Índice de Capítulo

    Baek Jin era um homem comum. Trinta e cinco anos, pele amarelada de escritório mal-iluminado, olhos fundos por noites longas em frente ao computador. Seus dedos estavam calejados não por trabalho físico, mas de rolar páginas infinitas em sites de novels. Trabalhava como assistente administrativo em uma pequena empresa de logística no centro da cidade. O salário mal cobria o aluguel de um apartamento de um cômodo e meio, mas era suficiente para manter a internet funcionando, pagar um pouco de arroz e café instantâneo — o bastante para seguir vivendo e, mais importante, continuar lendo. 

    Não havia namorada. Nem amigos próximos. Sua vida social era limitada aos fóruns online, onde trocava teorias e comentários apaixonados sobre cultivadores lendários e seitas ancestrais. Todos os dias, assim que largava o turno, corria para casa com o coração pulsando não por causa do cansaço, mas pela ansiedade de descobrir se o protagonista da sua novel favorita conseguiria romper a barreira para o próximo estágio. 

    Enquanto outros homens de sua idade procuravam relacionamentos, status ou dinheiro, Baek Jin sonhava em condensar Qi nos meridianos, invocar técnicas secretas e desferir golpes que rachassem montanhas. Mesmo sabendo que tudo era fantasia, havia uma pequena parte dentro dele — teimosa, infantil — que acreditava. Ou pelo menos desejava acreditar. 

    Numa noite chuvosa, no caminho de volta do trabalho, o destino de Baek Jin tomou um rumo que nem a mais audaciosa novel poderia prever. 

    Ele caminhava com pressa, a cabeça baixa, os fones de ouvido transmitindo a narração de uma novel sobre um reencarnado que esmagava seitas malignas. Foi quando ouviu gritos abafados em um beco lateral. 

    Curioso, parou. Curiosidade rapidamente se transformou em inquietação ao ver três rapazes cercando um velho — magro, de roupas rasgadas, com uma sacola de pão apertada contra o peito. 

    — Velho sujo, tem que pagar por passar por aqui! — disse um dos agressores, chutando a perna do idoso, que caiu de joelhos. 

    — Isso não é da sua conta, tiozinho. Vai embora se não quiser apanhar junto — rosnou outro, o rosto encoberto por um boné. 

    Mas Baek Jin não se moveu. 

    Não havia técnicas de espada escondidas em seu corpo. Nenhuma arte marcial selada em sua alma. E ainda assim, algo em seu peito queimou. Talvez fosse o resquício de todas as histórias que leu. Talvez fosse o simples fato de não aguentar ver alguém tão indefeso sofrer. 

    Sem pensar muito, avançou, empurrou um dos valentões e gritou para o velho: 

    — Corra! AGORA! 

    O idoso, tremendo, disparou como podia, tropeçando nas próprias pernas. 

    Baek Jin sentiu um soco no estômago. Depois, outro. E então… a lâmina fria e implacável. 

    O mundo girou. 

    A chuva parecia tampar seus ouvidos. O sangue quente escorria por sua camisa social barata. Caiu de joelhos. E então, sorriu. Porque sabia que tinha salvado alguém. 

    “Pelo menos… desta vez, eu fui o herói da história.” 

    Seu corpo tombou sem vida. 

    Quando abriu os olhos novamente, Baek Jin não estava mais na rua escura, nem ouvia o som da chuva. 

    Seu corpo pesava como chumbo. A respiração era fraca, entrecortada. Havia cheiro de mofo, de terra seca, de morte. 

    Tentou se erguer, mas uma dor aguda percorreu seu peito. Quando olhou para si, viu mãos enrugadas, pele marcada pelo tempo e uma barba longa e desgrenhada. As roupas que cobriam seu corpo eram de pano áspero e rasgado, com manchas secas de sangue e gordura. 

    — Onde…? 

    Sua voz era rouca. Estranha. Como a de um velho à beira da morte. 

    Foi então que as memórias começaram a vir. Ele não sabia como, mas conseguia sentir. Sabia que aquele corpo se chamava também Baek Jin. Um velho servo do Clã Baek. Alguém que servia chá, varria o chão e era alvo de desprezo até dos outros servos. 

    Lentamente, entendeu. 

    — Eu… reencarnei? 

    Levantou-se cambaleando, apoiando-se numa viga de madeira rachada. A pequena cabana em que estava parecia mais um depósito de lixo. O chão era de terra batida, os móveis, velhos demais até para serem considerados funcionais. 

    O peito doía. Quando levou a mão até lá, sentiu como se algo estivesse quebrado por dentro. Os meridianos daquele corpo estavam destruídos — rachaduras invisíveis, mas letais, que impediam a condução de Qi. 

