Índice de Capítulo

    O dia mal tinha começado e já estava completamente condenado a ser ruim para Anastasia. A detetive encarava um dos vários quadros da família Kushinov, revivendo as lembranças da infância onde ia para o mesmo colégio que a Olga, a filha mais velha deles. O cheiro de cedro e alfazema traziam lembranças nostálgicas da época em que chegava a passar até quatro noites dormindo com aquela família quando sua mãe estava dormindo em seu escritório.

    Ya prinesla tebe nemnogo kofe, moya plemyannitsa — disse Marilda em siberiano, aproximando-se da detetive.

    Com as duas mãos, Anastasia segurou a xícara em mãos. Era a primeira coisa quente que tinha sentido desde o momento em que acordou.

    Spasibo, tyotya Marilda! Kak dyadya Lehman?

    On s drugimi politseyskimi.

    Uma sensação de aflição pairava naquela humilde residência. Aproximadamente sete policiais reviravam os cômodos, procurando qualquer coisa que pudesse apontar como uma prova de um crime misterioso.

    — O que está acontecendo aqui, Anastasia? Por que esses homens estão revirando nossa casa de cabeça para baixo?

    — Recebemos uma denúncia anônima sobre um crime ocorrido dentro do seu sítio. Eu também não tenho muitos detalhes, pois o comissário mobilizou a maioria do pessoal na polícia para cá. Não apenas isso, mas o pessoal da milícia também veio junto conosco.

    — Não gosto deles, são muito mal-educados — murmurou Marilda.

    Anastasia deu um sorriso, enquanto a confortava com a mão em seu ombro. Era triste ver alguém tão idosa e de reputação tão respeitável sofrendo uma invasão em sua propriedade de forma tão violenta quanto aquela.

    — Anastasia, não encontraram nada relevante durante a busca. Em nenhum dos quartos lá em cima também. Isso é estranho, pois os registros diziam que ele tinha chegado na cidade com uma garota…Ah, bom dia, Sra. Kushinov!

    — Ahmed! — exclamou Marilda. — Acordaram você a essa hora para investigarem o meu sítio?

    O detetive usava uma camisa social branca coberta por um casaco denso imperial, junto com sua calça marrom e gravata listrada, acompanhada pelo seu distintivo preso sobre o colar em seu pescoço. Ele já estava na faixa dos cinquenta, representado pelos fios brancos em sua barba bem-feita. Um traço cultural bastante comum no povo ismaelita.

    — Infelizmente, minha cara. Nenhuma consideração pelos velhos hoje em dia. Como vão as coisas? Quer dizer, sem contar o que está acontecendo agora.

    — Ah, algumas questões financeiras aqui e ali, mas nada que já não tenhamos passado antes. Como vai o seu filho? Ainda está estudando em Bela Vista?

    — Até onde eu saiba, sim. Na última vez que o vi, estava estudando para fazer o vestibular para Engenharia. É um garoto com potencial, está melhor com a mãe do que comigo.

    — Manda lembranças quando for visitá-lo. Diga que a tia Marilda mandou um abraço.

    — Ele ficará sabendo, obrigado.

    Embora o clima tenha ficado levemente menos opressivo, ver a casa de uma pessoa tão honesta sendo revirada de um lado para o outro ainda dava aflição. As botas deixaram marcas no tapete, a coleção de louças estava completamente bagunçada e pelo menos dois pratos caíram no chão, os livros estavam fora do lugar e os quartos foram virados de cabeça para baixo.

    Indignada, Anastasia resolveu quebrar o silêncio e ir até Tarasov, que parecia estar orientando dois policiais.

    — Com licença — disse ela, impaciente.

    O comissário pensou em dispensá-la, mas sabia que ela não iria arredar o pé dali enquanto não desse a devida atenção.

    — Detetive Volkova, já achou algo útil para nossa investigação? — questionou Tarasov.

    — Eu poderia achar se soubesse o que estamos procurando! Você convocou toda a força policial para cá e mandou fazermos uma varredura sem um objetivo, com um mandato providenciado em uma velocidade inexplicável e ainda por cima com força ostensiva de apoio. Que diabos está acontecendo?

    — Olha o tom, detetive! — vociferou ele, enquanto tentava manter a compostura. — Eu simplesmente recebi uma denúncia de que um crime estava acontecendo por essas áreas e mobilizei toda a força possível, pois achei necessário.

