Capítulo 03 – Missão de reconhecimento.
A neblina da manhã ainda se arrastava pelas encostas descascadas da Montanha Sombra Fria, cobrindo o campo de treinamento como um manto de silêncio sombrio. As tendas haviam sido montadas às pressas nos fundos do pátio oeste do clã Baek, um local antes reservado apenas para treinamentos de baixo nível. Agora, com a guerra contra o clã Yan se aproximando como uma tempestade inevitável, até mesmo este canto esquecido tornara-se um reduto de soldados em preparação.
O Pelotão da Lâmina Violeta estava reunido.
Baek Jin estava lá, de pé entre os demais convocados. Vestia os trapos desgastados que lhe haviam sido entregues na noite anterior — uma túnica de tecido rústico e um cinto simples de couro rachado. Seus pés calçavam sandálias de palha, e sua longa barba grisalha descia como um rio prateado sobre o peito ossudo. Mesmo entre os outros discípulos externos e servos convocados, sua figura curvada e envelhecida destacava-se como uma anomalia.
— “Velho demais pra morrer com glória,” sussurrou um rapaz ao lado, com um risinho.
— “Aquele ali é o Servo Mudo, não é? O que nem grita quando é espancado.”
Risos abafados ecoaram. Ninguém esperava que Baek Jin sobrevivesse à sua primeira missão. Nem mesmo o líder do grupo parecia disposto a fingir o contrário.
Baek Dae Won, o homem apelidado de Lança Raspada, andava de um lado para o outro à frente do pelotão. Sua cabeça completamente careca brilhava sob a luz difusa do amanhecer, enquanto sua lança de ferro negro estava firmemente apoiada sobre o ombro. Seus olhos eram como pedras de gelo rachadas, e sua expressão carregava um desprezo natural pelos fracos. Usava uma armadura de couro endurecido marcada por cicatrizes de batalha, e sua voz, quando falou, cortou o silêncio como uma lâmina:
— Prestem atenção, vermes. Esta não é uma brincadeira. Esta não é uma simulação. A guerra começou, e vocês são o primeiro passo. Batedores. Carne para atrair bestas. Iscas para atrair cultivadores Yan.
Alguns dos discípulos engoliram em seco. Outros tentavam manter a postura. Mas o medo estava ali, disfarçado nos olhos que evitavam o olhar de Baek Dae Won.
— Não quero ouvir choro. Não quero ouvir preces. — O guerreiro fincou a ponta da lança no chão, produzindo um som seco e metálico. — Vocês foram jogados aqui porque ninguém os queria. Então provem que servem para algo. Ou morram. Tanto faz.
Ele caminhou devagar, passando os olhos por cada rosto. Quando seus olhos caíram sobre Baek Jin, sua expressão de desdém se acentuou.
— Até um velho inútil… Chega a ser ofensivo.
Baek Jin não respondeu. Manteve-se parado, olhos levemente baixos, expressão imóvel como uma estátua abandonada pelo tempo.
Mas por dentro…
“Eles não fazem ideia,” pensou. “O que significa ter o Portão da Dor aberto. O que significa enfrentar a morte não uma, mas duas vezes. Meus ossos já quebraram mais vezes do que esses jovens se ajoelharam. Só preciso de tempo.”
O pelotão foi dividido em duplas e trios. Haveriam três dias de reconhecimento fora das muralhas do clã. Era uma região de floresta densa, lar de bestas espirituais menores e — segundo rumores — campos avançados montados por cultivadores do clã Yan.
“Ótimo lugar para morrer,” murmurou alguém, empunhando uma espada cega.
O grupo de Baek Jin era composto por ele, um rapaz magricela chamado Seo Jun — que vivia se gabando de ter aberto “quase” o primeiro portão interno — e uma garota de olhar desconfiado chamada Hwa Rin, que sempre ficava no fundo das fileiras.
— O velho que não fala e os dois fracotes. Um grupo promissor — disse Baek Dae Won com sarcasmo.
