Alexandro era um homem desprezivelmente infeliz. Ele mal tinha dinheiro e ainda era CLT numa escala 6×1, com 12 horas de carga horária, e com um vale transporte que mal durava até o fim do mês, pegando ônibus às 22h para ainda levar quase 1 hora até chegar em casa.

    Sua caminhada estreita não era senão a maior representação de cagaço por ter que andar naquela rua escura. Um arrepio seguido de uma gota de suor frio que escorre do meio das costas até a bunda surgiu: a sensação de que algo daria errado. Alexandro olhou para trás, naquele breu de rua, e para as lâmpadas mal-iluminadas dos postes que ainda piscavam para colaborar. Seu sexto sentido apitava… mas nada aconteceu.

    Suspeito de que podia estar sob efeito da leitura rápida do seu horóscopo do dia, mesmo que nem sequer acreditasse bulhufas nessa besteira, mas agora, para a situação que estava, fazia todo sentido acreditar. A mensagem do horóscopo era direta e simples, “hoje será miserável”.

    Não, não tem nada disso, eu devo estar maluco. Superstição. Isso, apenas superstição… Já, já, chego em casa e vou dormir minhas três horinhas e… é… repetir mais um dia de trabalho…

    O CLT continuou sua marcha infeliz para sua tão amada sarjetinha de 20m², só que não deixava também de olhar de um lado para o outro, às vezes para cima e para baixo, até mesmo para a sua cueca, só para se preparar com o que poderia fazer seu dia miserável. Felizmente, as coisas permaneceram calmas, exceto pela sua cueca, mas era agora a hora de virar a esquina, onde ficava um cemitério, daqueles tenebrosos de muro branco pichado e de portão de ferro que afastava qualquer vivo. 

    Alexandro conhecia tão bem esse lugar quanto o próprio pai; nada. Sua garganta, agora seca, rasgava como navalha com sua engolida. Passando de mancinho pela entrada, avistou luzes vindo de dentro, atiçando sua maldita curiosidade. Quem em sã consciência iria para um cemitério no meio da noite, lugar onde você poderia encontrar um maluco, o diabo saindo da tumba ou até mesmo um político para sugar o resto de felicidade que ainda restava?

    Agonizado pela sua curiosidade e desejando saber que tipo de pessoa estaria lá, ainda foi conferir. Se pendurando no muro branco sujo de pichação e mijo de mendigo, ele viu aquilo que faria o queixo de qualquer um cair. Entre as lápides, havia uma mulher de cabelo curto escuro que — de acordo com o que os olhos de Alexandro focaram — estava com roupas pretas dos peitos aos pés, posicionada no centro de um círculo vermelho rodeado de velas acesas, enquanto seus pulsos derramavam sangue que terminava o desenho no chão.

    É claro, a maioria das pessoas consideraria tudo isso bizarro, especialmente se ouvissem que havia uns grunhidos sobrenaturais saindo da garganta dela, e fugiriam imediatamente.

    Só que o Alexandro… Bem, o homem tava só o tesão.

    Essa mina não era qualquer uma, era uma gótica de coturno plataforma de couro escuro com um rabão do tamanho do mundo. Qualquer terraplanista mudaria de ideia que o planeta em que vivemos era uma chapa reta se olhasse para aquela sequência de Fibonacci perfeitamente moldada pela mão do Capeta que era a raba dela. E não só pela aparência sensual, até o gingado suave dos quadris dela era capaz de hipnotizar multidões se alguém visse; aquela mina era o sonho de um pobre CLT que desejava desistir da vida.

    Sem demora, ele puxou o celular do bolso e tirou uma foto. Aquela gótica parecia maluca? É óbvio. A aparência dela gritava problemas psicológicos e daddy issues? Sim! Havia altíssimas chances dela matá-lo nessa situação? Sem sombra de dúvidas, mas talvez fosse por tudo isso que se tornava impossível de não querer ela. Não havia força maior neste momento que o tesão de Alexandro. Era o parafuso solto que dava o tempero que ele precisava em sua vida.

    Alexandro observou o ritual com olhos vidrados e uma atenção mórbida aos murmúrios da gótica, que balançava as mãos como se estivesse possuída. As lápides e o chão tremeram, um vento frio atravessou o homem pendurado no muro, quase como a garra que buscavam a alma do corpo. Claro, para ele, foi apenas uma ventania estranha, então olhou mais um pouquinho para decidir se ainda dava no pé, mas, quando pensou que comer essa musa com os olhos era coisa de esquisito e poderia gerar mal entendido, decidiu sair. 

    Ao que descia a esquina para sua casa, seu passo apertado crescia, num desejo de se afastar daquele cemitério sem ser visto. Porém, infelizmente, no meio do caminho, ele tropeçou numa rachadura e cambaleou, fazendo-o cair em cima do seu novo celular guardado em seu bolso com todo peso. Creckt!