    “Mesmo neste mundo, eu sou um lixo?”, pensou com amargura. 

    Mas, naquele instante, sentiu algo. 

    Um calor leve, pulsando no centro de seu peito. Como uma brasa acesa no fim de um inverno rigoroso. 

    Era Qi. 

    Fraco. Quase imperceptível. Mas presente. 

    Baek Jin arregalou os olhos. Sentiu como se seu corpo tivesse mudado. Algo diferente dos restos do velho que habitava aquele corpo. Era como se, ao reencarnar, uma semente nova tivesse sido plantada. 

    “Eu consigo…” 

    Se concentrou. Respirou fundo. Lentamente, circulou o pouco Qi por seu corpo, atravessando caminhos rachados, desviando de rotas destruídas. Foi doloroso. Mas possível. 

    Depois de horas sentado, em meditação rústica e silenciosa, seu corpo finalmente respondeu. Uma leve onda de calor percorreu seus membros. Um sorriso brotou em seus lábios secos. 

    Ele havia se tornado um Aprendiz em Artes Marciais

    O Clã Baek já fora um nome de peso. Mas agora, era apenas sombra do que um dia foi. 

    Situado nos limites das Montanhas Negras, em meio a terras estéreis e vilarejos decadentes, o clã lutava para sobreviver em um mundo murim devastado pelo caos de eras antigas. Era governado por Baek Mu-Hwan, um homem silencioso, sempre envolto em mantos escuros, que raramente aparecia em público. Diziam que ele era um Mestre Marcial, mas ninguém sabia ao certo. Alguns afirmavam que ele não passava de um velho doente que mantinha uma aparência imponente para não perder o respeito dos outros clãs. 

    A estrutura do clã era rígida. No topo, o Patriarca. Abaixo dele, dois filhos — Baek Ryu e Baek Haneul — ambos jovens mestres treinados desde a infância. Tinham talento. Mas não tinham bondade. 

    As senhoritas do clã eram mantidas em estruturas internas, treinadas em artes marciais suaves e ensinamentos da medicina espiritual, mas sempre com o objetivo de se casarem com membros de outros clãs para selar alianças políticas. 

    A parte inferior do clã era composta por guardas, discípulos externos e servos. 

    E Baek Jin… estava abaixo disso. 

    Era um velho inútil. Que nem mesmo conseguia carregar baldes de água. Sua aparência raquítica e olhar apagado eram motivo de piada. Servos mais jovens cuspiram em sua tigela de arroz na semana passada. Um guarda certa vez chutou sua bengala apenas para rir dele caindo. 

    — Como esse velho ainda respira? — diziam. 

    — Devia morrer de uma vez. É só um peso morto. 

    Mesmo assim, Baek Jin nunca reagia. Nunca respondia. Ele apenas abaixava a cabeça, recolhia os cacos e seguia. 

    Mas agora… tudo mudaria. 

    Naquela noite, enquanto todos dormiam, Baek Jin permaneceu sentado na escuridão de sua cabana. O Qi em seu corpo, embora frágil, se movia. Girava. Crescia. 

    Seus olhos, escondidos sob sobrancelhas brancas, brilhavam com determinação. 

    “Neste mundo… eu não serei um servo para sempre.” 

    E ninguém, ainda, fazia ideia disso. 

    … 

    A brisa da manhã carregava o cheiro seco da terra. A névoa matinal, acinzentada e úmida, cobria os pátios de treino como um véu silencioso. Ao leste, os primeiros raios do sol mal tocavam os telhados de madeira escura, rachados e corroídos pelo tempo. O Clã Baek, em seu estado decadente, era um esqueleto de glórias passadas. As pedras das trilhas estavam gastas, as paredes dos pavilhões desbotadas, e até os sinos pendurados nas portas do Salão Principal já não soavam com clareza. 

    Na área externa do Pavilhão dos Discípulos, Baek Jin varria o chão de pedra com uma vassoura de bambu maltrada. A madeira estava lascada, o cabo envolto em tiras de pano encardido para não ferir suas mãos enrugadas. Os joelhos doíam. As costas ardiam. Mas ele movia-se com paciência e precisão, como se cada grão de poeira retirado do chão limpasse, também, alguma impureza dentro de si. 

    Cada passo. Cada puxada de vassoura. Era parte de um ritmo. Um fluxo. Um cultivo disfarçado. 

    Seus olhos semi-cerrados pareciam vazios. Mas, por dentro, seu mar de consciência girava lentamente. O pouco de Qi que conseguia condensar nas madrugadas se movia em círculos, como se dançasse com cada gesto mundano que ele fazia. 

    Baek Jin cultivava enquanto limpava. 

