Sendo direto sobre o que aconteceu até agora:

    Nada!

    Não aconteceu exatamente nada de interessante.

    Ok, talvez isso seja um exagero. 

    Apareceram alguns problemas, mas nada grande. Por exemplo, há cadáveres. Muitos cadáveres. Eles surgem numa decomposição crescente a cada passo que dou em direção à vila.

    Por que tantos? Bom, se fosse para arriscar um palpite, apostaria em uma guerra. Algo bem sangrento, com certeza.

    Pense comigo, uma guerra muito sangrenta conseguiria facilmente ser encaixada, como o que resultou em tantos cadáveres assim. Isso é bem plausível, na verdade.

    Ainda assim…

    — O que são aquelas coisas? Alguma espécie de bicho carniceiro? Abutres?

    Um grupo bizarro de criaturas grasnava uns para os outros. O som lembrava abutres, mas a aparência… longe disso.

    Não, não, não, não, NÃO.

    Não dá para chamar esses horrores de abutres. Não estou sendo maldoso, só olhe para eles!

    Cabeças só de ossos, sem penas, pelagem ou carne. A cabeça é, LITERALMENTE, feita só de ossos. 

    As asas? Normais, mas inúteis aparentemente. Por que inúteis? Porque estão andando como quadrúpedes, como se tivessem esquecido que podem voar, então devem ser inúteis.

    Isso é irritante.

    Por que ter asas se vai ficar perambulando como um idiota?!

    Ignorei os “abutres mutantes” e continuei até a vila. Naquele momento, estava diante da abertura na barreira de fogo. O que deveria ser a entrada.

    Olhando mais de perto… parece ser uma vilinha bem organizada, claro, se tirarmos da equação as casas antigas. Mas, tem alguma coisa me incomodando. 

    … Não é nada na roupa, não. É, eu não sei explicar o que é, mas está me incomodando. É como se fosse um sexto sentido.

    Olhei fixamente adiante, e então vi. Algo estava vindo. Não, algo estava voando muito rápido em direção a mim.

    Forcei meus olhos para ver melhor. 

    Hah, má ideia. Eles arderam. 

    Pisquei e, ao abrir, o objeto voador já estava quase em cima de mim.

    Saltei para o lado e senti o vento ser cortado pelo impacto do que quer que fosse.

    O som do ar sendo dilacerado pelo objeto voador não identificado reverberou dentro da minha cabeça. 

    Acho que agora eu deveria gritar em angústia: “kyaaaa! O que era aquilo?!”, né? 

    Hoo. 

    Não, me desculpe. 

    Não vou seguir esse roteiro tão simples, mas…

    — O que raios foi isso? — murmurei.

    Dei meia-volta, procurando pela resposta, e lá estava ela: uma gárgula.

    Hah, entendo. Então é uma gárgula… espera.

    UMA GÁRGULA?!

    Eu não estou vendo coisas, não é? Não, acho que não. É mesmo uma gárgula. 

    Uma criatura humanoide de 1 metro e 80 com rosto de um homem de meia-idade, chifres retorcidos, dentes pontiagudos, garras afiadas, uma cauda comprida e fina, asas parecidas com as de morcego. Era essa criatura que meus olhos viam com clareza. 

    Cara, nunca tinha visto uma gárgula pessoalmente, mas isso com certeza é uma gárgula… CALMA! Esse não é o tópico importante agora! NORA, CONCENTRE-SE! 

    Tá, ok! O que uma gárgula está fazendo num lugar assim? Claro, levando em conta que é mesmo uma gárgula, né.

    Cocei o lado do rosto e mantive a encarada para a criatura flutuando lá em cima. 

    — Você! Ei, você! — gritou uma voz rouca.

    Olhei ao redor. Ninguém além de mim e a horda de mortos inanimados.

    — Aqui em cima, idiota!

    Hah?! A gárgula está falando?! 

    Eu estou sonhando acordado ou quem está falando comigo é a gárgula lá em cima? 

    Não, não, não! Com certeza, com certeza, estou delirando. 

    Não tem como ela ter falado comigo. 

