Capítulo 02 – A convocação para a guerra.
As noites no Clã Baek eram silenciosas, mas não por paz.
O silêncio que se arrastava sobre os pavilhões e cabanas não era de serenidade, mas de cansaço. Era o silêncio dos derrotados, de um clã que outrora teve voz entre os grandes, mas que agora não passava de uma sombra decadente. Nem mesmo os ventos ousavam cantar entre as árvores secas do bosque ao redor. Tudo parecia esperar algo. Algo inevitável.
Baek Jin sentia isso.
Sentado no canto escuro de sua cabana, com as pernas cruzadas sobre o chão de terra fria, ele respirava de forma lenta e contínua. Seus olhos estavam fechados, o cenho franzido, e cada músculo de seu corpo tremia discretamente, como se algo dentro dele estivesse prestes a romper.
No centro de sua mente, um nome ecoava em repetição, como um sino distante:
Oito Portões Internos.
Havia muitas lendas sobre esses portões, mas poucos compreendiam sua real natureza.
Desde tempos antigos, os grandes mestres das artes marciais sabiam: o corpo humano era apenas uma concha. Um invólucro frágil para um poder adormecido. Dentro do corpo, havia oito pontos de acupuntura principais, conectados diretamente ao fluxo vital do Qi. Eram chamados de Portões Internos — selos naturais que mantinham o verdadeiro potencial de um cultivador trancado.
A maioria das pessoas vivia a vida inteira com os portões fechados. Plebeus, servos, agricultores, comerciantes… Para esses, a ideia de sequer sentir o Qi já era lenda distante.
Soldados, guardas e cultivadores comuns conseguiam, com sorte e anos de treinamento, abrir um único portão. Às vezes dois.
Mas os gênios — aqueles que eram escolhidos pelos céus — nasciam com três ou quatro portões semiabertos. Desde cedo, seus corpos ressoavam com o Qi. Desde cedo, aprendiam a manipular a energia como se respirassem.
Porém, os verdadeiros monstros… os tigres agachados e dragões escondidos… os que se moviam nas sombras e moldavam o destino do mundo… tinham pelo menos seis portões abertos.
Dizia-se que abrir todos os oito portões era impossível.
“Porque abrir todos é caminhar à beira da morte.”
Baek Jin apertou os punhos sobre os joelhos. As unhas curtas cravavam na pele ressecada, fazendo sangue escorrer discretamente.
O suor encharcava sua testa.
Ele havia encontrado o primeiro portão.
O Portão da Dor.
Localizado no centro do peito, entre o meridiano do coração e o canal da alma. Era o primeiro selo que impedia o livre fluxo do Qi verdadeiro. E, como dizia o nome, não podia ser atravessado sem sofrimento.
Baek Jin sabia disso. Desde que recobrara parte de sua conexão com o Qi após a reencarnação, sentia a presença do selo ali, pulsando como uma parede invisível dentro de seu peito.
Agora, ele estava diante dela.
E tinha que romper.
“Não é só dor física… é dor da alma.”
Ele respirou fundo, conduzindo o fio de Qi restante até o centro do peito. Concentrou tudo ali, comprimindo como uma lança de pura vontade. Os dentes cerraram. O corpo estremeceu.
E então, empurrou.
A dor foi instantânea.
Como se seu coração estivesse sendo perfurado por dentro. Como se mil agulhas tivessem explodido de uma só vez em seu peito. Cada nervo queimava. A visão escureceu. O Qi que se movia suavemente se tornou turbulento, como uma enchente descontrolada.
Gritou.
Mas a cabana abafou o som. Nenhuma alma ouviu.
Seu corpo caiu para o lado, contra o chão duro. Espasmos tomaram conta de seus membros. O velho corpo não estava preparado para tamanha energia. Mas sua alma… sua alma era de outro mundo. De outro tempo.
E ela não cederia.
“Resista… Se não puder suportar nem isso… como irá enfrentar os mestres deste mundo?”
O selo se quebrou.
O Portão da Dor se abriu com um estalo silencioso, e uma onda de Qi adentrou seus meridianos com força violenta. Seus pulmões se expandiram em um único suspiro desesperado, e, por um breve instante, ele sentiu que morreria.
Mas não morreu.
Quando abriu os olhos, o mundo estava diferente.
As sombras tinham forma. O ar tinha peso. Seu corpo doía de forma insuportável, mas sob a dor… havia força. Uma pressão sutil se espalhava por sua pele, como uma brisa morna.
