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    O sino na porta da apoteca tocou suavemente, acompanhando os movimentos das pessoas que a adentravam. O lugar era muito bem iluminado, com basculantes e janelas bem posicionadas para captar o máximo possível da luz solar. As paredes brancas causavam um contraste com os frascos coloridos que residiam nas prateleiras de mármore. O cheiro de camomila e lavanda davam uma leveza naturalista ao ambiente, relaxando qualquer cliente que adentrasse o estabelecimento.

    Joanne gerenciava aquele estabelecimento há cinco anos, conseguindo transformar o que era um casebre no meio de Baco em um estabelecimento respeitável. Ao escutar o som de possíveis clientes, correu imediatamente para atendê-los. Porém, foi pega completamente de surpresa.

    — Por que nunca me trouxe em um lugar bom como esse? Tive que ficar quase meus quatro meses inteiros em uma fazenda! — reclamou Lily, enquanto admirava o lugar.

     — Você não estava pronta. Do jeito que sua atenção é tão sólida como água, você não conseguiria prestar atenção nas lições estando em um ambiente movimentado como esse — respondeu Huan Shen.

    — Não é porque você está certo que eu vou te dar razão — murmurou a garota.

    Vendo como aqueles visitantes estavam ficando acomodados, a moça resolveu se intrometer o mais cedo possível.

    — Com licença, mas aqui não é uma farmácia e sim uma apoteca — disse ela, tentando não soar desrespeitosa. — Se estiverem procurando tônicos, remédios ou pílulas de recuperação, eu tenho um estudante muito bom que você pode encontrar na Avenida de Asclépio. Pode dizer que fui eu que mandei e ele vai te auxiliar.

    — Não, moça! Nós estamos-

    Antes que Lily pudesse continuar, o emissário estendeu sua enorme mão na sua frente, fazendo-a se calar, confusa. Então, o mesmo deu dois passos à frente e ficou a apenas alguns centímetros de distância da pobre apotecária, que sentiu seu corpo paralisar com a diferença de quase quarenta centímetros na altura.

    — Eu sei ler, senhorita. Estamos exatamente onde queremos estar.

    “Como é que gente interiorana tem uma predisposição irritante a ser insuportável?”

    Havia algo ameaçador na forma como aquele homem movia seus dedos. Eles se contraiam constantemente, como se estivessem exercitando suas próprias flexibilidades, caso precisassem agir rapidamente. Sua mão, apenas uma, parecia ser capaz de envolver seu pescoço de uma ponta à outra. A cabeça dela fez uma inclinação na qual não estava acostumada apenas para encarar os olhos azuis e penetrantes do emissário, que pareciam prestes a congelá-la.

    — E-entendi, senhor. Como eu posso ajudá-lo? — questionou ela, se movendo para trás do balcão o mais rápido possível.

    Lily virou sua atenção para Huan Shen.

    — Precisava intimidar a moça desse jeito? Ela vai achar que somos assaltantes! — sussurrou a garota.

    “Ela deve achar isso de todo mundo que pareça pobre.”

    O emissário fez um sinal negativo com a cabeça, como se não quisesse dar atenção a assuntos triviais.

    — A minha… — ele encarou a garota brevemente — pupila aqui terminou de aprender a dominar seus meridianos. Porém, ela não recebeu a suplementação necessária durante seu treinamento além da alimentação básica. Eu quero três Pílulas de Força Vital e uma Pílula de Consolidação Profunda.

    Aquelas palavras atiçaram a curiosidade de Joanne.

    — Você seria um instrutor de magia? Tão novo?

    O emissário deu de ombros.

    — Não tenho um mestrado, mas sei uma coisa ou outra. Tenho um bom conhecimento sobre fundação também. E aí, vai me “roubar” quanto por essas pílulas?

    A apotecária franziu os olhos.

    — Eu tenho algumas prontas aqui. Faço cada uma por duzentos draconis e a Pílula de Consolidação Profunda será uns trezentos.

    A garota olhou para o seu professor. Embora estivesse constantemente próximo a ele, não fazia ideia de quanto dinheiro ele carregava por aí.

    — Não serve. Ela precisa tomar as pílulas ainda frescas, com no máximo uma hora após estarem estabilizadas. Você é só apotecária ou é alquimista também?

    — Meu irmão é, mas ele não está na cidade no momento. Acho que não vou poder te ajudar nessa…

    Huan Shen suspirou. Embora tivesse um ótimo fundamento nos conceitos da magia e até mesmo alquimia, não tinha conhecimento o bastante para produzir pílulas ou outros artigos místicos.

    — Espera! Eu tenho uma amiga que talvez possa ajudar você! Ela entende melhor disso do que eu.

    — Isso é ótimo! Onde podemos encontrá-la?

    — Ela está aqui comigo! Só um momento, irei chamá-la.

    Em alguns passos, a moça desapareceu no fundo da loja, deixando apenas os dois clientes ali.

    — Me tira uma dúvida: você é rico ou pobre? — questionou Lily. — Você nem mesmo piscou quando ela disse que custaria quase mil draconis.

    — Digamos que eu não precise gastar muito do que eu ganho. Que foi? Achou mesmo que todos aqueles serviços caros que realizo no sítio saem de graça só porque estão nos abrigando? Mas não se preocupe, vou mandar a conta para seus pais assim que te entregar para eles.