    Isso ficaria muito estranho se ela falasse mesmo… haha!

    — O que há com essa cara de idiota?! 

    … Eh?

    — O que diabos é que você está fazendo? — me encarando, disse a criatura flutuando no ar. 

    … Eh?

    — Quem é você?! — exigiu a criatura, flutuando no ar. — Não tem cheiro de demônio, besta ou humano. Quem, ou o que, diabos é você?

    … Eh? 

    Pensei em falar algo, mas nada fazia sentido. 

    Melhor ficar quieto e ouvir.

    — O cheiro é… único. Você é… diferente.

    — Pois é…

    — Me responda! 

    Com o grito, então, tudo fez sentido.

    Calma… entendo! Então é isso! Agora entendo! Sim, eu entendo! 

    Agora tudo faz sentido. Não há nada de novo ou assombroso com essa gárgula.

    Claro! Ela não é uma gárgula de verdade. 

    É alguém fantasiado, tentando enganar e ferir os outros. 

    Só pode ser isso!

    Ufa, estou na terra mesmo.

    — Ô! — acenei. — Sua fantasia está incrível! Quase me enganou. Parabéns! Mas, queria te fazer uma pergunta. Onde estamos na Terra?

    — Hã?

    — Não, é sério, esses efeitos visuais são incríveis! Parabéns de novo! Até o cheiro de morte é bem realista.

    — Hã?

    — Hah, e aqueles bichos ali? — Apontei para os abutres mutantes de antes. — São efeitos especiais também, certo? Eles estão sendo feitos através de projetores? Onde estão?

    — Do que você está falando, idiota?!

    Ela parece estar ficando irritada, me pergunto o motivo.

    — Eu não faço ideia do que são esses efeitus vizuais e espasiais que você falou agora. Eu aconselho mesmo que você vá embora de uma vez.

    Ir embora? Como você adivinhou? É exatamente o que eu quero fazer! 

    — Você não é um demônio, uma besta ou humano morto. Deve sair do purgatório antes que um dos príncipes do inferno saiba da sua presença.

    — Purgatório? Príncipes do inferno? Uau, que dedicação ao papel! Mas… purgatório? Sério? Me sinto mal agora. Não consigo ter esse senso de humor para acompanhá-los na interpretação. 

    A criatura rugiu. 

    Ela parece estar ficando brava de verdade… eu falei algo errado? Acho que devo me desculpar, então. 

    — Olha, como posso dizer isso? Huh, já sei. Você e todos os envolvidos por trás disto são muito incríveis. O cheiro de morte e sangue parece bem verdadeiro, igual ao do inferno de verdade… mesmo que eu nunca tenha ido para lá. Na verdade, acho que lá deve ser um pouco mais feio e fedido… Calma, não estou falando que o trabalho de vocês está ruim, ele é muito bom!

    — Você é algum idiota extremo por acaso?! 

    — Isso foi rude! 

    — Isso não é brincadeira! Você está no purgatório! Você ainda não se deu conta ou se recusa a aceitar que veio para cá?! Mesmo que você não aceite, essa é a única verdade que você tem em mãos agora. Você está no purgatório. Não sei o que você é ou o que aconteceu, mas você está aqui!

    Espera… purgatório?! Ela disse purgatório, não foi?!

    — Então… estou no mesmo no purgatório? De verdade?

    — Sim.

    Minha mente deu um nó. deuses não pertencem ao purgatório. Nada fazia sentido nas palavras dele.

    Bem, se olharmos todos os xises da questão, faz sentido o que essa pessoa fantasiada de gárgula está tentando me dizer.

    Pense bem, se for mesmo uma pessoa fantasiada, os efeitos em todo o cenário teriam que ser de altíssima qualidade. E, particularmente, duvido muito que iriam investir tanto em algo como uma brincadeira.

    Os seres humanos são muito gananciosos para desperdiçar dinheiro à toa assim.

    Mas, se for verdade o que ele diz…

    POR QUE DIABOS EU ESTOU NO PURGATÓRIO MESMO SENDO UM DEUS?!

    Isso não faz o menor sentido! 

