, um som efervescente saía dela, como se alguma criatura estivesse tendo seus órgãos derretidos em ácido.
Diabolicamente, a criatura começou a se mover pelo acampamento. Sabia que não poderia sair sem proteção, pois os emissores iriam destruir seus sentidos. Sua infiltração ali tinha sido estratégica, no único ponto de vulnerabilidade disponível, que era o pequeno intervalo entre o final do pôr do sol e quando os emissores eram ligados. Agora que estava dentro, sua missão começou de fato.
A criatura se locomoveu pelo acampamento, evitando todas as fontes de luz diretamente. Sabia que se estivesse em contato com luz intensa, a camada obscura ao seu redor iria sumir e ela consequentemente iria morrer. Mesmo que ainda fosse noite, tinha que adiantar, pois precisava encontrar um hospedeiro ideal antes do amanhecer. Primeiro, se moveu cautelosamente em direção à fogueira.
Ao se aproximar, analisou a condição dos seus possíveis alvos. O primeiro era um homem. Embora não gostasse de hospedeiros masculinos, aquele em específico parecia ter um corpo decente apesar da idade. A criatura avançou cautelosamente, expandindo suas sombras. Seus membros se entrelaçaram nos dedos de Rodrich, enquanto suas outras partes se expandiram para capturar o seu corpo.
De repente, o som de um espirro a fez recuar. Rodrich acordou, assustado, como se tivesse acabado de sair de um pesadelo.
— Merda! Meu sono é leve como uma pena quando eu não tomo meus remédios!
Ele conferiu a própria mão, pois tinha sentido como se algo gélido tivesse encostado ali. Vendo que não havia nada diferente, ele se levantou e pegou a tocha mais próxima, usando o fogo para alimentar a fogueira que estava quase se apagando. Ao perceber aquilo, a criatura recuou, pois não conseguiria avançar nas garotas que estavam dormindo nas proximidades. Em uma velocidade absurda, ela sumiu nas várias sombras que residiam no acampamento.
Rodrich olhou para trás, pois tinha tido uma sensação estranha. Ao ver que não tinha nada, posicionou sua tocha nas proximidades e se recolheu na coberta, tentando recuperar seu sono de lebre mais uma vez.
A criatura se moveu em direção ao riacho, agora completamente rodeada de névoa. Embora não tivesse olhos, ela conseguia sentir a presença de qualquer coisa viva aos seus arredores, junto com seu fluxo de sangue. Sua audição era excelente, permitindo que conseguisse mapear os arredores pelo som gerado pelo ar ao se chocar com os objetos, por menor que fosse.
No meio daquela névoa, havia outro homem no meio dela. Seu fluxo de sangue era excelente e sua condição física estava em um ótimo patamar. Como se isso não bastasse, a forma como a energia mística em seu corpo era tão otimizada que ele não parecia ser uma pessoa de verdade, mas sim um fruto de cultivo, onde um feto foi modificado através de uma série de encantamentos esotéricos. Aquele era o alvo perfeito!
Suas sombras começaram a se expandir, mas antes mesmo que chegasse perto do corpo, algo chamou sua atenção: a presença de um ser primordial, que já morava dentro daquele humano. Uma aura fantasmagórica, antiga e bizarra até mesmo para os seus padrões. E sem sombra de dúvidas, muito mais forte que o seu ser. Era como se a criatura estivesse sendo observada através da escuridão, o que a fez recuar daquele lugar imediatamente.
A caçada estava sendo um fracasso até o momento, então não havia outra escolha além de ir atrás do único alvo que tinha sobrado.
Akae tinha pegado no sono algumas vezes, mas a sua ansiedade não a deixava dormir. Se aquele homem a levasse de volta para o seu clã, qual destino a aguardava? Provavelmente seria a exoneração, pois nunca seria capaz de jogar a honra da sua própria amiga no fogo para se salvar. E se ela fosse presa, o que fariam com ela lá dentro? Isso a aterrorizava.
— Hinoka, me ajuda… — murmurou, enquanto pensava na amiga.
De repente, a única lamparina da barraca se apagou. Ela ergueu uma sobrancelha, um tanto confusa.
— Será que o óleo acabou? Eu tinha abastecido isso hoje de manhã…quer saber? Foda-se! Tenho mais chances de dormir agora.
A garota se recolheu, pronta para dormir, até que um barulho chamou sua atenção. Um vulto escuro cruzou a barraca de um lado para o outro. Imediatamente, seu coração começou a bater mais rápido, suas pupilas se dilataram e seu corpo ficou inquieto.
— Q-quem tá aí? — sussurrou Akae, com a voz trêmula.
Nenhuma resposta. Poderia ser sua mente pregando alguma peça, ou talvez uma brincadeira sem graça de alguma daquelas pessoas, mas aquilo parecia ilógico vindo deles. Então, o som de algo passeando sobre os baús presentes ali dentro a fez recuar. Não era sua cabeça, alguma criatura estava ali dentro. Desesperada, suas pernas a forçaram a recuar o máximo que dava, porém não conseguia ir muito longe devido ao fato de estar com ambas as mãos amarradas.
A cada segundo, a sensação de que alguma coisa estava se aproximando do seu corpo aumentava. Ela tentou puxar o nó, mas parecia que ele se apertava cada vez mais em seus braços. Sem alternativa, ela se virou na direção da barraca, encheu os pulmões de ar e se preparou para gritar por ajuda.
— SOCORRO-
Antes que conseguisse completar, algo cruzou sua boca, tapando-a e a puxando para trás. Akae tentou retirar, mas seus braços foram envolvidos por algum tipo de coisa semelhante a um tentáculo de um polvo, sendo completamente imobilizados. O mesmo membro que tapou sua boca, envolveu seu pescoço e começou a apertar, sufocando-a.
Usando toda a força que tinha no corpo e tomada pelo desespero, a garota tentou se arrastar para fora da barraca, mas então suas pernas foram imobilizadas também. Akae sentia todo seu corpo doer, como se aqueles tentáculos estivessem penetrando algo em sua pele. Sua visão estava embaçada, suas memórias eram obscurecidas e apenas uma singela lágrima saiu dos seus olhos, levando todo o resto que sobrou da vida aquela pobre garota.
Alguns segundos depois, Akae já não se mexia mais. Seu corpo frio e gélido residia no chão, completamente duro. Então, da ponta dos seus dedos, uma fumaça negra começou a sair, inundando o chão com aquela névoa obscurecida. Seus olhos, outrora negros, agora estavam brancos como a névoa. Veias esverdeadas começaram a se destacarem em seu corpo pálido e um líquido escuro saía da sua boca.
Algo macabro tinha despertado no interior do acampamento.
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