Capítulo 91 — Visitando a Dispensa
A noite caía na extensão do Santo Império, cobrindo o céu com um manto vistoso de estrelas acompanhado de singelas nuvens. Na estrada noroeste, um simples casebre de madeira se fazia presente no meio da estrada com uma placa de madeira na frente da porta, escrito “Roman Remédios”. As janelas de vidro, à chaminé, os basculantes e o jardim na parte de trás da construção indicavam a natureza do local.
Uma loja de ervas e compostos alquímicos. Como não era devidamente registrada e licenciada pelo Santo Império, não poderia se denominar uma “farmácia”. Não era uma coisa rara de se ver, pois mesmo com toda a extensão do que era denominado Santo Império, havia uma quantidade imensa de terra não supervisionada e com dinâmicas naturais e sociais completamente próprias.
O som de batidas na porta ecoou através do estabelecimento fechado. Após vários segundos, ela se abriu, revelando um homem na faixa dos seus quarenta anos, ibérico, com cabelos ralos e olheiras que contrastavam com sua pele pálida.
— Achei que demoraria para me visitar — disse ele.
— As circunstâncias mudaram. Achei algo que possa te interessar — respondeu Leonard. — E aí, vai me convidar para entrar?
O homem deu um breve aceno com a cabeça e saiu do caminho, enquanto Leonard entrava no estabelecimento escuro. Seus dedos na mão direita fizeram um pequeno estalo, gerando uma pequena esfera de luz amarela que revelou todo o lugar. Não era sua primeira vez ali, mas não conseguia deixar de sentir um certo charme interiorano.
As prateleiras de madeira sustentavam vários frascos de vidro com as mais diversas substâncias sólidas, líquidas, pastosas e em pó. Prateleiras menores tinham frascos menores e assim por diante. As cores variavam do bege ao verde-turquesa. Próximo a janela, uma pequena cultura de hortaliças ajudava no aroma fresco que permeava o ambiente.
— Eu poderia fazer um pequeno investimento nessa loja para ela ficar mais popular, caso você queira.
O senhor fechou a porta e passou a tranca, enquanto verificava no olho mágico para garantir que não havia ninguém o seguindo.
— Não quero que isso aqui vire uma das farmácias todas cheias de frescura que vocês têm na cidade. Quanto mais vagabunda parecer, melhor.
Leonard deu de ombros. Seus olhos captaram direto o alçapão que dava direto para o que parecia ser o porão. Suas mãos firmes seguraram a alavanca e puxaram, revelando uma escada que conduzia direto para o subsolo.
— Se não se importa, estou indo na frente.
Contrastando com a madeira do chão, as escadas eram feitas de pedra lisas e frias, como as paredes. Era difícil acreditar que um lugar no meio do nada poderia ter um esconderijo tão bem-feito daquela forma. Apesar da sua inteligência, não conseguia mensurar quanto tempo aquilo estava lá.
Ao chegar no subsolo, a sensação sinistra que vinha daquela área sempre o surpreendia. Algumas lamparinas de cristal cintilante deixavam a luz baixa, apenas com o suficiente de iluminação para distinguir as coisas. Na parede, uma ilustração dos órgãos humanos, junto com seus meridianos. As prateleiras tinham pequenas lâminas de aço altamente afiadas, acompanhada de tigelas de vidro, tubos de ensaio cristalinos, frascos de álcool e desinfetante, poções e pílulas com as mais variadas cores.
Do outro lado, amostras dissecadas de órgãos estampados em agulhas sobre uma tábua, ao lado de um recipiente cheio de formol, conservando o que parecia ser o cérebro de alguma monstruosidade.
Os olhos do jovem mestre estavam fixados naquela espécie de laboratório bizarro. Porém, o que chamou realmente sua atenção foi a maca inclinada verticalmente no centro daquela sala. Uma chama de metal, com diversas ataduras prendendo um homem pálido e em estado catatônico, com seu tórax sendo mantido aberto por vários suportes metálicos atados a maca.
— Quem é esse cara, Malvius? — perguntou Leonard, sem tirar os olhos do homem.
— Um huaxiano que entrou em Santa Marília a alguns meses. Seus homens o trouxeram para cá semana passada quando eu precisava de alguém para fazer uns testes.
Leonard cruzou os braços.
— Sem a minha permissão? — o jovem focou sua atenção no velho. — Perdeu o juízo? Meus homens obedecem apenas a mim e a quem eu delego autoridade! Mantenha seus negócios fora das atividades deles.
Malvius colocou suas luvas de couro em mãos, ocultando a tatuagem de uma palma escura próxima ao seu dedão.
— Eles só me fizeram um favor. Você sabe muito bem o quão é valiosa nossa parceria, jovem mestre.