    Com certeza, deve ser uma brincadeira, não é? Com certeza é.

    — Heh… — um riso escapou da minha boca fechada. — Não, não acredito nisso. Não posso estar no purgatório. É impossível que eu esteja no purgatório.

    Virei as costas para a gárgula e voltei a caminhar para a vila.

    A gárgula paraguaia quase me convenceu de que estava no purgatório, falando com aquele tom todo sério, poxa. É óbvio que isso é logicamente impossível.

    Não tem, não existe, não há possibilidades de que eu vá parar num lugar como o purgatório.

    A existência de um ser divino dentro do purgatório é a mesma coisa que você tentar misturar água e óleo, ou seja, não dá certo. 

    É 100% incompatível em uma escala de 0 a 10.

    Mas você tem que ficar mais esperto, Nora, tem muitos espertinhos por aí.

    — Ei, seu idiota! Se você ousar, se você tiver mesmo essa ousadia de dar mais um passo sequer, vou matá-lo! Vou estrangular você! Vou destruí-lo em pedaços grandes e pequenos, depois pegar todos eles e fazer um banquete incrível para os meus filhos! Assim, terá um verdadeiro motivo para estar aqui, vai estar morto!

    Do que ela está falando? Servir meu corpo como comida? 

    Dei meia-volta. A questão que ele levantou despertou minha curiosidade.

    — Hah… é sério isso? Bom, talvez eu seja saboroso. Agora estou curioso.

    — Você está de brincadeira comigo ou não entende a gravidade da situação?!

    — Talvez os dois?

    A gárgula suspirou.

    — Olha, sou só vigia do portão. Não estou sendo ruim de propósito. É meu trabalho impedir seres como você de entrar, devo honrar o meu emprego. E olha, o pagamento do rei demônio é ótimo, fora que o príncipe é bem… como posso dizer, rígido, então não vou deixar você passar!

    Rei Demônio? Príncipe? Poxa, sério que vai continuar com isso? Isso está me cansando. 

    Ignorei-a, virei de costas e dei mais um passo sentido à vila. 

    Foi então que um arrepio percorreu meu corpo inteiro, começando nos pés e subindo como um raio até a nuca. Uma voz ecoou na minha mente… não, ela não falava; ela rugia, como um trovão autoritário, ordenando que eu saísse dali imediatamente.

    Meu instinto tomou o controle e, antes que pudesse pensar, saltei com toda a força, afastando-me vários metros do chão. 

    Mal tive tempo de entender o que estava acontecendo quando o chão abaixo de mim explodiu, lançando detritos e uma onda de calor que quase me desequilibrou no ar.

    — O que foi isso?! — perguntei, estupefato.

    Mesmo com o solo gosmento, a camada arenosa não perdoou o impacto que recebeu, levantando uma densa cortina de fumaça no ar.

    Fiquei parado, olhos fixos no ponto do impacto, esperando que a fumaça se dissipasse. Eu precisava ver. Precisava entender o que diabos tinha tentado me acertar com tamanha brutalidade.

    E…

    — Pessoa fantasiada?! — O grito escapou antes que eu pudesse segurá-lo, mais um reflexo do que um pensamento racional.

    Espera, espera, espera!

    Se ela está ali, isso significa que foi ela quem abriu aquela cratera?! 

    Mas… como diabos alguém sobrevive a um impacto desses?!

    Será que…

    — Eu… estou realmente no purgatório?! Ei, ei, ei! — gritei, apontando para a gárgula com indignação. — Como é que eu vim parar nesse lugar?! Eu sou um deus! Isso não faz o menor sentido!

    Como isso é possível?!

    Como eu estou no purgatório?!

    Eu sou um deus, certo? Como um deus pode estar no purgatório?!

    Hah… por quê?! Por que estou aqui?! Deus, explique isso!… Não, espera. Eu sou um deus! Então por que estou aqui?!

    Calma… calma! Se eu realmente estou no purgatório, isso significa que tudo isso é real?

    Esse cheiro de sangue, os corpos espalhados, esses bichos grotescos… e até essa gárgula, é tudo real?! Eu… estou… definitivamente… no purgatório?!

    — KYAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA! IMPOSSÍVEL! IMPOSSÍVEL! IMPOSSÍVEL! IMPOSSÍVEL!

    A gárgula me encarou, pasma, enquanto tentava formular palavras. Ela ficou batendo a boca por alguns segundos até conseguir formar algo entendível. 

    — Você… — começou, mas sua voz hesitou. — Você é um deus? Está falando sério?!

    — Mas é claro que sim! — respondi, apontando para meu rosto como se fosse óbvio. — Olha para mim! Por acaso, tenho cara de quem brincaria com algo assim tão sério?!

    A gárgula estreitou os olhos, avaliando-me dos pés até a cabeça.

    — Você tem cara de um idiota. — Sua resposta foi tão seca que me deixou sem palavras por um momento.

    — Idiota?! — repeti, indignado.

    — Se você é mesmo um deus como diz… isso significa que tenho ainda mais motivos para não deixar que permaneça nesse lugar. — Ela se levantou. — Devo eliminá-lo imediatamente. Sua existência é errática, não tem sentido você estar aqui.

    — Pois é! Exatamente! — gesticulei exageradamente, concordando de forma absoluta. — Não faz sentido algum eu estar no purgatório! Que bom que você entende! Sabia que tinha uma gárgula sensata aqui! Mas vai, faça o que tem que fazer. Me mate logo, e eu renasço, volto para meu santuário e tudo se resolve! — Estiquei os braços e uni as pernas, formando uma cruz esdrúxula.

    Mas… e se eu não renascer?

    Quero dizer, isso aqui é o purgatório, né? Isso significa que talvez existam boas chances de que, se eu morrer, acabe sumindo de vez, mesmo que ainda tenha quem acredite em mim, né? 

    Quem diria, pela primeira vez na minha existência, percebi algo terrível: eu realmente não posso morrer.

    A gárgula me ignorou e preparou seu ataque.

    Seus músculos se contraíram, suas garras brilharam com uma intensidade ameaçadora, e então ela chutou o chão com força. Num salto feroz, ela veio direto para mim, seus olhos ardendo com o único propósito de me destruir.

    No último segundo, um instinto desesperado tomou conta de mim. Pulei. Meu corpo disparou para o alto, e a gárgula errou o ataque, chocando-se contra o solo novamente com um impacto que fez o chão tremer.

    — O que há de errado com você?! — rugiu a gárgula, erguendo o rosto coberto de sujeira e poeira. — Você é o deus da idiotice, por acaso? O deus dos idiotas?! — Seus olhos brilhavam com uma mistura de fúria e incredulidade. — Você me manda te matar e depois desvia?!

    — Desculpa, mas é que… eu não posso morrer. — Cruzei os braços na frente do corpo, formando um X, como se isso fosse a explicação mais lógica do mundo.

    — Isso não é você quem decide! — rebateu a gárgula, levantando-se com um salto que fez o chão tremer. — Eu decido! Aqui, um ser do inferno como eu tem mais comando e força do que um mero deus!

    Mero deus?

    Pfft. Pfft. Pfft.

    Um sorriso escapou dos meus lábios, mas não era de alegria. Longe disso. Era um sorriso nervoso, daqueles que surgem quando a irritação começa a transbordar.

    Sim, isso me deixou muito irritado.

    — Um mero deus, você diz? — murmurei, a voz carregada de sarcasmo.

    Ser comparado, ou pior, ser considerado inferior a uma gárgula qualquer do purgatório? Não me faça rir.

    Isso é ultrajante, até mesmo para mim, e olha que eu nem ligo para o que pensam de mim. 

    Isso é praticamente uma ofensa divina, uma blasfêmia gigante contra minha existência. 

    Levantei minha mão direita lentamente. O ar ao meu redor começou a vibrar de forma quase imperceptível. 

    Se essa criatura quer ver o poder de um deus, eu faço questão de lembrá-la exatamente com quem está lidando.

    — Ó, bênção divina! Atenda ao meu chamado!