Na saída do clã, soldados mais bem treinados observavam os batedores passarem com expressões frias. Ninguém esperava que voltassem. Nem mesmo uma palavra de incentivo foi dada. No mundo murim pós-apocalíptico, desperdício humano era apenas parte do planejamento militar.
A trilha pela floresta foi lenta. Galhos secos estalavam sob os pés e o vento frio assobiava entre os troncos. O cheiro do solo era úmido e denso, o ar pesado com a ameaça invisível da guerra.
— Ele nem carrega uma arma… — comentou Seo Jun, olhando para Baek Jin. — Por que ele está aqui mesmo?
— Deve ter sido um erro. Ou um castigo — disse Hwa Rin. — Não importa. Ele não vai durar um dia.
Baek Jin não respondeu. Ele caminhava na retaguarda, passos calmos, os olhos sempre atentos. Cada movimento do vento, cada som de animal entre as folhas, ele memorizava. Cultivava mesmo enquanto andava, concentrando Qi em silêncio, fazendo-o girar lentamente nos meridianos restaurados à força por sua nova alma.
“É fraco, mas é constante,” pensava. “A base precisa ser sólida. Cultivar enquanto escondo minha presença será meu verdadeiro teste.”
Na primeira noite, acamparam ao lado de um riacho lodoso. O frio fazia os jovens tremerem, e a comida seca parecia mais serragem do que qualquer coisa comestível. Baek Jin comia lentamente, saboreando cada mordida mesmo que não houvesse gosto algum.
“O mundo moderno era tão confortável…” pensou, olhando para o céu coberto de nuvens. “Mas vazio. Neste mundo, cada respiração tem propósito. Cada passo é uma chance de viver ou morrer.”
Na manhã seguinte, enquanto exploravam uma clareira, o grupo foi emboscado por uma besta de três olhos, um cão selvagem de presas longas e garras grossas como adagas.
Seo Jun gritou. Hwa Rin caiu para trás.
Baek Jin avançou um único passo à frente.
Mas então… parou.
Lembrava-se de sua promessa: “Não agora. Ainda não.”
Ele recuou um passo, fingindo tropeçar, permitindo que a besta os passasse e revelasse sua verdadeira intenção: atacar outro grupo mais à frente. O grito dos discípulos foi abafado rapidamente.
— Por pouco… — sussurrou Hwa Rin.
— Ele… ele não se mexeu… — disse Seo Jun, tremendo.
Mas Baek Jin apenas fechou os olhos por um instante. Em silêncio, cultivava ainda mais.
“Quando o Portão da Força se abrir, o velho servo mudo deixará de existir.”
E ali, naquela floresta densa, o primeiro passo silencioso do futuro Deus Marcial ecoou apenas para si mesmo.
—
…
O chão tremeu.
Um rugido cortou a floresta como uma lâmina de trovão. A besta espiritual — uma fera com escamas negras e presas douradas — irrompeu da vegetação com brutalidade selvagem. Seus olhos eram vermelhos como brasas acesas, e sua respiração exalava vapor quente e denso, carregado de Qi.
“Ela é mais forte do que disseram!”, gritou Seo Jun, recuando com pressa, a espada trêmula em suas mãos.
“Recuem! Espalhem-se!” bradou Baek Dae Won, girando sua lança com precisão militar. Seus músculos estavam tensos, e o brilho de seu Qi envolvia o metal frio da arma como uma névoa dourada.
A criatura avançou sem hesitar. Suas garras rasgaram o ar, quase atingindo Hwa Rin, que foi arremessada contra uma árvore com um único golpe de cauda.
“Khugh… minhas costelas…”, ela murmurou, cuspindo sangue.
Baek Jin, posicionado na retaguarda, observava em silêncio. Seus olhos, escondidos sob sobrancelhas grisalhas espessas, seguiam cada movimento da besta com precisão clínica. Seu corpo velho, curvado pela idade, não chamava atenção alguma — e era exatamente assim que ele desejava.