    — O velho cachorro está aí de novo — disse uma voz juvenil, desdenhosa, quebrando o silêncio da manhã. 

    Três discípulos externos se aproximavam. Suas túnicas vermelhas de treino estavam puídas nos ombros e manchadas de terra. Mesmo assim, caminhavam com a arrogância de nobres. Os nomes deles eram Kang Mu, Hee Chan e Do Ryeong. Jovens com talento medíocre e egos inflados por algumas técnicas básicas de fortalecimento corporal. O tipo de discípulo que jamais teria lugar entre os verdadeiros Guerreiros. 

    — Olha só pra ele, varrendo o chão como um cão mudo — disse Hee Chan, cuspindo próximo aos pés do velho. 

    — Será que ele ao menos sabe falar? — provocou Do Ryeong, rindo alto. 

    Baek Jin não disse nada. Continuou com sua vassoura. Um movimento. Um sopro de Qi. Um foco absoluto. 

    — Tá fingindo de surdo de novo — bufou Kang Mu, avançando e chutando o balde de água ao lado do velho. A água suja se espalhou pelo chão, respingando nas pernas de Baek Jin. 

    — Ei, velho! Você é cego? Derramou água na minha roupa! — gritou Hee Chan, fingindo indignação. 

    Sem esperar resposta, o garoto avançou e desferiu um chute nas costelas do velho. Baek Jin caiu de lado, batendo contra a parede de pedra. Sentiu o gosto metálico no fundo da garganta, mas não gritou. Nem gemeu. 

    Apenas respirou. Devagar. 

    Cada dor era um lembrete de onde estava. Cada pancada, uma prova da fraqueza que ainda precisava superar. 

    Os jovens riam. 

    — Por que ele nunca revida? Deve ser mesmo um aleijado — disse Do Ryeong, aproximando-se e cuspindo no rosto do velho, antes de virar as costas com desprezo. 

    Eles foram embora rindo, como sempre faziam. 

    Baek Jin ficou ali por alguns instantes, imóvel, deitado no chão áspero. 

    O céu acima estava coberto de nuvens pesadas, mas uma fresta permitia que um único raio de luz atravessasse e tocasse seu rosto marcado. 

    “Mesmo um verme sabe esperar sua hora.” 

    Ele se ergueu lentamente, limpando o rosto com a manga do manto rasgado. Recolheu a vassoura caída, ajustou os trapos que cobriam seu corpo e continuou varrendo. Com a mesma firmeza. Com o mesmo silêncio. 

    Naquela tarde, os sons metálicos dos treinos ecoavam pelo campo central do clã. Os discípulos batiam estacas de madeira com espadas de ferro barato, enquanto instrutores entediados gritavam comandos rotineiros. As técnicas eram rudimentares, focadas em força bruta e repetição mecânica. 

    Baek Jin, de longe, observava. 

    “Movimentos dispersos. Qi instável. Nenhum deles tem controle sobre a própria respiração.” 

    Seu olhar passeava por entre os golpes dos discípulos. Enxergava falhas. Posturas quebradas. Canais energéticos desalinhados. 

    Talvez, anos atrás, aquele corpo velho não fosse capaz de perceber tais coisas. Mas o Baek Jin que agora habitava essa casca sabia. Sabia como um verdadeiro Guerreiro Marcial deveria lutar. Sabia como o Qi deveria pulsar no meridiano central antes de se espalhar pelos membros. Sabia como técnicas precisavam nascer do espírito, não apenas do músculo. 

    E, acima de tudo… sabia esperar. 

    À noite, retornou à sua cabana. Mal havia comida. Apenas um bolinho de arroz seco e um pedaço de nabo murcho. O estômago roncava, mas ele não se importava mais. O gosto da comida daquele mundo era horrível de qualquer maneira. Insosso. Sem vida. 

    Vestiu seus trapos remendados e sentou-se no canto da cabana. As paredes rangiam ao vento. Os ratos andavam pelo telhado. Mas naquele lugar imundo, ele sentia paz. 

    Baek Jin fechou os olhos. Respirou profundamente. 

    O Qi respondeu. 

    Pequeno. Mas firme. Girava dentro dele como uma maré morna, tocando lentamente os meridianos restaurados. 

    Estava longe de ser forte. Ainda não passava de um Aprendiz. Mas com cada dia, cada ofensa engolida, cada humilhação sofrida em silêncio… ele se tornava mais. 

    “Vocês me chutam agora… porque pensam que sou nada.” 

    “Mas um dia… ao sentirem minha pressão se espalhar por esse clã… terão medo até de sussurrar meu nome.” 

    No escuro, sozinho, Baek Jin sorriu pela primeira vez. 

    Não era um sorriso de alegria. 

    Era de promessa. 

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (6 votos)

    Nota