    Quando minhas palavras de prece escaparam de meus lábios, algo começou a surgir sobre a palma da minha mão.

    Uma energia cintilante, pura e de um violeta profundo, se materializou diante de mim, como se fosse uma substância etérea, comprimindo-se e se acumulando no ar.

    A energia foi se condensando, comprimindo-se até ficar reduzida a apenas alguns centímetros de comprimento. Então, com um clarão ofuscante, ela se expandiu, moldando-se com precisão em um cubo brilhante.

    O cubo, por sua vez, começou a se transformar, suas bordas se curvando e se estendendo até dar forma a um mosquete longo e impecavelmente negro, uma obra de arte forjada com pura energia. 

    Agarrei a arma. 

    Eu… eu sinto a vibração do poder que ela emana, impressionante! Sempre sinto essa vibração mesmo depois de tanto tempo.

    — Você…

    — Sim, sim, eu sei — interrompi a gárgula, fazendo um gesto dramático com o mosquete. — Você deve estar se perguntando: “O que é isso, ó, grande e imensamente impressionante deus Nora?” — Dei um leve sorriso enquanto acariciava o cano do mosquete, como se estivesse apresentando uma relíquia sagrada. — Permita-me explicar, gárgula, para que você possa partir desta para uma pior com um mínimo de entendimento.

    Fiz uma pausa teatral. Sim, é assim que se cria impacto. 

    — Todos nós, os deuses, temos a habilidade magnífica de manifestar uma arma feita de energia celestial. Nós a chamamos de Benedictus. — Meu tom era ao mesmo tempo orgulhoso e levemente condescendente. — Elas são as ferramentas divinas com as quais exterminamos criaturas imundas, como você. Contudo, tem um detalhe interessante: nós, deuses, não escolhemos a forma delas. Elas simplesmente aparecem conosco, forjadas pela fé de algum devoto, já com seu design definido. — Ergui o mosquete para que ela o admirasse melhor. — E sim, eu sei exatamente como manuseá-lo. Todos nós sabemos. Benedictus vem com um manual divino embutido, por assim dizer. Hah, e mais uma coisa importante: essas armas só podem ser usadas pelo deus ao qual pertencem. Tentar usá-las sendo outra pessoa… bem, elas se desfragmentam em poeira. Bem impressionante, não acha?

    — Não. — A gárgula respondeu com um olhar inexpressivo que poderia muito bem ter sido entalhado em pedra.

    — Nossa, corta-clímax total! — exclamei, jogando as mãos para o alto, quase indignado. — Poxa vida, gárgula! Eu tinha toda uma expectativa de ouvir algo como “N-não é possível!” ou “C-como um deus pode ser tão poderoso?!” Mas não, você só fica aí, indiferente. Não custa nada ser mais animada nos seus momentos finais, sabia?

    Ela me lançou um olhar impassível antes de virar o rosto, como se dissesse silenciosamente que não poderia se importar menos. 

    Suspirei, abaixando o mosquete por um instante.

    — Tá, eu admito. Você é ágil, tem força e até sabe voar, o que é legal e me deixa um pouco… ok, muito irritado. Mas, olha, não se preocupe, porque eu não vou errar esse disparo. Nem sentir remorso. — Fiz uma pausa, minha expressão se fechou por um instante. — Até porque, né, não posso me dar ao luxo de errar.

    Olhei para o mosquete. 

    Isso é frustrante…

    — Sabe o que é pior? Sou obrigado a esperar dez segundos entre um disparo e outro. Sim, dez segundos. Isso é uma baita de uma merda. Honestamente, seria pedir muito um par de pistolas que atiram infinitamente? Hah, seria uma maravilha completa… mas não, me deram um mosquete longo. Elegante, claro. Prático? Nem um pouco.

    Respirei fundo e voltei minha atenção para a gárgula.

    — Certo, chega de divagações — declarei. — Vamos acabar com isso logo.

    — Pode tentar! 

    Olhando para os seus olhos, eu sentia sua determinação. 

    Toda essa determinação é algo que, admito, me causa uma pontinha de inveja, senhor gárgula. 