Ele havia se tornado, verdadeiramente… um Aprendiz das Artes Marciais.
Na manhã seguinte, o Clã Baek seguia sua rotina de treinos e tarefas, alheio ao que havia acontecido naquela cabana isolada.
Baek Jin limpava o mesmo chão de sempre, mas algo em sua postura havia mudado. Era quase imperceptível. A maneira como caminhava. Como segurava a vassoura. Havia firmeza. Estabilidade. Seus olhos, antes opacos, agora continham um brilho oculto.
E, mesmo que ninguém percebesse conscientemente… os jovens discípulos passaram a evitar cruzar olhares com ele.
Em outra ala do clã, rumores corriam como vento.
— Você ouviu? O Clã Yan enviou mensageiros ontem à noite.
— Disseram que os recursos do Lago das Névoas foram ocupados por eles à força!
— Se o Clã Baek aceitar, perderemos metade das ervas do mês. Se recusarmos… pode ser guerra.
— O Clã Yan tem um Mestre entre eles, não tem? Baek não tem ninguém confirmado nesse nível…
Essas vozes sussurravam nos corredores e nos campos de treino. Todos temiam o pior. Os recursos do Lago das Névoas eram escassos, mas vitais. Perder aquilo era como perder o futuro.
E mesmo assim… o líder do clã não se pronunciava. O Patriarca Baek Mu-Hwan, atual líder do clã, permanecia recluso. Uns diziam que estava doente. Outros, que sua força já havia se esvaído há anos, e apenas mantinha aparência de poder.
“É sempre assim…” pensava Baek Jin. “Os fracos se agarram à fachada. Mas um dia… a verdade sempre aparece.”
E ele estaria lá para ver isso.
Para esmagar isso.
Naquela noite, enquanto os ventos uivavam sobre os telhados podres do clã, Baek Jin se sentou novamente. A dor ainda palpitava em seu peito, mas seu espírito estava calmo.
“Um portão… sete restantes.”
E mesmo que cada um fosse pior que a morte, ele abriria todos.
Porque não existia outro caminho para alguém como ele.
Baek Jin havia decidido: tornaria-se um Deus Marcial do Mundo Murim.
…
No dia seguinte.
A alvorada nasceu tingida de cinza sobre os telhados gastos do Clã Baek. As nuvens espessas não traziam apenas prenúncio de chuva, mas o fardo iminente da guerra. O vento cortava com aspereza entre os corredores do pátio principal, assobiando entre as bandeiras rasgadas do clã, cujos símbolos haviam perdido o brilho de outrora. As vozes estavam mais graves, os passos mais apressados, e o cheiro do metal e da terra se misturava ao do mingau ralo sendo servido aos servos logo antes do treino.
Baek Jin caminhava com lentidão, o velho balde de madeira balançando em sua mão ossuda, enquanto a outra segurava uma vassoura feita de galhos secos. Seu manto simples estava puído nos ombros e sujo de terra, seu corpo arqueado pela idade aparente, mas seus olhos… aqueles olhos carregavam a firmeza de um abismo inexplorado.
Apesar de sua aparência idosa, ninguém notava o calor sutil do Qi pulsando sob sua pele. Após abrir o primeiro dos Oito Portões Internos — o Portão da Dor — seu corpo lentamente começava a se recuperar. A cada dia, sentia seus membros pesarem menos, a circulação fluir melhor, e sua mente brilhar com mais nitidez. Ainda assim, para o mundo, ele permanecia o mesmo servo miserável de sempre.
— Olha quem chegou… o Servo Mudo! — zombou um discípulo externo de rosto juvenil e nariz pontudo, cuspindo no chão perto de Baek Jin.
— Deve estar ansioso pra morrer na linha de frente — outro disse com sarcasmo, rindo enquanto afiava sua lança de baixa qualidade.
Baek Jin não reagiu. Como sempre. Ele apenas abaixou a cabeça, fingindo que varria os cantos do pátio. Por dentro, a raiva era inexistente. O desprezo não o atingia. Em seu coração havia apenas um pensamento: “Tudo tem seu tempo.”
Dentro do Salão da Assembleia dos Anciãos, o clã fervilhava em preparação. O Ancião Baek Woon, com suas vestes bordadas em linhas púrpuras e cabelo preso por um anel de jade, estava diante de um mapa antigo, desenhado com o território do Clã Yan e seus postos de vigia.