Baek Dae Won investiu com um grito feroz, a lança atravessando o ar com um som agudo. A criatura desviou com velocidade surpreendente, contra-atacando com a força de um trem descarrilado. A lança se cravou nas escamas, mas o impacto mal a fez vacilar.
“Maldição! Ela está resistindo até ao meu Qi!”, rosnou Dae Won.
Seo Jun, ferido, tentava manter distância. Hwa Rin já estava inconsciente. O restante do Pelotão da Lâmina Violeta havia recuado, temendo por suas vidas. Apenas o velho “Servo Mudo” permanecia parado, como uma rocha.
Baek Jin inspirou fundo.
Seu coração batia lentamente — bum… bum… — e o Qi em seu corpo circulava com precisão de uma engrenagem antiga sendo lubrificada. No âmago de seus meridianos restaurados, a energia pulsava com mais vigor do que nunca.
Eu não posso deixar que morram assim. Não por agora. Não ainda.
Com um único passo, ele se moveu. Suas pernas envelhecidas não deviam se mover tão rápidas — mas se moveram. Ninguém viu. Nenhum dos jovens ousou imaginar que o velho servo podia ser mais do que apenas um peso morto no campo de batalha.
Baek Jin parou entre a criatura e os companheiros feridos.
E naquele instante…
— Queime. — ele murmurou.
O Segundo Portão se abriu.
O Portão da Força.
A dor foi instantânea, como se centenas de lâminas cortassem seus músculos e nervos por dentro. Seu corpo tremeu, os olhos se arregalaram, e a pressão espiritual transbordou como um rio rompendo uma represa.
Por um instante, o chão afundou sob seus pés. A terra se partiu. As folhas ao seu redor foram lançadas para longe. Até a besta hesitou.
Mas foi só um vislumbre.
Baek Jin, com esforço calculado, conteve a aura.
Fez o Qi recuar como uma fera presa de volta à jaula. Seus meridianos latejavam, suas veias queimavam, mas ele ainda estava de pé. E pela primeira vez, sua presença fez com que até Dae Won franzisse o cenho.
“O velho… se moveu…?” disse o capitão entre os dentes.
Com um grunhido, Baek Jin levantou um galho grosso que jazia no chão — nada mais que madeira comum — e o infundiu com uma pequena quantidade de Qi interno.
A madeira brilhou fracamente, endurecida pelo poder espiritual. Ele investiu.
O galho atingiu a pata da criatura com força incomum. Um estalo seco ecoou. Não foi o bastante para feri-la de verdade, mas a fez recuar dois passos.
Foi o suficiente.
Baek Dae Won, agora com uma abertura clara, girou sua lança com maestria e a cravou na lateral da fera.
“Sua maldita… agora é minha vez!” gritou ele, enquanto o Qi explodia de sua lança como um redemoinho dourado.
A besta rugiu em dor e cambaleou para trás, escamas rachadas.
Baek Jin recuou com calma, voltando à sua posição anterior na retaguarda. Seus ombros tremiam, mas sua expressão continuava inalterada, fria como as pedras do penhasco.
Dae Won o encarou por um instante.
“…Você não é apenas um velho inútil, não é?”, murmurou ele, antes de voltar sua atenção para a criatura cambaleante.
O combate prosseguiria, mas a semente da dúvida já havia sido plantada.
E a besta… mesmo ferida… ainda não havia sido derrotada.
O sangue da criatura salpicava o chão seco da floresta. Vapores de Qi se elevavam de suas feridas abertas, como fumaça espiritual deixando um corpo em colapso. O monstro ainda respirava com dificuldade, mas seus olhos — antes ferozes e cheios de fúria — agora revelavam hesitação.
Baek Dae Won girava a lança entre os dedos com olhos afiados como lâminas. Sua postura era baixa, predatória. O suor escorria por sua cabeça raspada e deslizava pela lateral de seu rosto, traçando uma linha até o queixo firme. A aura que emanava de seu corpo agora era diferente. Focada. Mortal.