— É mesmo? Houve um processo de prisão formalizado? Um processo de extradição ordenado pelo regente? Qual crime ele está respondendo? Aposto que você não pensou nisso antes de tirar alguém da cidade. E se ele estiver sendo apadrinhado por algum dos nobres? E se derem falta dele e começarem a cobrar seu paradeiro? Pensou em tudo isso, Malvius? Vocês da Mão Sombria só se importam com o resultado, mas não com a porra do processo!
O olhar perigoso do alquimista na sua frente demonstrava o quão pouco ele tinha levado aquelas palavras em consideração. Porém, incapaz de sequer tocar em um fio de cabelo do seu benfeitor, resolveu apenas cruzar os braços.
— Tenho certeza que o “príncipe” de Santa Marília não viria até aqui só por causa de um zé ninguém.
Após respirar fundo, vendo que estava causando uma cena sem motivo, retirou do seu bolso uma pequena caixa de madeira. Ao abri-la, um brilho causou um pequeno clarão naquela sala mal iluminada. Os olhos de Malvius brilharam ao ver as pílulas perfeitamente moldadas e radiantes.
— Aquilo deu certo mesmo? A operação na Selva de Concreto?
Leonard deu de ombros.
— Mais ou menos. Não é a Pílula do Reflorescer Eterno, mas eu consigo sentir uma energia divina poderosa nisso.
O alquimista ergueu suas mãos lentamente, tomando as pílulas para si. Seus olhos brilhavam, pensando em todas as possibilidades que poderiam ser feitas com aquilo. Apenas em consumi-la, o usuário já teria uma abertura plena dos meridianos. Se infundisse com alguns dos seus coquetéis, poderia criar um espécime muito mais próximo da perfeição.
— Você realmente trouxe algo muito bom para cá, jovem mestre. Se eu combinar a energia presente nessas pílulas com as Pílulas da Mutação Sanguínea, seus soldados poderão ter um aumento exponencial de poder, fazendo a minha versão anterior parecer nada mais além de lixo. Não queria uma armada de supersoldados pronto para seguir qualquer comando seu, incluindo lutar contra as Grandes Famílias?
— Que bom que está animado, Malvius. Tem mais um carregamento desse chegando em breve. Cumpra sua parte no acordo e vou garantir que você tenha quantas cobaias desejar.
Cuidadosamente, o alquimista fechou a caixinha e a guardou em um dos seus armários.
— A Mão Sombria sempre cumpre o que promete, senhor.
Leonard virou sua atenção mais uma vez para o Huaxiano na maca.
— Malvius, me lembrei de algo que talvez possa te interessar: outro dia, teve um Huaxiano fazendo perguntas sobre a Mão Sombria para um dos meus associados. Inclusive, ele tem dado algum trabalho para meus homens ultimamente. Tá sabendo de alguma coisa que eu não sei?
O alquimista frisou os olhos.
— Como ele sabe da Mão Sombria? Ele faz parte de alguma guilda? Será que ele é um investigador imperial?
Impaciente, o jovem mestre negou com a cabeça.
— Não. Se fosse, conseguiria muito mais coisa agindo abertamente. Talvez seja um agente isolado que tenha algo contra vocês. Ou investigador particular, embora eu duvide que agiria de forma tão agressiva quanto aquela. Fora isso, ele não parece ter medo de mostrar a cara. Trabalha em uma fazenda, vive pelo distrito comercial e rural, não faz muitos movimentos suspeitos.
— Não dá para dar o seu jeito? Alguma acusação ou algo parecido? Pedido de extradição, talvez?
Leonard cerrou o punho.
— Um dos meus homens que o confrontou disse que ele aparenta ter conhecimento da lei imperial. Não dá para cometer vacilos agora, ainda mais que tá vindo um Investigador Imperial para cá. Se algo chamar a atenção dele, é só questão de tempo até todo mundo cair.
Malvius cruzou os braços, pensando no que poderia fazer. Haviam poucas pessoas que sabiam da sua localização, então uma retirada rápida poderia ser a melhor estratégia. Em três horas, ele conseguiria encher uma carruagem e se mandar dali. Porém, sabia que poderia esquecer qualquer forma de conseguir mais daquelas pílulas se abandonasse seu posto.
Então, sua mente sombria formulou um plano.
— Leonard, e se matássemos dois coelhos com uma cajadada só?
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Linha do Tempo, caso esteja perdido:
22 de Maio: Huan Shen entra em contato com a investigadora aposentada pela primeira vez. Naquela noite, enfrenta um pequeno grupo de milicianos.
24 de Maio: Leonard mata Samir e recupera suas pílulas.
26 de Maio: Leonard retorna a Santa Marília (Capítulo que você está lendo agora).

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