— Os relatórios confirmam movimentações de tropas ao norte, senhor — disse um guarda ajoelhado com a armadura de couro enegrecida pelo uso. — E suspeitamos que mais reforços inimigos estão vindo das Montanhas Tormen.
Os demais anciãos murmuravam entre si. A sala era escura, iluminada apenas por velas fincadas em crânios de bestas. As paredes exibiam armas antigas, penduradas como símbolos de glórias passadas.
— O Patriarca ainda não retornou. Não temos escolha. — A voz de Baek Woon era grave. — Mobilizaremos todos os pelotões auxiliares. Disciplinaremos os discípulos externos e mesmo os servos… todos que puderem segurar uma lâmina.
— Isso é loucura! — exclamou o Ancião Baek Ru Gan. — Vamos entregar o clã nas mãos de crianças e velhos?
Baek Woon apertou os punhos atrás das costas.
— É isso ou esperar que o Clã Yan esmague nossos portões enquanto debatemos estratégia. A guerra já começou. Façam os sorteios. Todos os servos entre 50 e 60 anos serão designados para pelotões de batedores. Que os deuses julguem quem deve viver ou morrer.
Foi ao entardecer que o nome de Baek Jin apareceu na lista fixada no salão externo. Letra por letra entalhada na madeira desgastada: Pelotão da Lâmina Violeta.
Uma pequena unidade. Trinta homens. Liderados por um dos poucos guardas remanescentes no nível de “Guerreiro Marcial”, chamado Dae Won — homem de aparência robusta, cabelos raspados e cicatrizes nos punhos. Frio. Pragmático. E com uma repulsa silenciosa por fraqueza.
— Reúnam-se amanhã ao nascer do sol. Sem atrasos — ele anunciou em voz firme diante dos reunidos. — Aqueles que forem lentos… não voltarão.
Baek Jin estava entre os últimos a chegar. Seus olhos analisaram cada membro do pelotão. Jovens de quinze a vinte anos, alguns nem com barba no rosto. Outros mais velhos, mas visivelmente inexperientes. A maioria usava armas de segunda mão — espadas com cortes irregulares, lanças de madeira rachada.
Os cochichos começaram antes mesmo que ele se aproximasse completamente.
— É sério isso? Um velho?
— Deve ter vindo aqui pra morrer mais rápido e parar de ser um peso.
— Aposto que vai ser o primeiro a cair.
Mas Baek Jin nada respondeu. Sentou-se silenciosamente no canto, enrolando um pano velho ao redor de seus tornozelos. Como sempre, evitava contato visual. Não demonstrava nem medo, nem hostilidade. Era como um fantasma esperando seu momento de assombrar o mundo.
Foi nessa noite que começaram os preparativos internos do Clã Baek.
O pátio dos guerreiros se iluminava com tochas. Servos corriam de um lado para o outro levando armas, ração seca e kits de primeiros socorros feitos de folhas trituradas e raízes secas. Mestres de forja trabalhavam incansavelmente, martelando pedaços de ferro nas fornalhas negras, enquanto caldeirões fumegavam com poções de fortificação.
Jovens discípulos se testavam em duelos no campo aberto, enquanto velhos anciões ensinavam formações defensivas com paus de treino. Alguns guardas mais experientes instruíam os novatos sobre como se mover nas trilhas entre as montanhas, onde emboscadas do Clã Yan podiam surgir a qualquer instante.
Baek Jin observava tudo com olhos atentos. Seu corpo ainda estava frágil, mas a energia em seu dantian fluía cada vez com mais vigor. A primeira porta interna estava aberta. O segundo portão… aguardava.
“Eles não sabem… que este velho silencioso ainda se levantará com mais força do que qualquer um aqui.”
Quando finalmente se deitou na estreita esteira de palha que servia como cama, ouviu os cochichos do lado de fora da tenda improvisada:
— Ei, aquele velho… ele não falou nada o dia todo.
— Alguns dizem que ele não tem nem alma. Só ossos e silêncio.
— Hahaha! Devíamos chamar ele de Servo Mudo.
As risadas abafadas desapareceram com a brisa noturna. Baek Jin fechou os olhos. E em sua mente, só havia uma certeza:
“A guerra é a melhor fornalha. É nela que ferros comuns viram espadas sagradas.”
O céu, acima, cobria-se de nuvens negras, como se o próprio mundo aguardasse o sangue que logo seria derramado.
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