    Imediatamente, puxou o celular para fora e soltou:

    — NÃO! — A tela se estilhaçou toda, e seu lindíssimo iPhone comprado na OLX, sem garantia, com câmera de fogão quatro bocas se espatifou inteirinho. — Não, não! Eu ainda tô na segunda parcela!

    Para ele, foi como perder um filho. De joelhos, se lamentou, tocando levemente sobre a tela esbagaçada do seu celularzinho querido. Ele apertou nos botões laterais, na esperança de ver aquele raiozinho de luz da tela, digno da luz no fim do túnel, só que nada apareceu. Quem sabe o que mais quebrou, pior, e o preço do conserto e o tempo que ainda passaria sem acessar o Tik Tok e o X para se embriagar da dura realidade.

    Ao menos, não tinha mais nada de valor para se roubar deste homem. Agora com o iPhone debulhado e a fagulha de vida inexistente em seu espírito, não restava nada mais que um CLT de carteira vazia e de conta do Itaú zerada. Seus olhos marejaram conforme subia os lances de escadas para a lata de sardinha que era seu apartamento. Tudo o que precisava era do seu velho colchão no chão e a parede de tinta seca e carcomida que contrastava a pobreza com o grandioso setup gamer no canto do cômodo.

    Ele sentou na cadeira de escritório ergométrica e acolchoada — até porque ele muito ouviu que eram melhores que as gamers — em frente do seu poderoso pc gamer, com seu incrível Opera GX, com limite de RAM ativo, já aberto. Um suspiro fugiu de sua boca, ao ponto de colocar as mãos na testa e ficar imerso numa depressão de não poder visualizar o perfil do Insta daquela gótica rabuda. Ele não devia ter lembrado do horóscopo, que carregava a culpa de toda a bosta de hoje.

    — Porra… Ah, pelo menos dá para ver outra coisa, né? Né? — Confortou-se sozinho e acenou com a cabeça, rapidamente buscando outras coisas no PC.

    Procurou algo para sair do seu vazio inevitável de ter um PC gamer e não usá-lo para nada além de jogar LoL e games de décadas atrás que rodavam numa calculadora. Sem pensar duas vezes, ele abriu o seu detestável Lolzinho, no entanto, assim que ia para o lobby, a tela do pc piscou diversas vezes até uma tela azul surgir. E o golpe fatal foi o barulho de algo queimando de fundo e a tela escura tomar seu PC.

    Alexandro jogou a cadeira para trás ao ponto de derrubá-la, mas não foi tão alto quanto seu gritinho de moça. Ele correu para abrir o gabinete e ver o estrago. O PC gamer explodiu, a RTX novinha queimou e o RGB, que dava 20% a mais de performance gamer, agora era só uma vã lembrança. A sua melhor companheira foi de base antes mesmo dele morrer numa partida e socar a parede por causa disso.

    Mais uma vez o destino cobrou o homem de carteira assinada, no entanto, mesmo com outra perda lamentável, ele não deixou de pensar na raba, ou melhor, na gótica. Agora sem sua máquina para xingar os outros no X e sem o iPhone para esquecer da vida real no Tik Tok, tudo o que lhe sobrou foi um novo vazio imensurável, que era lentamente iluminado pela aparência da garota satânica — ou wicca, nunca se sabe —, com sua linda pele pálida de cadáver.

    Pô… Xonei naquela mina, memo…

    O rosto de Alexandro corou igual uma jabuticaba madura, então ele bateu na mesa do falecido computador e estufou o peito.

    — Cabô! Eu vou é chamar ela pra sair, agora! Perdi meu iPhone, meu pc, e ainda tenho trampo levantando peso e lidando com zé ruela por mais doze horas pra lidar. Chega, eu não tenho mais nada a perder.

    Numa bicuda no maior foda-se na porta, o CLT começou a descer os degraus do AP apenas para tropeçar logo de cara e ter todo a sua convicção destruída por uma longa queda rolando um andar inteiro abaixo. Com o conjunto certo de batidas, pelo menos umas contusões e uma costela quebrada ele garantiu, mas não teve jeito, o homem permaneceu firme em seu objetivo e se ergueu assim que pôde.

    Cheio de determinação nunca antes vista, e com a mão na lateral da barriga, ele estava ainda radiante. Na verdade, não houve nenhum outro momento mais radiante que este. Com o que podia, ainda forçou-se a correr ladeira acima.

    Uma luz iluminou de cima para baixo, era uma moto que vinha em sua direção. Com um na frente e outro na garupa, era claro que nesse horário era nada mais que assaltantes. No entanto, mais liso que a própria carteira estava Alexandro com sua cara de pau e um só desejo. Sem medo, ele avançou, e a moto se aproximou.

    Foi então que um som alto de estouro retumbou. Um tiro? Alexandro sequer teve tempo para conferir, ao que viu a moto vindo literalmente para cima dele! Foi o pneu que havia estourado, e, sem controle do motorista que forçou o freio, agora só restava o impacto.