    Seus olhos ficaram estarrecidos, de tão incrédula que ela estava com aquelas palavras.

    — Em resumo: você mobilizou uma força policial ostensiva, junto com a milícia, para revirar e bagunçar a casa de um casal que nunca teve uma única pendência criminal, nem por atraso de pagamento, por causa de um “suposto crime”?

    — Olha, se está descontente com o que está acontecendo aqui, você pode pegar suas coisas e tirar seu dia de folga, detetive. Em breve as provas irão aparecer e vamos dar continuidade com o caso. Não preciso de alguém que passe o dia inteiro me enchendo a paciência!

    Anastasia semicerrou os olhos.

    — Como assim “em breve as provas aparecerão”? Como você tem tanta certeza que existe alguma coisa aqui, comissário?

    Tarasov cerrou os punhos, como se estivesse prestes a descontar sua raiva em alguém. Vendo aquilo, Ahmed imediatamente se moveu na direção dos dois e a pegou pelo ombro.

    — Comissário, acredito que a equipe externa já tenha relatórios prontos para entregar sobre a varredura que fizeram. Podemos acabar em uma situação complicada caso demoremos demais aqui. Se não encontrarmos nada incriminador, eles poderão recorrer judicialmente por procuração duvidosa e isso vai ser péssimo para a nossa delegacia.

    Tarasov estava por um fio. Tudo que recebeu na noite anterior foi uma ordem de Leonard para ir até o sítio dos Kushinov e prender o forasteiro que estava lá. Com sorte, até mesmo executá-lo caso resistisse. Teve que usar todos os favores possíveis para conseguir aquele mandato para justificar a invasão de propriedade. E mesmo com tudo isso, não havia nada naquela casa que validasse a sua permanência lá. Naquele momento, o forasteiro poderia até mesmo ter fugido.

    — Escuta aqui, detetive Al-Amin! Eu…

    De repente, passos pesados caminhavam para dentro da casa pela porta dos fundos, chamando a atenção de todos ali dentro. Alguns segundos depois, aquela figura enorme se posicionou no meio da sala de estar. Os policiais o encaravam com um misto de temor e dúvida, como se sentissem uma ameaça latente presente em sua persona.

    O emissário varreu seu olhar de um lado para o outro, com um semblante rígido e ameaçador. Seus olhos, agora castanhos-escuros, eram tão ferozes quanto os de um tigre prestes a atacar sua presa. Seus dedos moveram-se lentamente, como se estivessem prestes a avançar em alguém.

    Para a surpresa de todos, o homem se ajoelhou e ergueu as mãos para o alto, colocando-as atrás da cabeça. Tarasov, vendo a oportunidade, sacou sua arma e apontou para Huan Shen, seguido de todos os outros seis policiais dentro da casa.

    — Fique onde você está, desgraçado! — bradou o comissário. — Nem pense em tentar reagir, senão você vai pro inferno mais cedo!

    Seu olhar permanecia sobre no chão, incapaz de olhar Marilda nos olhos. Embora fosse inocente, saber que toda a bagunça causada na casa e o terror que aquele casal passou com uma invasão desrespeitosa e repentina da polícia eram sua culpa o deixava envergonhado.

    Ao ser algemado por grossas correntes de aço, o emissário não apresentou nenhuma forma de resistência. Dois policiais o pegaram por cada braço para erguê-lo. Tarasov se aproximou do mesmo, tendo que inclinar sua cabeça por causa dos vinte centímetros de diferença entre ambos.

    — Acabou pra você, sukin syn! Achou mesmo que a justiça não viria atrás de você? Styervo de merda!

    O emissário respirou fundo, parecendo até ficar mais alto por alguns segundos.

    — Então porque não diz para todos aqui do que estou sendo acusado? — questionou Huan Shen, com um tom sereno.

    De repente, todos os policiais pararam e olharam na direção do comissário, pois ninguém ali também sabia sobre o porquê de estarem ali revirando aquela casa. O comissário percebeu que se não desse uma resposta urgente ali, tudo poderia ficar bem pior.

    Então, como um milagre, um dos milicianos entrou pela porta da frente e sussurrou algo em seu ouvido, o suficiente para fazê-lo respirar aliviado.

    — Você está preso pelo assassinato de um investigador imperial! Não espere misericórdia das mãos do Santo Império.

    Nota: O idioma estranho aí é russo.

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