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     Debaixo da lua e do céu estrelado, Huan Shen passava mais uma noite em claro. O limiar da meia-noite já tinha sido cruzado e todos dentro da casa estavam dormindo. Parecia que seria mais uma noite tranquila, como todas as anteriores. Porém, não conseguia deixar para trás a sensação de desconfiança.

    “Que sensação estranha…tomara que passe logo de manhã, para que eu só saia desse lugar o mais rápido possível.”

    Estava na hora de começar o seu treinamento noturno, pois era o único tempo durante o dia que poderia se dedicar a isso. Enquanto se dirigia até a árvore em que costumava se isolar para treinar, acabou passando na frente do celeiro. Para sua surpresa, a entrada estava destrancada. Normalmente, ele garantia que o lugar deveria estar fechado com seus cadeados, porém como tinha passado o dia fora do sítio, lembrou que ocasionalmente Lehman tinha a mania de esquecer de trancar as coisas.

    Apenas por precaução, ele olhou para a parte interna do celeiro, mas estava muito escuro para ver alguma coisa. Sua audição não captou nenhuma respiração ou qualquer tipo de anormalidade. Não tinha nem mesmo qualquer rastro de mana nas proximidades.

    “É, me preocupei atoa.”

    Suas mãos fecharam os portões e envolveram as grossas correntes de aço. Porém, o cadeado estava desaparecido. Ele olhou ao redor, mas não o achou. Aquilo o fez erguer uma sobrancelha, mas tinha a possibilidade também do cadeado ter sido danificado e não possuir nenhuma loja aberta no momento para comprar outro.

    “É estranho…são coincidências demais!”

    Como não tinha sentido ninguém, Huan Shen apenas enrolou as correntes nas portas para mantê-las fechadas. Então, correu até o seu local de treinamento favorito. Debaixo da amendoeira, as marcas dos seus passos firmes ainda se destacavam na grama baixa. Sem nada além da sua calça, o vento frio da madrugada percorria sua pele bronzeada e balançava seus cabelos, que não sabiam o que era uma lâmina há mais de um ano. Seu rosto portava uma barba mal feita, pois não se importava muito com como ela se parecia.

    “Vamos trabalhar a energia interna hoje. Não quero exaurir meu corpo.”

    Huan Shen se sentou encostado na árvore, assumindo a posição de lótus. Assim que seus olhos se fecharam, sua mente mergulhou nas profundezas do seu espírito, expandindo sua consciência a um nível de reflexão profunda. A mana circulava em harmonia em seus meridianos, expandindo cada um deles e elevando seu poder ao limite. Mesmo sendo apenas uma demonstração sutil, a grama ao seu redor começava a ter pequenas camadas de geada acumuladas em sua superfície.

    Então, uma voz familiar surgiu em seu subconsciente:

    — Sentiu minha falta, garoto?

    — Como eu vou sentir sua falta se você some do nada e reaparece quando quer, Fada? — respondeu Huan Shen, dentro da sua consciência.

    — Affs, poderia ter sido um pouco mais condescendente com o meu sumiço. Afinal, da última vez que nos vimos, você estava meio que… morto.

    — E você me reviveu como a porra de um zumbi, não se lembra? Custava ter devolvido meu corpo original? Eu poderia ter morrido pra valer ali, sabia?

    — Não dizem que os deuses escrevem certo por linhas tortas?

    — Mas você não é um deus, Fada.

    — Exato! Diferente deles, eu não preciso de linhas. Já parou para pensar o quanto você mudou nos últimos quatro meses? Está se alimentando direito, voltou a treinar e meditar, está tutorando uma garota nas artes místicas, está inclusive se envolvendo com outras pessoas. Para o homem que cortejava a morte e o vazio existencial, essa é uma mudança considerável.

    Se teve algo que Huan Shen aprendeu nesses últimos tempos era de que em algum momento sua morte iria acontecer. Não era um aviso ou uma ameaça, mas uma promessa inquebrável. Apesar disso, entregar tudo ao acaso e desistir sem lutar era desprezar todo o seu trajeto de vida até aquele momento, com todas as coisas que alcançou e todas as pessoas que o ajudaram a compor tudo aquilo.

    Ainda havia muita coisa para ser feita. Encarar o passado era uma delas.

    — Posso ver que a criomancia já entrou em plena sincronia com seus meridianos. Como está se sentindo?

    — Ainda tô me acostumando. Não consigo ser tão criativo ou nem mesmo criar uma magia usando tamanha energia, já que a minha real especialidade é o uso de Aura. Tirando aplicações básicas de manifestação, sinto que não estou nem perto de atingir o mesmo potencial que a Xue Lan.

    — Mas isso é bom! Vocês são essencialmente diferentes, além de terem práticas quase que opostas. Ela era leve, suave e veloz, dançava com seus inimigos, tecendo uma teia frígida que o oponente só percebia a armadilha quando já tinha caído nela. Para ela, a criomancia era uma extensão da sua própria persona. Você é feroz, direto e brutal. Um tigre esmagando sua presa. Sua criomancia deve corresponder ao seu estilo, não uma forma de emular a dela. Se você a considera uma ferramenta, então ela vai ser uma ferramenta.

    — Isso é mais sabedoria do que eu esperava de você, Fada.