“Hora de acabar com isso”, rosnou ele.
Dae Won avançou com um grito abafado, impulsionando todo o seu corpo com o Qi restante. A lança em suas mãos parecia uma extensão do próprio espírito — afiada, precisa, inquebrável. A criatura tentou reagir, saltando para o lado, mas o movimento foi lento. As feridas cobrando o preço da selvageria inicial.
— Terceira forma da Lança da Garça Veloz… Perfuração Celeste!
A lança rasgou o ar como um trovão concentrado. O impacto final foi brutal.
O metal se cravou direto entre os olhos da besta, atravessando o crânio com um som seco e retumbante. A criatura soltou um último grunhido gutural antes de seu corpo estremecer, perder toda a tensão e tombar no chão, levantando uma nuvem de poeira e folhas.
Silêncio.
Os pássaros cessaram o canto. O vento parou de soprar. Nem mesmo os insetos ousaram zumbir.
Baek Dae Won retirou sua lança, limpando a ponta com um movimento lento na vegetação rasteira. Sua respiração era pesada, mas o brilho de satisfação estava contido em seus olhos.
— Todos em pé — ordenou, sua voz fria como sempre. — Missão ainda não terminou.
Seo Jun se levantou com dificuldade, amparando o braço ferido. Hwa Rin recobrou a consciência, olhos marejados pela dor, mas firmes. Os demais membros do Pelotão Lâmina Violeta, ainda em choque, olhavam de longe para o corpo da fera caída.
E, discretamente, também para o velho.
Baek Jin já havia retornado à retaguarda, como se nada tivesse acontecido. Sentado em uma pedra, observava o céu por entre as copas das árvores. Seu rosto mantinha a mesma expressão neutra e serena, mas o Qi dentro de seu corpo ainda circulava, suave e constante, como um rio subterrâneo jamais visto pela superfície.
Ele respirava com dificuldade, mas ninguém percebia.
Este foi apenas o segundo portão… pensava ele, sentindo o peso da abertura ainda recente. Ainda faltam seis.
— Baek Jin — chamou Dae Won, olhando por cima do ombro. — Hmpf. Você foi útil… dessa vez.
A fala foi rápida. Quase um sussurro desinteressado. Mas para um homem como Dae Won, que não tolerava fraqueza, aquelas palavras eram mais que um elogio. Eram um reconhecimento tácito.
Baek Jin não respondeu. Apenas assentiu levemente.
Seo Jun se aproximou, olhos curiosos.
— Ei, velho… — começou, mas hesitou. — Aquilo… aquilo foi mesmo só sorte?
O velho olhou para ele. Por um breve segundo, seus olhos pareciam carregar uma vastidão inalcançável, como se uma vida inteira de batalhas estivesse enterrada ali. Mas então ele sorriu, e o momento passou.
— Sorte. — disse apenas, com voz rouca e arrastada.
O grupo iniciou a movimentação. O cadáver da besta foi marcado e abandonado conforme o protocolo. O objetivo era reconhecimento, não coleta. A missão principal estava à frente — alcançar o vale oculto a leste, onde o Clã Yan havia sido avistado movimentando suas forças.
Dae Won liderava com passos firmes. Atrás dele, o Pelotão seguiu em formação silenciosa.
O sol estava em seu auge, derramando luz sobre a vegetação vibrante e os corpos cansados, mas determinados.
No fundo de tudo, Baek Jin sentia.
O mundo parecia respirar ao seu redor. Cada folha, cada vibração do ar, cada partícula de Qi da floresta… tudo pulsava com uma vida intensa. Seus meridianos se alimentavam disso. Mesmo sem meditar, mesmo caminhando, ele cultivava. Ele crescia.
Ele avançava.
Preciso abrir o Terceiro Portão antes que as verdadeiras batalhas comecem… pensava. Só então poderei sobreviver quando a guerra entre os clãs começar de verdade.
E essa guerra… já estava prestes a eclodir.
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