    Aquelas palavras trouxeram um conforto para Lily. Do desespero, falta de esperança e horror absoluto para a promessa de um novo futuro, a jornada que Lily enfrentou foi tudo menos convencional. E quando partissem no dia seguinte, toda aquela aventura estaria sendo finalizada. Embora desejasse seguir viagem junto com Huan Shen mundo afora, ela sabia bem que suas realidades não eram nem um pouco compatíveis, não naquele momento. Era necessário trilhar seu próprio caminho antes.

    — Aqui está ela — disse Joanne, acompanhada.

    No instante em que seus olhos se chocaram, os dois pararam por alguns segundos. Foi um breve momento, mas ambos tentaram tirar o máximo possível de informação um do outro, antes de voltarem ao mundo real.

    — Você é mesmo o instrutor dessa garota? — disse Denise, olhando-o de cima à baixo.

    — Você é mesmo uma alquimista? — respondeu, olhando-a de cima à baixo.

    Uma tensão surgiu no ar. Embora invisível, era forte o suficiente para fazer tanto Lily quanto Joanne se moverem instintivamente para trás das prateleiras. Denise conhecia aquela face, pois era a mesma que estava no retrato-falado em cima da mesa da sala de estar dos Bakir. Era aquele homem que Leonard estava tão ansioso em capturar.

    — Quatro pílulas frescas para alguém tão jovem e recém-desperta? Está querendo matá-la?

    O emissário percebeu a mão esquerda da garota se movendo lentamente em direção a bolsa em sua cintura.

    — Magos que não se adaptam, acabam perecendo. É apenas a realidade desde que o mundo é mundo — respondeu friamente.

    Um passo. Foi tudo que Denise precisou fazer para emendar um avanço que encurtou quatro metros em uma fração de segundos. Suas palmas alvejaram o rosto do homem, enquanto a bolsa em sua cintura se abria.

    Ordem Sulfúrica: Lago de Fogo e Enxo-

    — Você não vai querer concluir esse feitiço — respondeu Huan Shen.

    Quando percebeu, notou que suas mãos não estavam grudadas no rosto do seu alvo. Em vez disso, ambas estavam sendo contidas pelas mãos do seu oponente, que segurava firmemente os seus braços.

    — O-o quê? Como? — questionou ela, ultrajada e confusa.

    Ele juntou os braços da moça, segurando-os apenas com a mão esquerda. Infelizmente para ela, a força deles era igualmente opressiva.

    — Diferença de habilidade, eu acho — respondeu ele, encarando a sua cintura.

    — O que você está olhando? Acha que não consigo dar um jeito em você só porque não consigo usar as mãos?

    — Não…

    Erguendo seu braço direito, isso consequentemente levantou a Denise do chão, que começou a espernear. Joanne observava tudo aquilo em silêncio, com medo de ser a próxima. Huan Shen, por sua vez, precisou de apenas um puxão para retirar a bolsa presa na cintura dela.

    — …acho que você não vai conseguir me dar um jeito sem isso daqui.

    — EI! ISSO NÃO TE PERTENCE! ME DEVOLVE AGORA OU EU JURO QUE QUEM A FEZ NÃO VAI TE DAR UMA MORTE TRANQUILA, APÓS VOCÊ TER TOCADO EM UMA DAS SUAS ESTUDANTES E ROUBADO SEU ITEM MAIS PRECIOSO!

    O emissário olhou a parte externa da bolsa de um lado a outro, sentiu a textura do couro e infundiu um pouco da sua mana nela, sentindo os componentes que estavam lá. Finalmente, colocou Denise de volta no chão.

    — Ficou com o cu na mão, desgraçado? — questionou Denise, tomando a bolsa da mão do emissário.

    — A Ayotunde ainda leciona? Ela já parecia cansada no meu tempo — respondeu ele, casualmente.

    — Você não deveria falar da professora com tamanha informalidade…peraí, você conhece a Mestra Ayotunde? Não! Pior ainda, como você sabe que eu fui aluna dela?

    — Eu não sabia que você era aluna, só perguntei se ela ainda lecionava. Respondendo suas perguntas: sim. Eu a conheço. Ela me emprestou alguns livros sobre teoria mística pura e aplicada, que infelizmente ainda não tive oportunidade de devolver. Sua bolsa não só tem uma textura rugosa e escamosa, mas tem um bom isolamento arcano, para não evitar vazamentos ou decaimento dos materiais. Isso é couro de serpe, algo que a maioria dos alunos fora do círculo de Hecathia não podem bancar.

    Os dois se encararam em silêncio por alguns segundos, enquanto Joanne e Lily não tinham a menor noção do que poderia acontecer a seguir.

    — Que dedução brilhante… — respondeu Denise, ainda incrédula.

    “Na verdade, eu não precisei deduzir tudo isso. Só olhei no cantinho da bolsa, que tinha as iniciais de Babatunde Hecathia, um artesão bastante conhecido. Só essa parte já diz bastante coisa.”

    — Então, vai me ajudar com as pílulas ou isso é demais para uma das aprendizes da Ayotunde? 

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