    — Viu? Algumas vezes eu posso ser um farol. De qualquer forma, você não tem treinado o seu Sangue Herético e o seu Corpo Vazio. Admiro sua dedicação à criomancia, mas você não pode negligenciar o resto.

    — É possível treiná-los de forma efetiva?

    — Claro que sim! Eles não são meramente características, são recursos que podem efetivamente se tornarem mais fortes conforme você os treina. Só tem como aprimorá-los através do uso constante.

    Não existia outra forma de treinar o Corpo Vazio sem usá-lo, porém a maioria dos confrontos não exigiam o uso dela. Além de que toda vez que era utilizada, sua reserva de mana era exaurida e seu corpo ficava completamente acabado. E o Sangue Herético era algo que nem mesmo ele entendia direito. Como ele ia usar o próprio sangue?

    — Meu tempo aqui acabou, Grey. Quando eu sentir vontade, apareço novamente. Vê se não morre novamente.

    O emissário abriu os olhos e percebeu que tinha passado um tempo considerável em sua mente. Sua energia interna parecia estar mais forte, como se fosse um pequeno presente por aquele momento compartilhado.

    Seus olhos cansados se abriram, deparando-se com os primeiros raios de sol. O chão ao seu redor tinha grossas camadas de neve ao redor que derretiam suavemente, regando o solo. Seu interior parecia mais puro, quase tão leve que poderia flutuar.

    Estava na hora de tomar um banho, comer alguma coisa, pegar suas coisas e ir embora. Era a melhor coisa que poderia fazer, antes que as coisas piorassem naquela cidade. Ele já tinha um norte para onde seguir.

    Ao passar na frente do celeiro, viu algo estranho: a entrada estava aberta novamente. Ainda não estava na hora dos trabalhadores chegarem no sítio e estava cedo demais para os Kushinov entrarem. Também não havia indícios de que alguém tinha saído de casa.

    “Eu não estou gostando disso…”

    O emissário olhou a corrente no chão, próximo às marcas de passos firmes adentrando a região interna. Cauteloso, suas mãos começaram a emanar energia frígida, prontas para manifestar qualquer arma que o emissário quisesse. Sem hesitar, ele adentrou o local, com seus sentidos prontos para detectar qualquer ameaça.

    A princípio, nada fora do comum. As sacas de grãos, os equipamentos de trabalho e as carroças permaneciam no mesmo lugar. Os cavalos permaneciam tranquilos no estábulo e algumas ovelhas tinham despertado. Tudo parecia bastante normal.

    Então, por que o cheiro familiar de sangue agitava o seu nariz?

    Um pequeno machado congelado surgiu na sua mão direita. Se fosse uma ameaça, ele seria o primeiro a atacar, seja de perto ou de longe. Ao chegar próximo ao palheiro, se deparou com um rastro de sangue que o guiava até a parte mais escura do celeiro. Lá, suas suspeitas se tornaram realidade.

    Um corpo. Homem, pele clara e no final dos seus quarenta. Seu corpo estava rígido, mas o processo de putrefação mal tinha começado, indicando que ele havia sido morto a menos de seis horas. Seus olhos azuis ainda estavam arregalados, com algumas moscas voando sobre ele. Graças aos seus sentidos místicos, Huan Shen identificou traços de magia sobre o corpo dele. Porém, a pior parte era o que ele estava vestindo.

    Calça de lã azul-escuro, botas pretas de couro de alta qualidade, um casaco militar de alta patente de lã, que combinava com a calça e tinha as bordas douradas. No lado esquerdo da região do peito, tinha um broche dourado com o símbolo de um leão, a insígnia do Santo Império.

    Aquele homem era um Investigador Imperial. E estava com um buraco no peito. Pior ainda: estava no sítio de um fazendeiro no interior de Santa Marília.

    Haviam hematomas espalhados por todo o seu corpo. Alguns dos seus dedos estavam quebrados, visíveis através da luva rasgada sobre suas mãos.

    “Fudeu…fudeu, fudeu, fudeu! FUDEU! FUDEU PRA CARALHO! F U D E U A P O R R A T O D A!”

    Só em imaginar as implicações políticas e judiciais que aquilo teria, era um pesadelo completo. Não havia tempo para pensar, pois não demoraria para as pessoas notarem que um membro do Santo Império desapareceu. Era melhor conversar com os Kushinov e passar o que sabia antes das coisas piorarem.

    — Tenho que cair fora daqui antes que eu me foda!

    Transtornado, o emissário saiu pelos portões do celeiro, apenas para escutar passos rodeando a casa.  Passos ritmados, com armas em punhos e sussurrando ordens para fazerem uma varredura no terreno. Eram cerca de dez a vinte pessoas. As coisas ficariam complicadas em breve.

    “Se eu conseguir correr, não vai ser difícil despistar esses caras. Eles também não são combatentes tão bons e dependem muito das suas armas de fogo. Em menos de uma hora, consigo estar fora das fronteiras do Santo Império, se for na direção da Selva de Concreto.”

    Era uma decisão fácil, rápida e tática. Não havia tempo a perder e o que deixasse ali, poderia dar um jeito de recuperar depois. Tudo que importava ali, era sobreviver para lutar mais um dia.

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