    Alexandro foi atingido, jogado para trás, e pôde ouvir alguns ossos irem de wakanda forever na horizontal. O que ralou nessa queda, ele nunca tinha ralado na vida inteira. No entanto, o homem permaneceu convicto: levantou-se e se pôs a correr! Ele precisava fazer uma última coisa. Era isso. Sua primeira e única chance, seu último desejo, o de se confessar para uma gótica rabuda e ter seu sonho realizado.

    Ele sabia. Era a porra do horóscopo. O azar desejava fazê-lo desistir. Só que um CLT motivado nunca desistiria. Cada parte do seu corpo — principalmente o amigão lá embaixo — estava tão energizado que poderia rivalizar com o nascimento de cem sóis. Isso é estar vivo? Eu finalmente estou vivo… e de carteira assinada. Era como se tivesse encontrado a razão depois de tantos anos de trabalho escravo em péssimas condições mentais.

    Depois de dobrar a esquina, parou então em frente da grande ferrugem que chamavam de portões do cemitério. As dobradiças velhas rangeram, o som foi de rasgar os tímpanos, e parecia que o portão envergaria para cima dele, mas os músculos feridos de Alexandro foram capazes de vencer a guerra e conseguiu empurrar de volta, mesmo com sangue escorrendo por cada parte do corpo.

    Ele tropeçava para dentro do cemitério, em passos erráticos e desordenados. Tudo o que desejava era se deparar com a rabuda. O sangue, que dificultava sua visão, não permitiu ver que seu objetivo já estava em sua frente, quando esbarrou com a beleza arquitetônica que só seria encontrado em versos de poemas da Baixa Idade Média ocultos sob as basílicas e catedrais que a nomearam: A GÓTICA.

    Qualquer um acharia estranho e evitaria, pensando que podia ser vítima de um assassinato ou o próprio assassino, mas ela, já unida com os 72 demônios da Goétia e acostumada com o próprio inferno, não temeu. Na verdade, interessou-se.

    — O que você quer?

    Alexandro respirou fundo, e seus passos cessaram. A gótica manteve o queixo erguido, com seu olhar dominador, analisando-o da cabeça aos pés. O homem até gostou, ao ponto de se ajoelhar — muito provavelmente pela dor lancinante que sentia — na frente dela e com seu olhar cheio de confiança dizer:

    — Tu topa sair comigo?

    Aquilo foi um certo choque. Piorava quando os espíritos no ombro da jovem diziam para recusar, o que ela achou ainda mais intrigante. Ela se agachou, o encarou e levantou o queixo dele, deixando seu dedo coberto do sangue fresco que estava escorrendo. O amor à primeira vista do sangue.

    — Só se você for capaz de me satisfazer uma noite.

    — Você pode apostar que nunca sentiu a pentada raivosa de um CLT 6×1.

    — Heh. Vamos ver, então… — Ela lambeu o sangue do dedo e sorriu perversamente. 

    Duas estrelas se acenderam dos olhos de Alexandro do tanto que brilharam. Mesmo parecendo um insano, ele caminhou ao lado daquela moça sombria e a levou ao motelzinho mais próximo. Os dois entraram no quarto, e o que aconteceu ali dentro em diante se tornou digno de um versículo bíblico da chegada do quinto cavaleiro do apocalipse ou da décima primeira praga do Egito.

    Alexandro nunca esteve mais vivo que esta noite. Não importava quantas técnicas poderosíssimas e cheias de experiência aquela musa das trevas realizasse, o homem não pereceu uma única vez, como o Atlas que segurava o planeta Terra em seus ombros. Foda-se que havia se fodido de tanto trabalhar, que havia perdido o celular, o PC gamer, talvez até o serviço depois de tantas horas de rebimboca na parafuseta. 

    Ele estava poderoso, grandioso, GIGANTE, ao ponto que sentia que poderia dominar o mundo se despejasse apenas uma gota dessa energia inteira que sentia percorrer em suas veias.

    No canto do galo, eles terminaram o que poderia ressoar pelo país inteiro como a noite mais intensa que um homem teve com uma súcubo já registrado. No entanto, o que era antes o gigante e poderoso Alexandro, agora não era nada além de uma casca vazia do que já foi um dia. Ele havia perdido. 

    Na verdade, perdera na metade da batalha de resistência, e só continuou por força do ódio que a dama das mais profundas trevas o relembrava em seu ouvido sobre o seu chefe, das horas que ainda teria que bater, das folgas trocadas, até das partidas de LoL perdidas, como um elixir afrodisíaco infinito para não parar o coito.

    Só o caco, agora, seus olhos miraram o teto. A luz suavemente vermelha iluminou o quarto e irradiou a imagem da dona do prazer, a gótica, que se sentava de perna cruzada na ponta da cama, fumando um cigarro qualquer.

    Alexandro realizou seu maior sonho. Estava, verdadeiramente, feliz. Finalmente… paz.

    — Você foi até que ok. Vamos fazer de novo hoje, tá bom?

    E a última lágrima escorreu dos olhos dele.

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