    Quero dizer, eu mal consigo decidir entre ignorar as coisas ou procrastinar sobre elas, e aqui está você, decidido a me matar como se fosse a coisa mais natural do mundo.

    Eu apontei o mosquete em sua direção. Um gesto dramático, digno de heróis lendários… ou pelo menos digno de piadas.

    O tempo desacelerou. Bom, não de verdade, mas na minha cabeça, pareceu que sim.

    Respirei fundo, enchendo os pulmões de um ar que tinha gosto de ferrugem misturado com drama exagerado. 

    Minha mira se alinhou, focada no lado esquerdo do peito da gárgula.

    Certo, hora de brilhar, Nora.

    Com um suspiro que seria épico, caso eu não tivesse engasgado um pouco no meio, apertei o gatilho.

    O projétil rasgou o ar, traçando um rastro luminoso de vermelho intenso, como um fio incandescente de sangue pulsante.

    Tá, isso é sempre lindo de ver, mas… será que os fogos de artifício se sentem assim ao serem lançados?

    O impacto foi instantâneo. O projétil atravessou o peito da gárgula com precisão letal, e seus olhos, arregalados, encontraram os meus. 

    Olhos cheios de medo? Dor? Arrependimento? Difícil dizer. Talvez fosse só uma má digestão no fim das contas.

    — Hoo… sinto muito, colega. — Minha voz soou quase sincera. Quase.

    Seu corpo começou a inflar, lentamente a princípio, como um balão conectado a uma bomba de ar. Em seguida, acelerou de forma abrupta, como se o próprio destino dissesse: “Chega de esperar.”

    E então: Puff.

    A explosão foi visceral, espalhando fragmentos da gárgula em todas as direções, uma chuva grotesca de destroços e caos.

    Acho que, se ela pudesse chorar, teria feito isso antes de virar uma versão horrivelmente literal de confete. É uma pena… de verdade. A gárgula foi… bem, não memorável, mas certamente… algo.

    Praticamente não sobrou nada dele. Nada além do olho direito, que pousou em frente aos meus pés. Era quase comovente… se não fosse absolutamente nojento.

    — Isso é nojento. — Suspirei novamente, levantando o pé e esmagando o olho com toda a delicadeza de um rolo compressor. Um estalo molhado ecoou, e eu recuei instintivamente. — Ugh… nojento e desnecessário.

    Respirei fundo, olhando para o vazio. 

    Bom… incômodo resolvido. Agora que sei que estou no purgatório, a grande questão é: o que faço?

    Fiquei ali, pensativo. Ou pelo menos tentei parecer pensativo. A verdade é que só queria disfarçar o fato de que não tinha ideia do que fazer.

    Hum…

    Hum…

    Hum…

    Virar o rei demônio, talvez?

    Olha, pensando bem, virar um Rei Demônio até que não é uma ideia ruim. Sempre tive uma curiosidade mórbida sobre como seria assumir esse papel.

    Além do mais, talvez isso me dê poder suficiente para voltar ao céu. Ou, pelo menos, para declarar uma guerra decente contra aqueles seres iluminados.

    Porque, sejamos honestos, o único jeito de um deus parar no inferno é se os outros deuses decidiram condená-lo, certo? 

    Ou seja, a culpa disso tudo é deles!

    Eles são os meus carrascos, aqueles hipócritas brilhantes perfeitinhos!

    Tudo bem, tudo bem. Admito que essa lógica é forçada. Muito forçada.

    Está mais remendada que um tecido velho, mas o que posso fazer?

    Não sou exatamente o deus da inteligência, né? E, falando sério, é a única explicação que faz sentido… ou quase.

    Então é isso! Decidido! Vou virar o Rei Demônio! 

    Quando eu estiver no comando, a primeira coisa que farei será começar uma guerra contra o céu.

    Que soem as trombetas… ou sei lá, um tambor infernal. O importante é que vai ser épico.

    Pensando bem, isso parece que vai dar uma trabalheira… que preguiça.

    Mas é isso! A vingança vai me guiar por esse… longo e trabalhoso… objetivo…

    É, ela vai… talvez.

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